Fundamentos Cristãos da Liberdade e da Democracia
Enviado: 03 Jul 2006, 19:48
Fundamentos Cristãos da Liberdade e da Democracia
Claudio Téllez
Mídia Sem Máscara, 12 de maio de 2006.
Durante a Alta Idade Média, do século V ao século X, o Cristianismo impregnava as relações entre os Estados medievais, já que a Igreja Católica era a única instituição hierarquicamente organizada em um momento em que o poder civil, na Europa, se encontrava desagregado (PERNOUD, 1997).
A partir do século XVI, após os acordos de Westphalia de 24 de outubro de 1648 (Tratados de Osnabrück e de Münster), que marcam o fim da Guerra dos Trinta Anos, passamos a ter Estados no sentido moderno do termo e o processo acelerado de desenvolvimento econômico e tecnológico começou a direcionar a Europa para a sua posição de líder mundial (KENNEDY, 1989). Ao mesmo tempo, na nova ordem espacial interestatal, o jus publicum europaeum, baseado na igualdade soberana dos Estados cristãos, passou a ocupar o lugar da respublica christiana medieval (SCHMITT, 2001).
Apesar da Igreja Católica ainda ter sido politicamente forte na Europa durante o período moderno, devido principalmente à fundamentação das monarquias absolutistas na teoria do direito divino, ao mesmo tempo iniciou-se um processo de secularização, impulsionado pela intensificação dos intercâmbios entre os Estados modernos.
A autoridade papal sofreu mais desgastes durante o século XIX, pois os movimentos revolucionários de inspiração liberal deterioraram as relações entre a Igreja e os Estados. Enquanto sistema político, o Liberalismo origina-se no racionalismo dos séculos XVII e XVIII, que trouxe à luz as idéias de liberdade política e econômica, mas que também deu respaldo à ideologia do laicismo, de acordo com a qual o Estado se declara incompetente em matéria religiosa, marcando assim uma nítida separação entre a Igreja e o Estado. Dentre as medidas que aumentaram o conflito dos Estados modernos com a Igreja, podemos citar a supressão de ordens religiosas, o confisco de bens eclesiásticos, a laicização da escola, a supressão das imunidades eclesiásticas e a introdução do casamento civil (ZAGHENI, 1999).
Se autores como John Locke (1632 - 1704) e Immanuel Kant (1724 – 1804) não ignoravam a fundamentação moral sobre a qual deve erigir-se a racionalidade, por outro lado na França, principalmente sob a pena do poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta e historiador maçom François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694 – 1778), o movimento iluminista partiu para o questionamento de todo tipo de autoridade religiosa, criando assim uma separação artificial entre a fé e a razão através da radicalização do anti-clericalismo e da veneração do empirismo (TELLEZ, 2006a).
Reagindo ao laicismo e ao anti-clericalismo exacerbado que terminava por criar uma nova religião “científica”, a Igreja Católica condenou o liberalismo e o modernismo, com o que diversos setores sociais que abraçavam os princípios do racionalismo iluminista passaram a considerar a fé como sendo irracional.
O relativismo moral e cultural da atualidade tem suas origens em grande parte no Iluminismo francês do século XVIII, que criou um vácuo espiritual sobre o qual o igualitarismo posteriormente encontrou um terreno muito fértil (TELLEZ, 2005). Assim, se por um lado o Iluminismo contribuiu inegavelmente para a consolidação de sistemas políticos democráticos, devemos observar que o mesmo movimento, pela sua vertente anti-clerical que procurava a todo custo colocar o homem no papel de árbitro de si mesmo, também contribuiu para a ascensão dos regimes totalitários durante o século XX. Aliás, as idéias de Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778) são responsáveis, em grande parte, pela violência política do terror durante o período jacobino da Revolução Francesa (TELLEZ, 2006b). Devemos ainda ressaltar que, mesmo os regimes totalitários que buscaram legitimidade na religião, materializaram o fenômeno religioso para justificar suas finalidades políticas, eliminando a a-temporalidade presente em toda relação mediada pelo sagrado como transcendência que supera a condição humana (MESLIN, 1992).
Durante o século XIX, movimentos de inspiração socialista/comunista incitavam os trabalhadores industriais à luta de classes, levando ao surgimento de ideologias incompatíveis com a doutrina católica.
O filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872) procurou dissolver o Cristianismo em atropomorfismo, substituindo a noção abstrata de Idéia pela de Humanidade e propondo o ateísmo como necessário para a libertação das classes oprimidas pelas classes dominantes (FEUERBACH, 1982).
Já Karl Marx (1818 - 1883), por sua vez, transpôs a dialética hegeliana para o terreno das necessidades materiais, interpretando a história e a política como função da luta de classes. A religião, para Marx, não passava de um instrumento de alienação atuante como força conservadora, por atenuar a tensão entre as classes sociais, destruindo a força de revolta do proletariado (ZILLES, 2002). É na negação de Deus que a doutrina marxista articula logicamente a sua estratégia revolucionária, o que levou o padre Leonel Franca, S.J., a constatar que o marxismo é um ateísmo militante (FRANCA, [s.d]).
O papa Leão XIII (1878 – 1903), através de suas encíclicas Rerum Novarum (1891), Immortale Dei (1885) e Libertas (1888), contribuiu para aproximar o Catolicismo das novas problemáticas sociais (PIERRARD, 1982). Além disso, na Rerum Novarum, Leão XIII refutou os critérios do Socialismo sobre a propriedade privada, caracterizando o direito à propriedade como fruto do trabalho humano, e condenou a luta de classes (LEÃO XIII, 1991), começando assim a diluir a aparente incompatibilidade entre a economia liberal de mercado e a doutrina do Cristianismo, incompatibilidade que, por sinal, terminou por ser devidamente refutada pelo Papa João Paulo II, em sua encíclica Centesimus Annus de 1991 (JOÃO PAULO II apud ALVES, 2005).
Não podemos deixar de levar em consideração a influência da escolástica tardia dos representantes da Escola de Salamanca para o desenvolvimento dos fundamentos da Escola Austríaca de Economia (ALVES, 2005) e do Direito Internacional. Dentre os mais importantes precursores do liberalismo econômico, podemos citar os escolásticos espanhóis Luis de Molina (1535 – 1600), Juan de Mariana (1536 – 1623), Martín de Azpilcueta Navarro (1493 - 1586) e o arcebispo Diego de Covarrubias y Leyva (1512 - 1577). Com relação ao Direito Internacional, podemos destacar o escolástico Francisco de Vitoria (1485 - 1546).
O jesuíta Luis de Molina, autor de diversas obras jurídicas, contribuiu para o Liberalismo econômico e para a Teoria do Direito ao afirmar a importância da liberdade individual, ao opor-se à regulamentação governamental nas trocas do mercado e ao teorizar sobre os direitos da propriedade privada. De acordo com Luis de Molina, “a lei, a jurisdição e a propriedade são coisas comuns à toda a raça humana, e estão baseadas não na fé e na caridade, mas surgem direta ou indiretamente da própria natureza das coisas e de seu fundamento primeiro” (MOLINA apud ACTON INSTITUTE, [s.d.]). Junto com o nobre castelhano Jeronimo Castillo de Bovadilla (c.1547 - c.1605), Luis de Molina ainda abordou o conceito dinâmico de competição como um processo de rivalidade entre vendedores (HUERTA DE SOTO, [s.d.]). Molina abordou vários problemas jurídicos e econômicos de seu tempo, inclusive de política monetária (depósitos bancários), câmbio, regulação de preços e alguns problemas de natureza fiscal.
O padre Juan de Mariana, também jesuíta, chegou a condenar com veemência a tirania, inclusive defendendo a idéia de que qualquer cidadão poderia assassinar um rei tirano que estabelece taxas opressivas sem o consentimento do povo, que confisca e desperdiça propriedades de indivíduos ou que impõe obstáculos à assembléia de cidadãos para a discussão do bem comum (HUERTA DE SOTO, [s.d.]). Para Juan de Mariana, a lei natural deve estar acima do poder estatal. Ele investigou ainda o problema da inflação, afirmando que era provocada pelos tiranos que diminuíam a base metálica da moeda. O importante conceito econômico de “imposto inflacionário” (decorrente das receitas obtidas pelo governo através da emissão de moeda) deve-se aos trabalhos de Juan de Mariana, que foi influenciado por outro escolástico, Martín de Azpilcueta Navarro, que observou os efeitos provocados na Espanha pelo influxo de metais preciosos vindos da América. O Dr. Navarro foi o primeiro a explicar, em 1556, as bases da Teoria Quantitativa da Moeda.
Diego de Covarrubias y Leyva, designado Arcebispo de Santo Domingo pelo imperador Carlos V em 1546, foi aluno de Martín de Azpilcueta Navarro na Universidade de Salamanca. Por ter afirmado que “o valor de uma coisa não depende de sua natureza objetiva, mas da estimativa subjetiva dos homens, mesmo que tal estimativa seja insensata”, é considerado o primeiro autor a expor, em 1554, a Teoria Subjetiva do Valor, na qual justificava o valor de um bem pelo livre acordo sobre o preço entre o comprador e o vendedor (HUERTA DE SOTO, 2005).
O dominicano Francisco de Vitoria, considerado o fundador da Escola de Salamanca, figura também entre os fundadores do Direito Internacional por ter questionado a legitimidade da escravização de índios pelos espanhóis na América já que, antes da chegada dos conquistadores, os índios eram os senhores e proprietários legítimos. Francisco de Vitoria defendia que a comunidade internacional, por ser resultante da sociabilidade inerente à natureza humana, baseia-se no direito natural tal como a comunidade política (Estado). A legitimidade do poder (tanto o poder civil quanto a propriedade privada), portanto, independe de títulos religiosos. O teólogo dominicano ainda retomou e desenvolveu a doutrina cristã da guerra justa (bellum justum). A guerra, para Francisco de Vitoria, justifica-se pela sua necessidade como único meio de reprimir a injustiça entre os povos (TRUYOL Y SERRA, 1998).
Dentre os representantes da terceira geração de economistas austríacos, Friedrich Hayek, o mais brilhante aluno de Ludwig von Mises, foi um dos economistas mais importantes e influentes do século XX. Deixou uma vasta obra que abrange da filosofia ao direito, da economia teórica à política econômica, da filosofia moral à teoria social, da epistemologia à antropologia, à história, à psicologia e até mesmo à biologia.
Pouco antes de morrer, Hayek teve uma longa conversa pessoal com o Papa João Paulo II. A encíclica papal Centesimus Annus reflete claramente uma modernização do entendimento do Papa acerca das relações econômicas, sugerindo que o pensamento de Hayek pode ter desempenhado certa influência nessa encíclica e, portanto, na revitalização da Doutrina Social da Igreja Católica (HUERTA DE SOTO apud LUCKEY, 2000). Nas palavras de João Paulo II: “A moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo econômico e em muitos outros campos. A economia, de fato, é apenas um setor da multiforme atividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente” (JOÃO PAULO II, 1996).
Apesar dos momentos históricos de distanciamento e de aproximação entre o Cristianismo e o Liberalismo, desde a Alta Idade Média até o século XX, o que temos na verdade é uma fértil complementaridade. Além da já evidenciada relação entre a Escola de Salamanca e a Economia Austríaca, a Santa Sé age como autoridade moral promovendo a dignidade da pessoa humana, a defesa da paz, o apoio às instituições democráticas e a defesa de uma ordem internacional baseada na justiça e nos direitos (TAURAN, 2002). Podemos concluir que na Economia, no Direito e nas Relações Internacionais, os ideais da liberdade individual e da democracia encontram fundamentação e sustento moral nos princípios do Cristianismo.
Referências:
ACTON INSTITUTE. Luis de Molina (1535–1600). Disponível em: http://www.acton.org/por/pubs/index.php?article=22
ALVES, André Azevedo. Estudo Introdutório. In: HUERTA DE SOTO, Jesús. Escola Austríaca: mercado e criatividade empresarial. O Espírito das Leis: Lisboa, 2005.
FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. Campinas: Papirus, 1988.
FRANCA, L. Ateísmo Militante. [s.d.]. Disponível em: http://revista.permanencia.org.br/filosofia/leonel4.htm
HUERTA DE SOTO, Jesús. Juan de Mariana and the Spanish Scholastics. [s.d]. Disponível em: http://www.jesushuertadesoto.com/fronts ... ariana.htm
HUERTA DE SOTO, Jesús. Escola Austríaca: mercado e criatividade empresarial. Lisboa: O Espírito das Leis, 2005.
JOÃO PAULO II, Papa. Centesimus Annus. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
KENNEDY, Paul. The Rise and Fall of the Great Powers: economic change and military conflict from 1500 to 2000. New York: Vintage Books, 1989.
LEÃO XIII. Rerum Novarum: carta encíclica sobre a condição dos operários. São Paulo: Loyola, 1991.
LUCKEY, William R. The Intellectual Origins of Modern Catholic Social Teaching on Economics: an extension of a theme of Jesús Huerta de Soto. Mises Institute Working Papers, 05 mai. 2000. Disponível em: http://www.mises.org/journals/scholar/Lucky6.pdf
MESLIN, M. A Experiência Humana do Divino: fundamentos de uma antropologia religiosa. Petrópolis: Vozes, 1992.
PERNOUD, Régine. Luz Sobre a Idade Média. Lisboa: Publicações Europa – América, 1997.
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1982.
SCHMITT, Carl. Le Nomos de la Terre. Paris: PUF, 2001.
TAURAN, Jean-Louis. The presence of the Holy See in the International Organizations. Milão, 22 abr. 2002. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/secre ... an_en.html.
TELLEZ, Claudio. O caminho da servidão espiritual. Mídia Sem Máscara, 25 abr. 2005. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=3584
TELLEZ, Claudio. Iluministas e iluminados. Mídia Sem Máscara, 11 jan. 2006. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4475
TELLEZ, Claudio. O preço que se paga. Mídia Sem Máscara, 02 mai. 2006. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4814
TRUYOL Y SERRA, Antonio. Historia del Derecho Internacional Público. Madrid: Tecnos, 1998.
ZAGHENI, Guido. A Idade Contemporânea: curso de história da Igreja. São Paulo: Paulus, 1999. (Curso de História da Igreja, v. 4).
ZILLES, U. Filosofia da Religião. São Paulo: Paulus, 2002.
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http://www.claudiotellez.org/texts/pt/m051206.html
Claudio Téllez
Mídia Sem Máscara, 12 de maio de 2006.
Durante a Alta Idade Média, do século V ao século X, o Cristianismo impregnava as relações entre os Estados medievais, já que a Igreja Católica era a única instituição hierarquicamente organizada em um momento em que o poder civil, na Europa, se encontrava desagregado (PERNOUD, 1997).
A partir do século XVI, após os acordos de Westphalia de 24 de outubro de 1648 (Tratados de Osnabrück e de Münster), que marcam o fim da Guerra dos Trinta Anos, passamos a ter Estados no sentido moderno do termo e o processo acelerado de desenvolvimento econômico e tecnológico começou a direcionar a Europa para a sua posição de líder mundial (KENNEDY, 1989). Ao mesmo tempo, na nova ordem espacial interestatal, o jus publicum europaeum, baseado na igualdade soberana dos Estados cristãos, passou a ocupar o lugar da respublica christiana medieval (SCHMITT, 2001).
Apesar da Igreja Católica ainda ter sido politicamente forte na Europa durante o período moderno, devido principalmente à fundamentação das monarquias absolutistas na teoria do direito divino, ao mesmo tempo iniciou-se um processo de secularização, impulsionado pela intensificação dos intercâmbios entre os Estados modernos.
A autoridade papal sofreu mais desgastes durante o século XIX, pois os movimentos revolucionários de inspiração liberal deterioraram as relações entre a Igreja e os Estados. Enquanto sistema político, o Liberalismo origina-se no racionalismo dos séculos XVII e XVIII, que trouxe à luz as idéias de liberdade política e econômica, mas que também deu respaldo à ideologia do laicismo, de acordo com a qual o Estado se declara incompetente em matéria religiosa, marcando assim uma nítida separação entre a Igreja e o Estado. Dentre as medidas que aumentaram o conflito dos Estados modernos com a Igreja, podemos citar a supressão de ordens religiosas, o confisco de bens eclesiásticos, a laicização da escola, a supressão das imunidades eclesiásticas e a introdução do casamento civil (ZAGHENI, 1999).
Se autores como John Locke (1632 - 1704) e Immanuel Kant (1724 – 1804) não ignoravam a fundamentação moral sobre a qual deve erigir-se a racionalidade, por outro lado na França, principalmente sob a pena do poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta e historiador maçom François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694 – 1778), o movimento iluminista partiu para o questionamento de todo tipo de autoridade religiosa, criando assim uma separação artificial entre a fé e a razão através da radicalização do anti-clericalismo e da veneração do empirismo (TELLEZ, 2006a).
Reagindo ao laicismo e ao anti-clericalismo exacerbado que terminava por criar uma nova religião “científica”, a Igreja Católica condenou o liberalismo e o modernismo, com o que diversos setores sociais que abraçavam os princípios do racionalismo iluminista passaram a considerar a fé como sendo irracional.
O relativismo moral e cultural da atualidade tem suas origens em grande parte no Iluminismo francês do século XVIII, que criou um vácuo espiritual sobre o qual o igualitarismo posteriormente encontrou um terreno muito fértil (TELLEZ, 2005). Assim, se por um lado o Iluminismo contribuiu inegavelmente para a consolidação de sistemas políticos democráticos, devemos observar que o mesmo movimento, pela sua vertente anti-clerical que procurava a todo custo colocar o homem no papel de árbitro de si mesmo, também contribuiu para a ascensão dos regimes totalitários durante o século XX. Aliás, as idéias de Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778) são responsáveis, em grande parte, pela violência política do terror durante o período jacobino da Revolução Francesa (TELLEZ, 2006b). Devemos ainda ressaltar que, mesmo os regimes totalitários que buscaram legitimidade na religião, materializaram o fenômeno religioso para justificar suas finalidades políticas, eliminando a a-temporalidade presente em toda relação mediada pelo sagrado como transcendência que supera a condição humana (MESLIN, 1992).
Durante o século XIX, movimentos de inspiração socialista/comunista incitavam os trabalhadores industriais à luta de classes, levando ao surgimento de ideologias incompatíveis com a doutrina católica.
O filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872) procurou dissolver o Cristianismo em atropomorfismo, substituindo a noção abstrata de Idéia pela de Humanidade e propondo o ateísmo como necessário para a libertação das classes oprimidas pelas classes dominantes (FEUERBACH, 1982).
Já Karl Marx (1818 - 1883), por sua vez, transpôs a dialética hegeliana para o terreno das necessidades materiais, interpretando a história e a política como função da luta de classes. A religião, para Marx, não passava de um instrumento de alienação atuante como força conservadora, por atenuar a tensão entre as classes sociais, destruindo a força de revolta do proletariado (ZILLES, 2002). É na negação de Deus que a doutrina marxista articula logicamente a sua estratégia revolucionária, o que levou o padre Leonel Franca, S.J., a constatar que o marxismo é um ateísmo militante (FRANCA, [s.d]).
O papa Leão XIII (1878 – 1903), através de suas encíclicas Rerum Novarum (1891), Immortale Dei (1885) e Libertas (1888), contribuiu para aproximar o Catolicismo das novas problemáticas sociais (PIERRARD, 1982). Além disso, na Rerum Novarum, Leão XIII refutou os critérios do Socialismo sobre a propriedade privada, caracterizando o direito à propriedade como fruto do trabalho humano, e condenou a luta de classes (LEÃO XIII, 1991), começando assim a diluir a aparente incompatibilidade entre a economia liberal de mercado e a doutrina do Cristianismo, incompatibilidade que, por sinal, terminou por ser devidamente refutada pelo Papa João Paulo II, em sua encíclica Centesimus Annus de 1991 (JOÃO PAULO II apud ALVES, 2005).
Não podemos deixar de levar em consideração a influência da escolástica tardia dos representantes da Escola de Salamanca para o desenvolvimento dos fundamentos da Escola Austríaca de Economia (ALVES, 2005) e do Direito Internacional. Dentre os mais importantes precursores do liberalismo econômico, podemos citar os escolásticos espanhóis Luis de Molina (1535 – 1600), Juan de Mariana (1536 – 1623), Martín de Azpilcueta Navarro (1493 - 1586) e o arcebispo Diego de Covarrubias y Leyva (1512 - 1577). Com relação ao Direito Internacional, podemos destacar o escolástico Francisco de Vitoria (1485 - 1546).
O jesuíta Luis de Molina, autor de diversas obras jurídicas, contribuiu para o Liberalismo econômico e para a Teoria do Direito ao afirmar a importância da liberdade individual, ao opor-se à regulamentação governamental nas trocas do mercado e ao teorizar sobre os direitos da propriedade privada. De acordo com Luis de Molina, “a lei, a jurisdição e a propriedade são coisas comuns à toda a raça humana, e estão baseadas não na fé e na caridade, mas surgem direta ou indiretamente da própria natureza das coisas e de seu fundamento primeiro” (MOLINA apud ACTON INSTITUTE, [s.d.]). Junto com o nobre castelhano Jeronimo Castillo de Bovadilla (c.1547 - c.1605), Luis de Molina ainda abordou o conceito dinâmico de competição como um processo de rivalidade entre vendedores (HUERTA DE SOTO, [s.d.]). Molina abordou vários problemas jurídicos e econômicos de seu tempo, inclusive de política monetária (depósitos bancários), câmbio, regulação de preços e alguns problemas de natureza fiscal.
O padre Juan de Mariana, também jesuíta, chegou a condenar com veemência a tirania, inclusive defendendo a idéia de que qualquer cidadão poderia assassinar um rei tirano que estabelece taxas opressivas sem o consentimento do povo, que confisca e desperdiça propriedades de indivíduos ou que impõe obstáculos à assembléia de cidadãos para a discussão do bem comum (HUERTA DE SOTO, [s.d.]). Para Juan de Mariana, a lei natural deve estar acima do poder estatal. Ele investigou ainda o problema da inflação, afirmando que era provocada pelos tiranos que diminuíam a base metálica da moeda. O importante conceito econômico de “imposto inflacionário” (decorrente das receitas obtidas pelo governo através da emissão de moeda) deve-se aos trabalhos de Juan de Mariana, que foi influenciado por outro escolástico, Martín de Azpilcueta Navarro, que observou os efeitos provocados na Espanha pelo influxo de metais preciosos vindos da América. O Dr. Navarro foi o primeiro a explicar, em 1556, as bases da Teoria Quantitativa da Moeda.
Diego de Covarrubias y Leyva, designado Arcebispo de Santo Domingo pelo imperador Carlos V em 1546, foi aluno de Martín de Azpilcueta Navarro na Universidade de Salamanca. Por ter afirmado que “o valor de uma coisa não depende de sua natureza objetiva, mas da estimativa subjetiva dos homens, mesmo que tal estimativa seja insensata”, é considerado o primeiro autor a expor, em 1554, a Teoria Subjetiva do Valor, na qual justificava o valor de um bem pelo livre acordo sobre o preço entre o comprador e o vendedor (HUERTA DE SOTO, 2005).
O dominicano Francisco de Vitoria, considerado o fundador da Escola de Salamanca, figura também entre os fundadores do Direito Internacional por ter questionado a legitimidade da escravização de índios pelos espanhóis na América já que, antes da chegada dos conquistadores, os índios eram os senhores e proprietários legítimos. Francisco de Vitoria defendia que a comunidade internacional, por ser resultante da sociabilidade inerente à natureza humana, baseia-se no direito natural tal como a comunidade política (Estado). A legitimidade do poder (tanto o poder civil quanto a propriedade privada), portanto, independe de títulos religiosos. O teólogo dominicano ainda retomou e desenvolveu a doutrina cristã da guerra justa (bellum justum). A guerra, para Francisco de Vitoria, justifica-se pela sua necessidade como único meio de reprimir a injustiça entre os povos (TRUYOL Y SERRA, 1998).
Dentre os representantes da terceira geração de economistas austríacos, Friedrich Hayek, o mais brilhante aluno de Ludwig von Mises, foi um dos economistas mais importantes e influentes do século XX. Deixou uma vasta obra que abrange da filosofia ao direito, da economia teórica à política econômica, da filosofia moral à teoria social, da epistemologia à antropologia, à história, à psicologia e até mesmo à biologia.
Pouco antes de morrer, Hayek teve uma longa conversa pessoal com o Papa João Paulo II. A encíclica papal Centesimus Annus reflete claramente uma modernização do entendimento do Papa acerca das relações econômicas, sugerindo que o pensamento de Hayek pode ter desempenhado certa influência nessa encíclica e, portanto, na revitalização da Doutrina Social da Igreja Católica (HUERTA DE SOTO apud LUCKEY, 2000). Nas palavras de João Paulo II: “A moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo econômico e em muitos outros campos. A economia, de fato, é apenas um setor da multiforme atividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente” (JOÃO PAULO II, 1996).
Apesar dos momentos históricos de distanciamento e de aproximação entre o Cristianismo e o Liberalismo, desde a Alta Idade Média até o século XX, o que temos na verdade é uma fértil complementaridade. Além da já evidenciada relação entre a Escola de Salamanca e a Economia Austríaca, a Santa Sé age como autoridade moral promovendo a dignidade da pessoa humana, a defesa da paz, o apoio às instituições democráticas e a defesa de uma ordem internacional baseada na justiça e nos direitos (TAURAN, 2002). Podemos concluir que na Economia, no Direito e nas Relações Internacionais, os ideais da liberdade individual e da democracia encontram fundamentação e sustento moral nos princípios do Cristianismo.
Referências:
ACTON INSTITUTE. Luis de Molina (1535–1600). Disponível em: http://www.acton.org/por/pubs/index.php?article=22
ALVES, André Azevedo. Estudo Introdutório. In: HUERTA DE SOTO, Jesús. Escola Austríaca: mercado e criatividade empresarial. O Espírito das Leis: Lisboa, 2005.
FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. Campinas: Papirus, 1988.
FRANCA, L. Ateísmo Militante. [s.d.]. Disponível em: http://revista.permanencia.org.br/filosofia/leonel4.htm
HUERTA DE SOTO, Jesús. Juan de Mariana and the Spanish Scholastics. [s.d]. Disponível em: http://www.jesushuertadesoto.com/fronts ... ariana.htm
HUERTA DE SOTO, Jesús. Escola Austríaca: mercado e criatividade empresarial. Lisboa: O Espírito das Leis, 2005.
JOÃO PAULO II, Papa. Centesimus Annus. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
KENNEDY, Paul. The Rise and Fall of the Great Powers: economic change and military conflict from 1500 to 2000. New York: Vintage Books, 1989.
LEÃO XIII. Rerum Novarum: carta encíclica sobre a condição dos operários. São Paulo: Loyola, 1991.
LUCKEY, William R. The Intellectual Origins of Modern Catholic Social Teaching on Economics: an extension of a theme of Jesús Huerta de Soto. Mises Institute Working Papers, 05 mai. 2000. Disponível em: http://www.mises.org/journals/scholar/Lucky6.pdf
MESLIN, M. A Experiência Humana do Divino: fundamentos de uma antropologia religiosa. Petrópolis: Vozes, 1992.
PERNOUD, Régine. Luz Sobre a Idade Média. Lisboa: Publicações Europa – América, 1997.
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1982.
SCHMITT, Carl. Le Nomos de la Terre. Paris: PUF, 2001.
TAURAN, Jean-Louis. The presence of the Holy See in the International Organizations. Milão, 22 abr. 2002. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/secre ... an_en.html.
TELLEZ, Claudio. O caminho da servidão espiritual. Mídia Sem Máscara, 25 abr. 2005. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=3584
TELLEZ, Claudio. Iluministas e iluminados. Mídia Sem Máscara, 11 jan. 2006. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4475
TELLEZ, Claudio. O preço que se paga. Mídia Sem Máscara, 02 mai. 2006. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4814
TRUYOL Y SERRA, Antonio. Historia del Derecho Internacional Público. Madrid: Tecnos, 1998.
ZAGHENI, Guido. A Idade Contemporânea: curso de história da Igreja. São Paulo: Paulus, 1999. (Curso de História da Igreja, v. 4).
ZILLES, U. Filosofia da Religião. São Paulo: Paulus, 2002.
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