A gênese do socialismo gnóstico
O ponto de partida para o movimento do pensamento de Marx parece ser a posição gnóstica herdada de Hegel. O movimento do intelecto na consciência do ser empírico é a fonte maior de conhecimento. Donde a revolta contra a religião como esfera que reconhece um realissimum para além da consciência. A Dissertação de 1840-41 abre o prefácio com um ataque a Plutarco que ousa criticar Epicuro. A confissão de Prometeus "Numa palavra, odeio todos os deuses" é a sentença lançada contra os que se recusam a reconhecer a autoconsciência humana (das menschliche Selbstbewußtsein ) como a suprema divindade.
O contexto desta afirmação é o debate sobre a existência de Deus. Quaisquer demonstrações são logicamente inválidas. Os deuses são forma real apenas na imaginação e apenas demonstram a existência da auto-consciência humana. Levem papel-moeda para onde ele não é aceite, e logo verão o que acontece. Na prova ontológica, o ser que é dado é a auto-consciência humana. A forma geral das provas é esta: "Como o mundo está mal organizado, ou é irrazoável, Deus tem de existir". Isto apenas significa que Deus só existe para quem o mundo é irrazoável. Marx sumaria o argumento afirmando que a "irrazão é a existência de Deus". A soberania da consciência e a revolta anti-teística de Marx volve-se, depois, contra os sistemas de Aristóteles e de Hegel: de tal modo explicam o mundo que interrompem qualquer avanço ulterior da filosofia. Sendo impossível o aperfeiçoamento, os sucessores devem virar-se para a prática filosófica e para a crítica da situação. A mente teórica deve virar-se como vontade para a realidade mundana que existe independente dela. Esta semi-contemplação não é muito edificante. Marx estava interessado na filosofia pós-aristotélica de Demócrito e Epicuro porque sentia-a, pessoalmente, em paralelo com a situação pós-hegeliana. A cultura religiosa da Idade Média seria da "era da irrazão realizada", mais uma falácia de Marx. Na verdade, quando se atinge o impasse de Hegel e a especulação filosófica se encontra "concretizada", o que um realista espiritual deve fazer, é abandonar a gnose e regressar às experiências originais da ordem, à experiência de fé. A "necessidade" apontada por Marx era apenas um sintoma da sua revolta demoníaca contra Deus. Uma vez concretizada a auto-consciência, não concebia regressar à irrazão da fé; apenas poderia avançar para a liquidação da filosofia, a crítica radical do mundo e a instauração de novos deuses.
A atitude de revolta efectua-se historicamente mediante a incarnação do logos no mundo, por meio da acção revolucionária. Para Hegel o logos estava incarnado na realidade e poderia ser descoberto pela reflexão do filósofo. O desdobramento da Ideia não era acção humana. A gnose era contemplativa. A definição da figura histórica como pessoa cujas acções se conformam a movimento da ideia não é receita para se tornar uma figura histórica. Esta perversão da gnose activa surge com Marx.
Marx era um paráclito sectário no mais puro estilo medieval, um homem no qual o logos se incarnara e através de cuja acção a humanidade se tornaria o receptáculo do logos tal como Comte, por exemplo. Não concebeu o espírito como um transcendental que desce para o homem, mas como a verdadeira essência do homem que se revela. O verdadeiro homem deve ser emancipado das cadeias. A sua auto-consciência divina é o fermento da história. A grande revolução trará o grande homem. A pneumopatologia de Marx consiste nesta auto-divinização e auto-salvação do homem; o logos intramundano é proclamado contra a ordem espiritual do mundo.
3.2. Teses sobre Feuerbach
Após o estudo do cerne do pensamento de Marx vejamos a Crítica das Teses de Feuerbach, um verdadeiro dicionário de conceitos marxianos. Se estudadas na sua sequência de 1 a 11, seguimos o curso da pseudo-lógica. Mas se invertermos parcialmente a ordem, (11,6,7,4,8,3,1,9,10) compreendemos a especulação . Aponta-se o conflito entre filosofia e não-filosofia na tese 11: "os filósofos só interpretaram o mundo; trata-se agora de o mudar". Mas repare-se que "interpretação" e "mudança" não equivalem a "teoria" e "prática" de Aristóteles. Claro que a função do bios theoretikos é interpretar o mundo e ninguém sério sustenta que a contemplação é um substituto da prática. A prática tem relevância (es kommt darauf an). Ademais apenas se pode agir no mundo e não mudá-lo. A intenção de incorporar na prática uma atitude só é possível em contemplação. A "prática" de Marx pode mudar o "mundo" porque o mundo é compreeendido como fluxo de existência, no qual a ideia se move concretamente. O logos não é uma ordem espiritual, mas uma ideia movendo-se dialecticamente dentro do mundo. Esta praxis pseudológica é atingida se nos lançarmos ao fluxo.
O "mundo" é o fluxo concreto de história. Não existe outro destino senão o social. Marx critica Feuerbach que dissolveu psicológicamente a religião como construção ilusória do homem mas ainda deixou o homem como entidade individual. Para Feuerbach, Deus é a essência do homem, Homo homini Deus. Agora, o espectro de Deus deve ser abatido. Na Tese 6 mostra-se insatisfeito com a dissolução de Feuerbach. Afinal o indivíduo mais não é senão a totalidade das relações sociais. É o meio social que nos confere crenças (Tese 7). É esse o facto da auto-alienação religiosa; e Feuerbach reduziu o mundo religioso à base mundana. Mas falta saber por qual razão a base mundana se separa de si própria e se fixa um céu. A contradição na base mundana tem de ser compreendida e revolucionada. (Tese 4).
A vida social é essencialmente prática (Tese 8). A vida não tem dimensão pessoal nem dimensão contemplativa. Todos os mistérios que poderiam induzir o misticismo em teoria, encontram a sua solução racional na prática humana. Marx leva a cabo o fechamento hermético ou clausura do fluxo de existência prática contra todos os desvios e contemplações e condena tentativas de produzir a mudança social mediante a educação. As circunstâncias apenas podem mudar através da acção humana. A auto-transformação é a "prática revolucionária" (3). A ideia de um sujeito de conhecimento e de moral distinto de objectos de conhecimento e acção moral deve ser abolida e o sujeito concebido como objeccional, gegenstäntdliche, e a actividade humana como actividadde objeccional. A realidade deve ser concebida como actividade humana sensorial (sinnliche menschliche Tätigkeit.) (1). Em termos de tradição filosófica, a prática revolucionária é definida como fluxo existencial em que o sujeito é objectificado e o objecto subjectivado. É essa a posição da humanidade social enquanto distinta do homem individual burguês bürgerliche, (9 e 10).
Karl Marx (1818-1883) por Eric Voegelin. Tradução de Mendo Castro Henriques.
A gênese do socialismo gnóstico
A gênese do socialismo gnóstico
"Noite escura agora é manhã..."