Escritora norueguesa vive 3 meses sob uma burka ...
Enviado: 22 Jun 2006, 16:40
Rio, 22 de junho de 2006 "O Globo"
A poeira que não baixou
Patrícia Kogut
Em 2001, logo depois da queda do Talibã, a norueguesa Asne Seeiestad passou três meses vivendo com uma família afegã em Cabul. Ela vinha do trabalho exaustivo como jornalista no Vale do Panshir e nas estepes do Afeganistão acompanhando os comandantes da Aliança do Norte. Com a queda do regime, chegou à capital poeirenta e devastada onde conheceu o livreiro Sultan Khan. Impressionada com o que parecia a expressão concreta da contradição (um livreiro, num país majoritariamente analfabeto), propôs que ele a recebesse para que ela escrevesse um livro. Na casa morava uma família numerosa, incluindo as duas mulheres de Khan e seus filhos. A bela norueguesa submergiu por três meses sob a burca. Da experiência resultou “O livreiro de Cabul”, que foi vendido para mais de 30 países e já bateu a marca dos dois milhões de exemplares. É um retrato comovente de uma cultura em que a disciplina e a observância religiosa prevalecem sobre o desejo e há pouquíssima folga para a vontade individual circular. O livro é muito diferente do que planejou a jornalista.
O relato vai de uma festa de casamento, passa pelo impressionante ritual de banho num hassam (casa de banhos) da cidade, mostra os ardis do livreiro para conseguir uma segunda esposa muito mais jovem e até o assassinato de uma moça pelos próprios irmãos, a pedido da mãe, por ela ser “pecadora”. E se “O caçador de pipas” trata da diáspora afegã, a história de Asne, igualmente saborosa, mira no coração do país. A autora abastece o leitor com informação factual, mas sua principal matéria-prima vem da seara das intimidades, das aspirações mais secretas, frustrações, angústias, sonhos e intrigas silenciosas. Segundo ela, em entrevista por e-mail da Noruega, trata-se de “uma obra jornalística, um livro-documentário”. É, entretanto, literatura e das boas.
Livre trânsito entre homens e mulheres
Asne teve livre trânsito entre homens e mulheres, um acesso que não costuma ser franqueado a ninguém. Na introdução, explica que isso se deu pelo fato de que ela era “vista como uma criatura bissexuada”. Perguntada se ser “bissexuada” não é, no fim das contas, uma condição mais ligada à sexualidade do que à neutralidade, esclarece:
- Acho que me deixaram circular porque eu era estrangeira. Eles não sabiam como me avaliar. No Afeganistão, todas as mulheres são propriedade de algum homem, primeiro do pai, depois do marido. Eu não era propriedade de ninguém, e o fato de não ter dono me deu autonomia. Um homem não teria tido a mesma mobilidade porque não poderia partilhar da intimidade das mulheres.
Se transitou livremente entre os gêneros, outra categoria de imobilidade a incomodou. Ao lembrar qual foi seu maior desconforto físico, Asne menciona o sedentarismo das mulheres e a sua limitação ao território doméstico. É o mundo da casa - no Ocidente muitas vezes infantilizado e infantilizante, porque é o universo das crianças - o único permitido a elas no Afeganistão:
- Senti imensa falta de correr, de andar de bicicleta, de esquiar e de nadar. Passei o tempo sentando de um lugar a outro. Era frustrante. Também lamentei a falta de ar fresco: o Afeganistão é cheio de poeira e embaixo da burca isso piora. Claro que viver sem água encanada ou eletricidade é chato, mas a gente se acostuma.
À medida em que a leitura avança, a figura de Khan vai se vilanizando (e humanizando, claro). Primeiro apresentado quase como um bibliófilo, ele se revela sobretudo um negociante preocupado com dinheiro. É um patriarca autoritário e até cruel. O óbvio, que antes estava oculto por uma ilusão romântica da autora, revela-se: nenhuma atividade profissional tem o poder de garantir imunidade moral a alguém. E as mulheres vão ganhando espaço na narrativa.
- O livro foi feito em ordem cronológica - diz a escritora. - No começo, Sultan era um herói para mim. Vi nele uma pessoa aberta, interessante e meiga. Mas, ao partilhar de sua intimidade, descobri aspectos menos lisonjeiros de sua personalidade. Claro que ele foi se transformando numa figura mais real. Ele não gostou de ser retratado assim e zangou-se ao ler o livro. Ameaça me processar, mas ainda não houve acusação formal. Sultan diz que eu o retratei como um tirano. Portanto, o choque cultural que houve desde o início se mantém até hoje.
É justamente este choque que fatura para “O livreiro de Cabul” seu maior trunfo. Embora não admita abertamente, Asne vai aos poucos se entregando a todas as armadilhas do etnocentrismo. Uma vez afastada do politicamente correto, ou do antropologicamente correto, ela fica livre para aproximar sua narrativa do sentimento. E se declara abertamente chocada com a condição da mulher no Afeganistão.
- “Como escapar do etnocentrismo?” foi uma pergunta que me fiz muitas vezes. Achava que estava apenas descrevendo o que via, mas muita gente me acusou de ter uma visão parcial. Talvez a gente jamais consiga escapar da nossa origem e a minha é a Noruega, criada por uma mãe feminista e um pai socialista, num ambiente liberal. Ver as mulheres serem tratadas como cidadãos de segunda categoria partiu meu coração. Tento dizer que meu ponto de vista não é o melhor ou mais justo. Mas que acredito na universalidade dos direitos humanos.
Esperança para personagem solteira
O parti pris se acentua na descrição - quase uma defesa - de Leila, irmã caçula do livreiro. Ainda solteira aos 19 anos, ela era a responsável por todos os afazeres domésticos. Trabalhava de sol a sol para atender às exigências da família inteira:
- Por ser jovem e seu destino estar ainda em aberto, Leila se transformou na minha personagem preferida. Ela é inteligente e, embora jogasse de acordo com as regras propostas, ainda tinha a esperança de um futuro melhor do que o das mulheres que já eram casadas.
Como Asne permaneceu invisível em sua narrativa, nunca sabemos como os personagens reagiram à sua presença:
- Não sei se todos me aceitavam de fato, mas a maioria me contava suas experiências de bom grado.
Valeria uma outra história.
A poeira que não baixou
Patrícia Kogut
Em 2001, logo depois da queda do Talibã, a norueguesa Asne Seeiestad passou três meses vivendo com uma família afegã em Cabul. Ela vinha do trabalho exaustivo como jornalista no Vale do Panshir e nas estepes do Afeganistão acompanhando os comandantes da Aliança do Norte. Com a queda do regime, chegou à capital poeirenta e devastada onde conheceu o livreiro Sultan Khan. Impressionada com o que parecia a expressão concreta da contradição (um livreiro, num país majoritariamente analfabeto), propôs que ele a recebesse para que ela escrevesse um livro. Na casa morava uma família numerosa, incluindo as duas mulheres de Khan e seus filhos. A bela norueguesa submergiu por três meses sob a burca. Da experiência resultou “O livreiro de Cabul”, que foi vendido para mais de 30 países e já bateu a marca dos dois milhões de exemplares. É um retrato comovente de uma cultura em que a disciplina e a observância religiosa prevalecem sobre o desejo e há pouquíssima folga para a vontade individual circular. O livro é muito diferente do que planejou a jornalista.
O relato vai de uma festa de casamento, passa pelo impressionante ritual de banho num hassam (casa de banhos) da cidade, mostra os ardis do livreiro para conseguir uma segunda esposa muito mais jovem e até o assassinato de uma moça pelos próprios irmãos, a pedido da mãe, por ela ser “pecadora”. E se “O caçador de pipas” trata da diáspora afegã, a história de Asne, igualmente saborosa, mira no coração do país. A autora abastece o leitor com informação factual, mas sua principal matéria-prima vem da seara das intimidades, das aspirações mais secretas, frustrações, angústias, sonhos e intrigas silenciosas. Segundo ela, em entrevista por e-mail da Noruega, trata-se de “uma obra jornalística, um livro-documentário”. É, entretanto, literatura e das boas.
Livre trânsito entre homens e mulheres
Asne teve livre trânsito entre homens e mulheres, um acesso que não costuma ser franqueado a ninguém. Na introdução, explica que isso se deu pelo fato de que ela era “vista como uma criatura bissexuada”. Perguntada se ser “bissexuada” não é, no fim das contas, uma condição mais ligada à sexualidade do que à neutralidade, esclarece:
- Acho que me deixaram circular porque eu era estrangeira. Eles não sabiam como me avaliar. No Afeganistão, todas as mulheres são propriedade de algum homem, primeiro do pai, depois do marido. Eu não era propriedade de ninguém, e o fato de não ter dono me deu autonomia. Um homem não teria tido a mesma mobilidade porque não poderia partilhar da intimidade das mulheres.
Se transitou livremente entre os gêneros, outra categoria de imobilidade a incomodou. Ao lembrar qual foi seu maior desconforto físico, Asne menciona o sedentarismo das mulheres e a sua limitação ao território doméstico. É o mundo da casa - no Ocidente muitas vezes infantilizado e infantilizante, porque é o universo das crianças - o único permitido a elas no Afeganistão:
- Senti imensa falta de correr, de andar de bicicleta, de esquiar e de nadar. Passei o tempo sentando de um lugar a outro. Era frustrante. Também lamentei a falta de ar fresco: o Afeganistão é cheio de poeira e embaixo da burca isso piora. Claro que viver sem água encanada ou eletricidade é chato, mas a gente se acostuma.
À medida em que a leitura avança, a figura de Khan vai se vilanizando (e humanizando, claro). Primeiro apresentado quase como um bibliófilo, ele se revela sobretudo um negociante preocupado com dinheiro. É um patriarca autoritário e até cruel. O óbvio, que antes estava oculto por uma ilusão romântica da autora, revela-se: nenhuma atividade profissional tem o poder de garantir imunidade moral a alguém. E as mulheres vão ganhando espaço na narrativa.
- O livro foi feito em ordem cronológica - diz a escritora. - No começo, Sultan era um herói para mim. Vi nele uma pessoa aberta, interessante e meiga. Mas, ao partilhar de sua intimidade, descobri aspectos menos lisonjeiros de sua personalidade. Claro que ele foi se transformando numa figura mais real. Ele não gostou de ser retratado assim e zangou-se ao ler o livro. Ameaça me processar, mas ainda não houve acusação formal. Sultan diz que eu o retratei como um tirano. Portanto, o choque cultural que houve desde o início se mantém até hoje.
É justamente este choque que fatura para “O livreiro de Cabul” seu maior trunfo. Embora não admita abertamente, Asne vai aos poucos se entregando a todas as armadilhas do etnocentrismo. Uma vez afastada do politicamente correto, ou do antropologicamente correto, ela fica livre para aproximar sua narrativa do sentimento. E se declara abertamente chocada com a condição da mulher no Afeganistão.
- “Como escapar do etnocentrismo?” foi uma pergunta que me fiz muitas vezes. Achava que estava apenas descrevendo o que via, mas muita gente me acusou de ter uma visão parcial. Talvez a gente jamais consiga escapar da nossa origem e a minha é a Noruega, criada por uma mãe feminista e um pai socialista, num ambiente liberal. Ver as mulheres serem tratadas como cidadãos de segunda categoria partiu meu coração. Tento dizer que meu ponto de vista não é o melhor ou mais justo. Mas que acredito na universalidade dos direitos humanos.
Esperança para personagem solteira
O parti pris se acentua na descrição - quase uma defesa - de Leila, irmã caçula do livreiro. Ainda solteira aos 19 anos, ela era a responsável por todos os afazeres domésticos. Trabalhava de sol a sol para atender às exigências da família inteira:
- Por ser jovem e seu destino estar ainda em aberto, Leila se transformou na minha personagem preferida. Ela é inteligente e, embora jogasse de acordo com as regras propostas, ainda tinha a esperança de um futuro melhor do que o das mulheres que já eram casadas.
Como Asne permaneceu invisível em sua narrativa, nunca sabemos como os personagens reagiram à sua presença:
- Não sei se todos me aceitavam de fato, mas a maioria me contava suas experiências de bom grado.
Valeria uma outra história.