FÍSICA MODERNA E FILOSOFIA
Enviado: 26 Jun 2006, 09:58
FÍSICA MODERNA E FILOSOFIA
Lawrence Sklar
Universidade de Michigan
É útil ter uma perspectiva preliminar de algumas das maneiras como os resultados da física moderna afetaram questões filosóficas. Isso pode acontecer quando um estudo teórico em física alarga aquelas que se pensavam ser as fronteiras do seu domínio de investigação.
Considere-se, por exemplo, a cosmologia atual. O Big Bang é o modelo mais amplamente aceite da estrutura do nosso universo à escala do muito grande. Neste modelo, traça-se a evolução do universo atual ao longo do tempo, em direção ao passado, e as dimensões espaciais do universo contraem-se nessa direção de recuo no tempo. Aparentemente, podemos compreender grande parte da estrutura e dinâmica presentes do universo se o concebermos como algo que se expandiu de uma maneira explosiva a partir de uma singularidade ocorrida no passado, há um tempo finito. Isto é, parece que num certo momento do passado (que decorreu, quando muito, há algumas dezenas de bilhões de anos atrás) toda a matéria do universo estava concentrada "num ponto" do espaço (ou melhor, o próprio espaço estava concentrado dessa forma).
No entanto, é óbvio que um modelo do universo como este suscita perplexidades que parecem ultrapassar os modos de procurar respostas a que estamos habituados quando discutimos problemas de causalidade à escala astronômica. Se podemos ligar o estado atual do universo à singularidade inicial por meio de uma seqüência retrospectiva de causas e efeitos, que poderemos fazer depois para continuar o processo científico de pergunta resposta em busca da explicação causal da existência e natureza desse estado inicial singular? Não é claro, pura e simplesmente, que tipo de resposta explicativa poderemos oferecer para uma questão como "Por que razão se deu o Big Bang e por que razão se deu daquela maneira?" É como se já não tivéssemos espaço para respostas explicativas do tipo a que estamos habituados. A cadeia do raciocínio causal regressivo, que vai de um estado a um outro estado anterior, que se postula como causa suficiente, parece parar no único Big Bang inicial.
Isto não quer dizer que não se possa imaginar qualquer coisa como uma explicação da ocorrência e natureza do Big Bang, mas apenas que neste ponto parece que os modos de pensamento científico habituais têm de ser complementados com modos de pensamento que o filósofo conhece bem. O que está em questão é a própria natureza da nossa exigência de explicação e o tipo de resposta a essa exigência que será de esperar. Este é o ponto em que a física e a filosofia parece fundir-se, ficando as questões específicas sobre a natureza do mundo inextrincavelmente enredadas com questões, de um gênero mais metodológico, sobre quais são exatamente os tipos de explicações e descrições do mundo que é legítimo esperar da ciência.
Certas mudanças na nossa imagem física do mundo exigem uma revisão radical da nossa concepção do mundo, o que dá origem a outra pressão para "filosofar" na física contemporânea.
Quando tentamos acomodar os enigmáticos dados da observação que as novas revoluções científicas nos impuseram, depressa descobrimos que a viabilidade de muitos dos conceitos que mais valorizamos para lidar com o mundo depende da presença de certos aspectos estruturais da nossa imagem do mundo. Em alguns casos, nem nos apercebemos da existência desses aspectos, até eles serem colocados em questão pelas novas teorias físicas revolucionárias. No entanto, quando esses aspectos da nossa imagem teórica se tornam duvidosos, os conceitos que deles dependem deixam de poder funcionar para nós como antes, e temos de rever os nossos conceitos; mas tal revisão conceptual é exatamente o tipo de coisa que nos impõe uma investigação tipicamente filosófica sobre o próprio significado dos conceitos que temos usado desde sempre, e sobre as revisões de significado necessárias para acomodar a nova compreensão conceptual do mundo.
Considere-se, por exemplo, a revisão do nosso conceito de tempo que a teoria da relatividade restrita implica. Por razões que iremos explorar mais tarde, a adoção desta teoria faz-nos dizer muitas coisas sobre o tempo que poderiam parecer manifestamente absurdas. Dois acontecimentos que ocorrem ao mesmo tempo para um "observador" podem, segundo esta teoria, não ser simultâneos para outro observador que esteja em movimento em relação ao primeiro. A própria ordem temporal de alguns acontecimentos (daqueles que não são causalmente conectáveis entre si) pode apresentar-se invertida para observadores diferentes. No entanto, o nosso conceito anterior de tempo presume, quase inconscientemente, que o que é simultâneo para um observador é simultâneo para todos, e que se o acontecimento a se deu antes do acontecimento b, este é um facto "absoluto" para qualquer observador.
A natureza da nova teoria do espaço e do tempo, ao trazer consigo os seus conceitos revolucionários, impõe-nos uma reconsideração ponderada do que terá produzido o nosso aparato conceptual e os nossos pressupostos teóricos anteriores. Essa reconsideração leva-nos a tentar determinar cuidadosamente o que na nossa concepção anterior se fundamentava na experiência e o que nela se pressupunha sem garantia ou justificação ;e as viragens revolucionárias impõem-nos o dever de investigar com cuidado a maneira pela qual os conceitos dependem da estrutura teórica de que fazem parte, e como podem as mudanças nessa estrutura exigir-nos legitimamente uma renovação conceptual. Como veremos quando passarmos da teoria da relatividade restrita para a teoria da relatividade geral, precisaremos de estruturas ainda mais inovadoras para o espaço e para o tempo. Torna-se possível apoiar a possibilidade, no mínimo, de mundos nos quais, por exemplo, um dado acontecimento está, num sentido perfeitamente coerente, no seu próprio passado e futuro. Este tipo de mudança conta claramente como uma revolução conceptual. A compreensão precisa de como tais revoluções conceptuais podem ter lugar, e do que acontece exatamente quando têm de fato lugar, é o tipo de problema apropriado à investigação filosófica. A filosofia integra-se agora na teorização da física.
Outro exemplo deste tipo de revolução científica conceptual que exige que a reflexão filosófica faça parte da ciência comum relaciona-se com o impacto da mecânica quântica nas nossas noções tradicionais de causalidade. A idéia de que cada acontecimento pode ser explicativamente associado por meio de leis a alguma condição anterior do mundo estava pressuposta em muita da nossa ciência. Este pressuposto foi em muitos aspectos um princípio orientador na procura de explicações científicas cada vez mais abrangentes para os fenômenos da experiência. Se um acontecimento parecia não ter causa, isso só podia ser um reflexo da nossa ignorância, do fato de ainda não termos encontrado a causa cuja existência era assegurada pelo princípio geral de que "todos os acontecimentos têm uma causa".
No entanto, como veremos, muitos especialistas têm sustentado que já não se pode ter o princípio como verdadeiro no mundo descrito pela mecânica quântica. Que tipo de teoria nos poderia dizer que no mundo existem acontecimentos sem causa, acontecimentos relativamente aos quais a procura de uma causa determinante subjacente será garantidamente infrutífera? A resposta não é nada simples.
O fracasso da causalidade universal que a mecânica quântica implica faz parte de uma revolução conceptual muito mais profunda que nos foi imposta por esta teoria. Na verdade, dos especialistas que investigaram cuidadosamente estes problemas poucos acreditam que qualquer imagem do mundo já construída fará justiça aos fatos que a mecânica quântica diz que encontraremos no mundo. Idéias básicas sobre o que constitui a "realidade objetiva", por contraste com a experiência subjetiva que temos dela, tornam-se problemáticas à luz desta teoria assombrosa. Uma vez mais (e isso é tudo o que se pretende fazer notar), a natureza revolucionária dos dados da experiência e das teorias construídas pela física moderna para os integrar impõe-nos o tipo de investigação crítica e cuidada sobre o papel desempenhado (por vezes apenas implícita e inconscientemente) por certos conceitos fundamentais nas nossas teorias anteriores. Além disso, essa mesma natureza revolucionária exige uma investigação filosófica cuidada do modo como a revisão das teorias acarreta uma revisão da estrutura conceptual. No contexto das revoluções conceptuais, os tipos de pensamento e raciocínio comuns nos contextos filosóficos tornam-se uma parte integrante da ciência.
A filosofia também tem sido integrada na prática científica da física moderna por meio da intromissão na teorização científica de um tipo de crítica epistemológica que antes só se encontrava na filosofia. A física mais antiga apoiava-se em pressupostos sobre os dados legítimos em que se devem basear as inferências que culminam nas teorias físicas, e sobre as regras legítimas que nos permitiriam passar de sumários de dados observados para hipóteses generalizadas e teorias postuladas. Aos filósofos deixavam-se habitualmente as perplexidades sobre os pressupostos implicitamente admitidos na ciência, assim como a tarefa de elucidar a sua natureza e examinar a sua legitimidade. Mas na física mais recente os especialistas passaram a ter necessidade, como parte da sua prática científica, de explorar estes temas básicos sobre as razões que temos para aceitar e rejeitar hipóteses. O trabalho de Einstein na teoria da relatividade e de Bohr na mecânica quântica é particularmente revelador desta nova tendência epistemológica.
No seu influente artigo sobre a teoria da relatividade restrita, por exemplo, Einstein confronta várias dificuldades observacionais e teóricas da física existente que são extremamente enigmáticas. A sua abordagem desses problemas fundamenta-se numa discussão extraordinariamente original e brilhante da questão seguinte: "Como poderemos determinar, em relação a dois acontecimentos espacialmente separados, se estes ocorrem ou não ao mesmo tempo?" Esta exploração das bases empíricas e inferenciais dos nossos pressupostos teóricos legítimos conduz Einstein ao núcleo fundamental da sua nova teoria - a relatividade da simultaneidade face ao estado de movimento do observador. Embora Einstein derive dos seus postulados básicos algumas conseqüências observacionais surpreendentemente novas e fundamentalmente importantes, muitos dos seus resultados previstos estavam contidos na teoria anterior de Lorentz; mas, mesmo relativamente a estas conseqüências, a investigação de Einstein constitui um avanço de importância fundamental. Do ponto de vista da sua nova perspectiva, as fórmulas antigas adquirem um significado totalmente diferente. É crucial notar que esta nova perspectiva se baseia num exame crítico e filosófico das bases empíricas das nossas inferências teóricas. Surpreendentemente, como veremos mais adiante, no próprio coração da outra teoria fundamental de Einstein sobre o espaço e o tempo (a teoria da relatividade geral) reside um exame crítico e epistemológico muito parecido com o das teorias anteriores.
A mecânica quântica oferece-nos outro exemplo central de como a crítica epistemológica desempenha um papel crucial na física moderna. A questão da natureza do processo de medida, o processo pelo qual um sistema físico é explorado por um observador externo para determinar o seu estado, torna-se fundamental para uma compreensão do significado das fórmulas fundamentais da mecânica quântica. Desde os primórdios desta teoria, as questões sobre o que é observável desempenharam um papel conceptual importante. Mais tarde, as tentativas para compreender conseqüências curiosas da teoria, como o chamado "princípio da incerteza", exigiram, uma vez mais, um exame crítico sobre o que podia ser determinado em termos de observação. Em última análise, as tentativas para compreender o enquadramento conceptual fundamental da teoria levaram Niels Bohr a afirmar que a nova teoria física exigia uma revisão extraordinariamente radical das nossas ideias tradicionais sobre a relação entre o que sabemos sobre o mundo e o que nele se verifica. A própria noção de uma natureza objetiva do mundo, independente do conhecimento que temos dele, foi alvo de crítica no programa de Bohr. Mais uma vez, idéias que antes só eram comuns no contexto da filosofia tornaram-se parte da física. Na filosofia, a negação da objetividade e as afirmações a favor de várias doutrinas relativistas ou subjetivistas têm uma longa história.
A interação entre a filosofia e a física não começou com estas teorias do século XX. Como veremos, os problemas filosóficos estavam entrelaçados com o desenvolvimento inicial da dinâmica (especialmente em Isaac Newton). No século XIX, os debates filosóficos desempenharam um papel crucial no desenvolvimento da nova teoria molecular e atômica da matéria. Outros debates de caráter filosófico foram importantes para estabelecer a base conceptual da teoria do eletromagnetismo, com a sua invocação do "campo" como uma componente fundamental do mundo físico. Mas a física moderna alargou as suas investigações às próprias fronteiras do mundo. Ao fazê-lo, enfraqueceu os dispositivos conceptuais adequados para lidar com questões mais limitadas. A física, na sua tentativa de fazer justiça aos fenômenos enigmáticos e inesperados revelados pelas técnicas experimentais modernas, exige uma revisão radical de conceitos nunca antes colocados em questão. As novas teorias tornam necessário um exame das bases empíricas e inferenciais que estão por detrás dos seus pressupostos. Assim, a física teórica recente tornou-se um palco onde os modos filosóficos de pensar são uma componente essencial do progresso na física. É este entrelaçamento entre a física e a filosofia que iremos explorar.
Lawrence Sklar
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus
Retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992). [/b]
Lawrence Sklar
Universidade de Michigan
É útil ter uma perspectiva preliminar de algumas das maneiras como os resultados da física moderna afetaram questões filosóficas. Isso pode acontecer quando um estudo teórico em física alarga aquelas que se pensavam ser as fronteiras do seu domínio de investigação.
Considere-se, por exemplo, a cosmologia atual. O Big Bang é o modelo mais amplamente aceite da estrutura do nosso universo à escala do muito grande. Neste modelo, traça-se a evolução do universo atual ao longo do tempo, em direção ao passado, e as dimensões espaciais do universo contraem-se nessa direção de recuo no tempo. Aparentemente, podemos compreender grande parte da estrutura e dinâmica presentes do universo se o concebermos como algo que se expandiu de uma maneira explosiva a partir de uma singularidade ocorrida no passado, há um tempo finito. Isto é, parece que num certo momento do passado (que decorreu, quando muito, há algumas dezenas de bilhões de anos atrás) toda a matéria do universo estava concentrada "num ponto" do espaço (ou melhor, o próprio espaço estava concentrado dessa forma).
No entanto, é óbvio que um modelo do universo como este suscita perplexidades que parecem ultrapassar os modos de procurar respostas a que estamos habituados quando discutimos problemas de causalidade à escala astronômica. Se podemos ligar o estado atual do universo à singularidade inicial por meio de uma seqüência retrospectiva de causas e efeitos, que poderemos fazer depois para continuar o processo científico de pergunta resposta em busca da explicação causal da existência e natureza desse estado inicial singular? Não é claro, pura e simplesmente, que tipo de resposta explicativa poderemos oferecer para uma questão como "Por que razão se deu o Big Bang e por que razão se deu daquela maneira?" É como se já não tivéssemos espaço para respostas explicativas do tipo a que estamos habituados. A cadeia do raciocínio causal regressivo, que vai de um estado a um outro estado anterior, que se postula como causa suficiente, parece parar no único Big Bang inicial.
Isto não quer dizer que não se possa imaginar qualquer coisa como uma explicação da ocorrência e natureza do Big Bang, mas apenas que neste ponto parece que os modos de pensamento científico habituais têm de ser complementados com modos de pensamento que o filósofo conhece bem. O que está em questão é a própria natureza da nossa exigência de explicação e o tipo de resposta a essa exigência que será de esperar. Este é o ponto em que a física e a filosofia parece fundir-se, ficando as questões específicas sobre a natureza do mundo inextrincavelmente enredadas com questões, de um gênero mais metodológico, sobre quais são exatamente os tipos de explicações e descrições do mundo que é legítimo esperar da ciência.
Certas mudanças na nossa imagem física do mundo exigem uma revisão radical da nossa concepção do mundo, o que dá origem a outra pressão para "filosofar" na física contemporânea.
Quando tentamos acomodar os enigmáticos dados da observação que as novas revoluções científicas nos impuseram, depressa descobrimos que a viabilidade de muitos dos conceitos que mais valorizamos para lidar com o mundo depende da presença de certos aspectos estruturais da nossa imagem do mundo. Em alguns casos, nem nos apercebemos da existência desses aspectos, até eles serem colocados em questão pelas novas teorias físicas revolucionárias. No entanto, quando esses aspectos da nossa imagem teórica se tornam duvidosos, os conceitos que deles dependem deixam de poder funcionar para nós como antes, e temos de rever os nossos conceitos; mas tal revisão conceptual é exatamente o tipo de coisa que nos impõe uma investigação tipicamente filosófica sobre o próprio significado dos conceitos que temos usado desde sempre, e sobre as revisões de significado necessárias para acomodar a nova compreensão conceptual do mundo.
Considere-se, por exemplo, a revisão do nosso conceito de tempo que a teoria da relatividade restrita implica. Por razões que iremos explorar mais tarde, a adoção desta teoria faz-nos dizer muitas coisas sobre o tempo que poderiam parecer manifestamente absurdas. Dois acontecimentos que ocorrem ao mesmo tempo para um "observador" podem, segundo esta teoria, não ser simultâneos para outro observador que esteja em movimento em relação ao primeiro. A própria ordem temporal de alguns acontecimentos (daqueles que não são causalmente conectáveis entre si) pode apresentar-se invertida para observadores diferentes. No entanto, o nosso conceito anterior de tempo presume, quase inconscientemente, que o que é simultâneo para um observador é simultâneo para todos, e que se o acontecimento a se deu antes do acontecimento b, este é um facto "absoluto" para qualquer observador.
A natureza da nova teoria do espaço e do tempo, ao trazer consigo os seus conceitos revolucionários, impõe-nos uma reconsideração ponderada do que terá produzido o nosso aparato conceptual e os nossos pressupostos teóricos anteriores. Essa reconsideração leva-nos a tentar determinar cuidadosamente o que na nossa concepção anterior se fundamentava na experiência e o que nela se pressupunha sem garantia ou justificação ;e as viragens revolucionárias impõem-nos o dever de investigar com cuidado a maneira pela qual os conceitos dependem da estrutura teórica de que fazem parte, e como podem as mudanças nessa estrutura exigir-nos legitimamente uma renovação conceptual. Como veremos quando passarmos da teoria da relatividade restrita para a teoria da relatividade geral, precisaremos de estruturas ainda mais inovadoras para o espaço e para o tempo. Torna-se possível apoiar a possibilidade, no mínimo, de mundos nos quais, por exemplo, um dado acontecimento está, num sentido perfeitamente coerente, no seu próprio passado e futuro. Este tipo de mudança conta claramente como uma revolução conceptual. A compreensão precisa de como tais revoluções conceptuais podem ter lugar, e do que acontece exatamente quando têm de fato lugar, é o tipo de problema apropriado à investigação filosófica. A filosofia integra-se agora na teorização da física.
Outro exemplo deste tipo de revolução científica conceptual que exige que a reflexão filosófica faça parte da ciência comum relaciona-se com o impacto da mecânica quântica nas nossas noções tradicionais de causalidade. A idéia de que cada acontecimento pode ser explicativamente associado por meio de leis a alguma condição anterior do mundo estava pressuposta em muita da nossa ciência. Este pressuposto foi em muitos aspectos um princípio orientador na procura de explicações científicas cada vez mais abrangentes para os fenômenos da experiência. Se um acontecimento parecia não ter causa, isso só podia ser um reflexo da nossa ignorância, do fato de ainda não termos encontrado a causa cuja existência era assegurada pelo princípio geral de que "todos os acontecimentos têm uma causa".
No entanto, como veremos, muitos especialistas têm sustentado que já não se pode ter o princípio como verdadeiro no mundo descrito pela mecânica quântica. Que tipo de teoria nos poderia dizer que no mundo existem acontecimentos sem causa, acontecimentos relativamente aos quais a procura de uma causa determinante subjacente será garantidamente infrutífera? A resposta não é nada simples.
O fracasso da causalidade universal que a mecânica quântica implica faz parte de uma revolução conceptual muito mais profunda que nos foi imposta por esta teoria. Na verdade, dos especialistas que investigaram cuidadosamente estes problemas poucos acreditam que qualquer imagem do mundo já construída fará justiça aos fatos que a mecânica quântica diz que encontraremos no mundo. Idéias básicas sobre o que constitui a "realidade objetiva", por contraste com a experiência subjetiva que temos dela, tornam-se problemáticas à luz desta teoria assombrosa. Uma vez mais (e isso é tudo o que se pretende fazer notar), a natureza revolucionária dos dados da experiência e das teorias construídas pela física moderna para os integrar impõe-nos o tipo de investigação crítica e cuidada sobre o papel desempenhado (por vezes apenas implícita e inconscientemente) por certos conceitos fundamentais nas nossas teorias anteriores. Além disso, essa mesma natureza revolucionária exige uma investigação filosófica cuidada do modo como a revisão das teorias acarreta uma revisão da estrutura conceptual. No contexto das revoluções conceptuais, os tipos de pensamento e raciocínio comuns nos contextos filosóficos tornam-se uma parte integrante da ciência.
A filosofia também tem sido integrada na prática científica da física moderna por meio da intromissão na teorização científica de um tipo de crítica epistemológica que antes só se encontrava na filosofia. A física mais antiga apoiava-se em pressupostos sobre os dados legítimos em que se devem basear as inferências que culminam nas teorias físicas, e sobre as regras legítimas que nos permitiriam passar de sumários de dados observados para hipóteses generalizadas e teorias postuladas. Aos filósofos deixavam-se habitualmente as perplexidades sobre os pressupostos implicitamente admitidos na ciência, assim como a tarefa de elucidar a sua natureza e examinar a sua legitimidade. Mas na física mais recente os especialistas passaram a ter necessidade, como parte da sua prática científica, de explorar estes temas básicos sobre as razões que temos para aceitar e rejeitar hipóteses. O trabalho de Einstein na teoria da relatividade e de Bohr na mecânica quântica é particularmente revelador desta nova tendência epistemológica.
No seu influente artigo sobre a teoria da relatividade restrita, por exemplo, Einstein confronta várias dificuldades observacionais e teóricas da física existente que são extremamente enigmáticas. A sua abordagem desses problemas fundamenta-se numa discussão extraordinariamente original e brilhante da questão seguinte: "Como poderemos determinar, em relação a dois acontecimentos espacialmente separados, se estes ocorrem ou não ao mesmo tempo?" Esta exploração das bases empíricas e inferenciais dos nossos pressupostos teóricos legítimos conduz Einstein ao núcleo fundamental da sua nova teoria - a relatividade da simultaneidade face ao estado de movimento do observador. Embora Einstein derive dos seus postulados básicos algumas conseqüências observacionais surpreendentemente novas e fundamentalmente importantes, muitos dos seus resultados previstos estavam contidos na teoria anterior de Lorentz; mas, mesmo relativamente a estas conseqüências, a investigação de Einstein constitui um avanço de importância fundamental. Do ponto de vista da sua nova perspectiva, as fórmulas antigas adquirem um significado totalmente diferente. É crucial notar que esta nova perspectiva se baseia num exame crítico e filosófico das bases empíricas das nossas inferências teóricas. Surpreendentemente, como veremos mais adiante, no próprio coração da outra teoria fundamental de Einstein sobre o espaço e o tempo (a teoria da relatividade geral) reside um exame crítico e epistemológico muito parecido com o das teorias anteriores.
A mecânica quântica oferece-nos outro exemplo central de como a crítica epistemológica desempenha um papel crucial na física moderna. A questão da natureza do processo de medida, o processo pelo qual um sistema físico é explorado por um observador externo para determinar o seu estado, torna-se fundamental para uma compreensão do significado das fórmulas fundamentais da mecânica quântica. Desde os primórdios desta teoria, as questões sobre o que é observável desempenharam um papel conceptual importante. Mais tarde, as tentativas para compreender conseqüências curiosas da teoria, como o chamado "princípio da incerteza", exigiram, uma vez mais, um exame crítico sobre o que podia ser determinado em termos de observação. Em última análise, as tentativas para compreender o enquadramento conceptual fundamental da teoria levaram Niels Bohr a afirmar que a nova teoria física exigia uma revisão extraordinariamente radical das nossas ideias tradicionais sobre a relação entre o que sabemos sobre o mundo e o que nele se verifica. A própria noção de uma natureza objetiva do mundo, independente do conhecimento que temos dele, foi alvo de crítica no programa de Bohr. Mais uma vez, idéias que antes só eram comuns no contexto da filosofia tornaram-se parte da física. Na filosofia, a negação da objetividade e as afirmações a favor de várias doutrinas relativistas ou subjetivistas têm uma longa história.
A interação entre a filosofia e a física não começou com estas teorias do século XX. Como veremos, os problemas filosóficos estavam entrelaçados com o desenvolvimento inicial da dinâmica (especialmente em Isaac Newton). No século XIX, os debates filosóficos desempenharam um papel crucial no desenvolvimento da nova teoria molecular e atômica da matéria. Outros debates de caráter filosófico foram importantes para estabelecer a base conceptual da teoria do eletromagnetismo, com a sua invocação do "campo" como uma componente fundamental do mundo físico. Mas a física moderna alargou as suas investigações às próprias fronteiras do mundo. Ao fazê-lo, enfraqueceu os dispositivos conceptuais adequados para lidar com questões mais limitadas. A física, na sua tentativa de fazer justiça aos fenômenos enigmáticos e inesperados revelados pelas técnicas experimentais modernas, exige uma revisão radical de conceitos nunca antes colocados em questão. As novas teorias tornam necessário um exame das bases empíricas e inferenciais que estão por detrás dos seus pressupostos. Assim, a física teórica recente tornou-se um palco onde os modos filosóficos de pensar são uma componente essencial do progresso na física. É este entrelaçamento entre a física e a filosofia que iremos explorar.
Lawrence Sklar
Tradução de Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus
Retirado de Philosophy of Physics, de Lawrence Sklar (Oxford University Press, 1992). [/b]