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O escárnio diário de Ahmed

Enviado: 20 Jul 2006, 12:24
por spink
El País


O escárnio diário de Ahmed

Islâmicos submetem a vergonha pública um estudante gay e o expulsam da residência universitária

Ignacio Cembrero
em Fez, Marrocos

"Você é como um vírus que é preciso exterminar. " Quando escutou quatro barbudos pronunciarem essa frase, um mês atrás, Ahmed (nome fictício) pensou que sua sorte estava lançada. Naquela noite quatro estudantes islâmicos vieram buscá-lo em seu quarto do colégio maior Dar el Mahraz, da Universidade de Fez, onde escutava música com outros companheiros.

Perguntaram se era homossexual e Ahmed, 26 anos, estudante de ciências econômicas que nunca dissimulou sua orientação sexual, respondeu afirmativamente. Então o obrigaram a acompanhá-los até o campus, e quando ele viu os islâmicos ali concentrados seus piores temores se confirmaram: iam "julgá-lo" por ser gay.

Cerca de 400 islâmicos, na maioria homens maduros que não eram estudantes, formavam no meio do campus um círculo compacto que impedia que os demais se aproximassem. Vestindo chilabas ou camisas, muitos deles usavam paletós, apesar do calor da primavera, provavelmente para esconder armas brancas que não chegaram a mostrar.

Alguns pertenciam às juventudes do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD), a principal força de oposição parlamentar, enquanto os demais eram membros do Justiça e Caridade, o grande movimento islâmico ilegal mas tolerado. Curiosamente, os primeiros foram mais veementes com o jovem homossexual.

Sentado no meio dos barbudos, Ahmed foi acusado não só de ser gay como de ter praticado sexo no colégio maior - afirmaram possuir depoimentos gravados - e de provocar, gabando-se de sua orientação sexual.

"Respondi que sim, que era gay, como centenas de milhares de marroquinos, incluindo muitos outros estudantes de Fez e vários professores que o escondem", ele lembra, ainda assustado, em um restaurante da cidade. "Também gritei que eu não faço mal a ninguém, que nunca pratiquei sexo no recinto universitário e que dessem provas de suas acusações."

Pouco depois da meia-noite, depois de três horas de audiência salpicadas de insultos em coro pela assembléia, os 24 membros do "júri" começaram a deliberar. Dois eram a favor de que ele recebesse 20 chicotadas e fosse excluído da universidade; quatro opinaram pelo desterro da cidade; cinco pela expulsão da faculdade mas sem chicotadas; e 13, a maioria, por obrigá-lo a abandonar a residência universitária e permitir que assistisse às aulas e fizesse exames, mas sob condições.

A "sentença" estipula que Ahmed não poderá atravessar o campus e deverá entrar na faculdade por uma porta traseira. Só poderá permanecer nela o tempo necessário, sem estender-se conversando com outros estudantes nem freqüentando a lanchonete. O descumprimento acarretará maiores sanções, possivelmente até físicas.

Depois da 1 da madrugada quatro barbudos escoltaram Ahmed até seu quarto para que recolhesse seus pertences. "Eu lhes pedi, supliquei, que me deixassem passar uma última noite no colégio maior porque não sabia para onde ir àquela hora, mas negaram", lembra o "condenado". Insistiram que era preciso executar o "veredicto". "Acredite-me, são psicoterroristas."

Escaldado por uma experiência anterior com um semanário marroquino, Rachid el Aduni, um militante do PJD e membro do "júri", se recusou a dar entrevista a este correspondente. "A legislação marroquina, e também a lei divina, proíbem a homossexualidade, e nós só fizemos aplicá-la", ele concorda a duras penas a explicar por telefone, depois de lembrar que a polícia quase nunca entra no recinto universitário.

O artigo 489 do Código Penal prevê penas de seis meses a três anos de prisão e multas de 11 a 110 euros para os homossexuais, mas faz tempo que os tribunais não pronunciam nenhuma condenação.

A polícia efetua de vez em quando uma batida. Uma das mais ruidosas
ocorreu em junho de 2004 em Tetuan, onde foram detidas 43 pessoas que festejavam um aniversário. A mobilização internacional levou Rabat a libertá-las depois de alguns dias.

Sentado na cantina da universidade, Mohamed el Yubi, líder da juventude da Via Democrática, um grupo de extrema-esquerda que ainda goza de certa implantação universitária, confirma a versão do escárnio narrada por Ahmed.

Também é corroborada por Bennur Hucine, secretário da seção local da Associação Marroquina de Direitos Humanos. "Com o pseudo-julgamento, os barbudos não tentaram só infligir um castigo exemplar a um homossexual", afirma El Yubi. "Também fizeram uma demonstração de força depois de perder uma batalha."

Três semanas antes os islâmicos foram derrotados em uma grande assembléia quando tentaram impor o fechamento da residência feminina às 9 da noite. "Nós os vencemos argumentando que a biblioteca fica aberta até as 12 e elas vão ali estudar", acrescenta.

Mas se El Yubi e seus correligionários, que controlam o grêmio universitário em Fez, são contra a expulsão de Ahmed, "que nunca caiu na provocação", também se mostram convencidos de que o estudante "está doente". "Seria preciso dar-lhe apoio psicológico, convencê-lo a procurar um médico para se tratar", salienta Aziz, outro militante da Via Democrática.

Ahmed lembra com emoção contida a "noite infernal" de sua exclusão e finalmente chega às lágrimas quando fala de seus pais em Taza, uma localidade entre Fez e Melilla. "Através da família de um rapaz de Taza que estuda aqui, eles souberam que sou gay", afirma, acabrunhado.

"Desde que soube disso meu pai não pára de repetir, segundo me contou um irmão, que não sou seu filho, e minha mãe se nega a falar comigo por telefone", lamenta. Pela primeira vez neste verão Ahmed não passará as férias na casa da família em Taza. "A única coisa que me resta agora é o trabalho" - em tempo parcial num ateliê têxtil -, com o qual paga seus estudos. "O dono é um homem religioso e temo que a qualquer momento alguém lhe revele meu segredo e ele me demita", afirma, angustiado. "Quando me expulsaram da residência pensei em ir para outra cidade, pensei até em me suicidar, mas me contive. Mas se perder o emprego...."

"Olhe, aqui no Marrocos os gays não queremos casar nem que reconheçam nenhum direito nosso", conclui, em tom de súplica. "Bastaria que nos deixassem em paz. "

É pouco provável que isso aconteça em uma sociedade cada vez mais impregnada de religiosidade e na qual Mohamed Asseban, membro do conselho dos ulemás (doutores do Islã) de Rabat, ainda defende a "fogueira para os homossexuais".