Bernard Lewis - respaldo ideológico à invasão americana
Enviado: 02 Ago 2006, 09:50

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Entre os vários intelectuais responsáveis por dar respaldo ideológico à invasão norte-americana do Iraque, iniciada em 2003, os ditos neoconservadores, encontra-se um arabista de grande nomeada: Bernard Lewis. Trata-se de um erudito, nascido em Londres em 1916, autor de uma respeitável bibliografia sobre os povos árabes e a história do mundo islâmico em geral. Foi dele que, num encontro com o vice-presidente Dick Cheney, teria partido as palavras finais de estímulo a que a guerra tivesse pronto andamento: "Ande com isso. Não vacile!".
A favor da invasão
Não só isso, abandonando as naturais reservas de um acadêmico, Lewis foi um dos primeiros intelectuais a tocar os tambores de guerra. Ao publicar artigos no The Wall Street Journal, intitulados “A War of Resolve” (Uma guerra por resolver) e “Time for Toppling” (Tempo de derrubar) recomendou o imediato emprego da solução militar no Oriente Médio, especialmente contra o ditador iraquiano, não importando se houvesse ou não ligações dele com a Al-Qaeda. Expoente do liberalismo britânico, ele não vê nenhuma contradição entre a adesão ao ideário de John Locke, Adam Schmitt e John Stuart Mill, e a pregação em favor da submissão militar de territórios ou países hostis aos valores do Ocidente.
Para ele, como para Paul Wolfowitz, outro ideólogo neoconservador, tanto Saddam como Osama Bin Laden fazem parte de uma “civilização doente”, que rejeita, por pura paixão ao atraso e ao fanatismo, o processo de modernização. Ambos seriam reflexos da tradição tribal árabe imune à argumentação e à racionalidade, que somente podem ser curvados pela presença da força, pelo barulho atemorizador dos bombardeios e pela ocupação direta. Lewis praticamente fez suas as palavras outrora proferidas pelo marechal Bugeaud, o conquistador francês da Argélia, entre 1840-47, a um seu subordinado: "les arabs ne comprennent que la force brutal" "os árabes não compreendem senão a força bruta" (in Mostafa Lacheraf - L'Argelie, p.92)
O modelo Kemalista
Bernard Lewis, ainda no seu tempo de acadêmico em Londres, onde se doutorara pela universidade local, em 1939, fora um dos primeiros estudiosos ocidentais a ter acesso aos arquivos do Império Otomano por ocasião da visita que fez a Istambul, a convite, nos começos da década de 1950.
Naquela oportunidade, ainda que folhasse páginas do medievo otomano - tempo de esplendor o oposto a Era das Trevas da Europa feudal - deixou-se fascinar pela obra política de Mustafá Kemal Atatürk, o general-estadista que, entre 1923 e 1938, ergueu a Turquia moderna dos escombros deixados pelo decadente e corroído sultanato, derrotado na guerra de 1914-18. Com a espada em riste, como tantos outros modernizadores, tal como o profeta armado de Maquiavel, ele varreu do antigo sultanato otomano tudo aquilo que pudesse lembrar o arcaísmo asiático dos seus conterrâneos, inclusive abalando-lhes os dogmas da religião.
A reforma laica imposta de cima para baixo, narrada de modo entusiástico no seu livro The Emergence of Modern Turkey (1961), onde procurou vê-la não pelas lentes européias, passou desde então a ser celebrada por Lewis como a única solução para uma região que desconhecia a existência de instituições liberais e de prática democrática. Explicou a decadência otomana não tanto como resultante de uma espantosa ascensão tecnológica dos paises ocidentais, mas principalmente provocada pela soberba da cultura islâmica, que, por altivez cega, não estimulou as reformas e mudanças necessárias para que a gente do Profeta pudesse também progredir nos campos do conhecimento científico.
Para ele, a petrificação/estagnação que ocorreu por grande parte do Quadrilátero Árabe e regiões circunvizinhas deveu-se em razão do Mundo Muçulmano, com exceção da Turquia kemalista, querer viver num planeta à parte, fechado aos novos costumes e desinteressado em inovações outras que lhe chegam de fora. Esta alienação da realidade moderna lhe teria sido fatal, jogando-o na rabeira do conhecimento cientifico e tecnológico contemporâneo.
O choque das civilizações
Parte de sua simpatia para com o ocorrido na Turquia, por igual advinha da pouca hostilidade do governo de Ancara para com Israel. Lewis, de origem judaica, foi levado a concluir que esta inédita posição de tolerância dos otomanos em relação ao Estado Judeu decorrera da ocidentalização promovida há muitos anos antes por Kemal.
Quando ele se mudou para os Estados Unidos, em 1974 ( fora convidado pela Universidade de Princeton, para atuar no Centro de Estudos Avançados H.G.Wells, e depois integrando a Universidade de Cornell, entre 1986-90), tornado-se um eminente consultor do Departamento do Estado para os assuntos geopolíticos do Oriente Médio, Lewis defendeu uma articulação estratégica triangular que envolvesse o Estado de Israel, o governo turco e os Estados Unidos, no sentido deles evitarem a presença dos soviéticos e exercerem uma pressão firme sobre os países da região mais relutantes em aderirem à ocidentalização. (*)
A posição que ele alcançou a partir da década de 1970 como estudioso da história do Oriente Médio atingiu a tais alturas que qualquer política recomenda por ele era automaticamente aplicada devido à autoridade que gozava junto ao establishment norte-americano . Lewis passou a ser chamado entre seus colegas de “deão do Oriente Médio”.[ver R. Stephen Humphreys - Bernard Lewis: An Appreciation. Humanities, vol. 11, no. 3 (May/June 1990), pp. 17-20].
Ele é quem cunhou a expressão “choque de civilizações”, surgida num ensaio intitulado “The Roots of Muslim Rage”, “As raízes da fúria muçulmana”, publicado em 1990, e que depois foi apropriada por Samuel Huntigton para enfatizar a permanência do desentendimento entre o Ocidente e o Islã. Portanto, ele entende que a hostilidade árabe à presença de Israel deve-se basicamente a uma teimosia arcaica dos seus vizinhos e à perene existência de estruturas políticas islâmicas antidemocráticas. Somente com a remoção delas é que o Estado Judeu gozará da paz.
(*) O plano mais audacioso em que ele se envolveu naquela ocasião foi dar apoio ao projeto Arco de Crises proposto por Zbigniew Brzezinski, durante a administração Jimmy Carter ( 1976-1980), que também se chamou de Plano Bernard Lewis, para provocar rebeliões fundamentalistas da Irmandade Muçulmana por todo o sul da União Soviética. O resultado prático foi um tiro pela culatra, pois quem terminou sendo derrubado naquela ocasião foi o Xá Reza Pahlevi, ditador do Irã e aliado dos Estados Unidos.
O Plano Lewis de balcanização do Oriente Médio
De certo modo, ainda que não confessada de público, o Departamento de Estado, durante a administração Bush filho, orienta-se pelo Plano Lewis para o Oriente Médio, cujo primeiro esboço foi apresentado por ele no Encontro de Bilderberg, em Baden, na Áustria, em 27-29 de abril de 1979. O ponto de partida teórico aposta na necessidade de implodir com a atual formação dos estados-nacionais da região através do estímulo dos serviços de inteligência anglo-saxões e israelenses em apoio a que ocorram rebeliões étnicas separatistas, visando à destruição do sistema político lá existente.
O Iraque, por exemplo, seria dividido em dois estados, um sunita e o outro xiita; o Irã daria abrigo a três (Turcomenistão ao norte, Pérsia ao centro e Arabistão ao sul); o mesmo se dando com o Afeganistão (dividido entre o Beluquistão e o Puchtunistão). Todo o mapa do Oriente Médio seria pois redesenhado, provocando a balcanização (fracionamento dos territórios) e sua libanização (todos eles envolvidos em guerras civis internas nas quais os grupos étnicos disputariam o poder uns contra os outros).
Em síntese, o plano tem por objetivo geral:
1 - Retomar a ancestral política do Império Romano que exercia sua autoridade sobre amplos territórios fracionados, controlados por grupos "romanizados" favoráveis ao controle externo.
2 - A atomização do Oriente Médio é possível devido o fracasso do pan-arabismo impulsionado por Gamel Nasser nos anos 50 e 60 do século XX, surgindo no seu vácuo uma miríade de pequenos estados, dilacerados internamente por conflitos étnicos- religiosos e hegemonizados pelas potencias anglo-saxãs.
3 - Fazer desaparecer o Líbano, partilhado por uma Grande Síria e por um Grande Israel.
4 - Impedir que algum estado-nacional do Oriente Médio, totalmente "desconstruído", fosse forte o suficiente para impor uma política petrolífera que ameaçasse os interesses dos consumidores ocidentais e das companhias que os abastecem. O desenvolvimento econômicos deles, com o fim da independência, estaria inteiramente nas mãos das potências externas (isto é, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha), formando uma "comunidade de princípios".
Em busca de um novo Kemal
O grande plano neocolonialista de Bernard Lewis para o Oriente Médio
Falta-lhes, pois, um novo Kemal para conduzi-los à modernidade ainda que a cabresto e aos empurrões. Quando ocorreu o ataque suicida às Torres Gêmeas de Nova York e ao Pentágono em Washington, em 11 de setembro de 2001, Lewis sentiu que a ocasião favorecia uma política de guerra aberta contra os bolsões antiocidentais do Oriente Médio: particularmente contra Saddam Hussein.
Viu no desastre a oportunidade de aplicar no Iraque uma “modernização kemalista”, cujo instrumento operacional seria a estratégia do Shock and Awe, o Choque e Pavor, proposto por Donald Rumsfeld, o secretário da defesa do governo republicano e chefe do Pentágono, sendo que o lugar do grande reformador seria preenchido pelo presidente George Bush, alçado por ele à honrosa posição de agente da tão necessária ocidentalização democrática do Oriente Médio.
De certo modo, isso é que explica a disposição norte-americana, aliada à britânica, em seguida à invasão e ocupação, em agir como se fossem deus ex-machina, “redesenhando” inteiramente o país árabe, depondo-lhe o governo, impondo-lhe uma nova moeda, abolindo com seu exército e sua bandeira nacional, arranjando-lhe eleições, bem como lhe redigindo uma nova constituição, ao tempo em que o dotou de uma direção política colaboracionista tendo à frente o ex-banqueiro Ahmed Chalabi, um escroque e homem ligado a Lewis, configurando-se assim na maior operação colonialista que o mundo assistiu desde o término da Segunda Guerra Mundial. Tudo isso amparado por votações nacionais organizadas por John Negroponte, o diplomata norte-americano perito em fabricar urnas favoráveis aos interesses norte-americanos e que foi sucessor do procônsul Paul Bremer em Bagdá, entre 2004 e 2005.
O fracasso de Lewis, para algum dos seus críticos, materizalizado na explosão incontida de violência por quase todo o Iraque e no atoleiro em que se encontram as forças armadas dos Estados Unidos e seus coligados, deve-se à visão equivocada que ele tinha originalmente do panorama histórico do Oriente Médio. Lewis viu lá o conflito entre uma civilização que se encontra no seu zênite, a Ocidental, presente na área pelos Estados Unidos e seu aliado, o Estado de Israel, em aberto confronto com uma civilização estagnada, presa ao fanatismo religioso e ao atraso: a muçulmana.
Por conseguinte, como se fora um cruzado acadêmico, não viu mal algum em estimular a conquista militar de alguns países muçulmanos, ou a subversão deles, para que os padrões ocidentais do progresso e da democracia penetrassem em meio aquele solo teimoso dominado pelos mulás ignorantes e pelas tiranias locais, quando na verdade o conflito central ocorre, e isso desde o século 19, entre o colonialismo ocidental e o real, legítimo e profundo desejo de autonomia e independência dos povos daquela parte do mundo.
Bernard Lewis, recorrendo-se à terminologia de Gramsci, é um intelectual orgânico do império anglo-saxão. Poder a quem por primeiro ele serviu na Inteligência Militar Britânica e no British Foreign Office, e, depois, nos Estados Unidos, como agregado ao Departamento de Estado. Ideologicamente ele é um anacronismo, uma lembrança ainda viva do liberalismo dos tempos de Gladstone, condescendente com a expansão imperial e inabalável na sua crença no papel civilizador e humanitário do Ocidente e fé na missão do homem branco em regenerar as demais raças da terra: um cruzado acadêmico enfim.
(*) O maior opositor de Lewis no meio acadêmico, o palestino-americano Edward Said, falecido em setembro de 2003,. argumentou no seu “Orientalismo”, aparecido em 1978, que praticamente todos os modernos estudos sobre o Islã feitos no Ocidente não passam de ferramentas para o exercício da dominação imperialista e que a tão afanosa procura por conhecimento nada mais é senão que a procura do poder. O Orientalismo é um tipo de racismo, um estereótipo que tende a ver o Islã como algo estático, imune à racionalidade e em permanente mobilização contra o Ocidente (ver Michael Hirsh – Bernard Lewis revisited, in Washington Monthly, nov. 2005, e também em E.Said – Cultura e Imperialismo, pág.324-5). Afirmação que se aplica pelo menos no caso de Napoleão Bonaparte que inspirou sua campanha de conquista do Egito, de 1798-1801, na obra do conde de Volney, Voyage en Egypte et en Syrie, 2 v. editados em 1787. E, anterior a todos, o impacto que o relato de Xenofonte "Anábasis", a retirada dos mercenários gregos de dentro do Império Persa, causou na imaginação do jovem príncipe Alexandre da Macedônia.
A polêmica Said-Lewis, travada nas páginas do The New York Review of Books, entre junho-agosto de 1982, de certa forma trazia para dentro do circuito universitário norte-americana os desacertos entre os palestinos e Israel.
Principais livros de Bernard Lewis
"Os árabes na História". Lisboa: Editora Estampa, 1999.
"Os assassinos" – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
"A crise do Islã – Guerra Santa e terror profano". Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
"The emergence of modern Turkey". Oxford-USA, 2001.
"O Oriente Médio". Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
"O que deu errado no Oriente Médio". Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
"A Middle East Mosaic". Nova York. Random House, 2000.