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Todos os gatos são pardos?

Enviado: 16 Ago 2006, 07:18
por Pug
Todos os gatos são pardos?

Anteontem, os primeiros sinais eram encorajadores: quer Israel quer o Hezbollah pareciam estar a respeitar o cessar-fogo decretado pelas Nações Unidas, e as populações que a guerra deslocara do Sul para o Norte do Líbano começavam a regressar a casa (ou às suas ruínas). Nesse mesmo dia, porém, um dos jornalistas mais bem informados sobre os conflitos do Médio Oriente, Robert Fisk, previa no The Independent, a partir de Beirute: "A guerra real começa agora." E começará, ainda segundo Fisk, com desvantagem notória para Israel, num terreno onde a guerrilha do Hezbollah estará em condições mais propícias para fustigar o exército judaico. Por outras palavras, Israel teria caído na armadilha tecida pelo inimigo, cuja capacidade de resistência e resposta havia subvalorizado.

Apesar do impacto destruidor dos ataques aéreos, os israelitas não foram capazes de fazer avançar a ofensiva terrestre até atingirem a fasquia que se propunham atingir: a neutralização do Hezbollah ou, pelo menos, a criação de uma zona-tampão que tornasse Israel invulnerável ao alcance dos mísseis islâmicos. O cepticismo sobre o desarmamento do Hezbollah - ao arrepio das proclamações retóricas da ONU - acentuou-se, designadamente no interior de Israel, onde o Governo de Olmert passou do estado de graça a uma dramática queda de confiança entre a população.

Num país que vive, aliás justificadamente, sob um complexo de cerco, o sentimento de insegurança parece ser hoje maior do que nunca: é agora que se pode medir a verdadeira "desproporção" da aventura libanesa, entre o que prometia - apesar dos seus terríveis custos humanos - e a problemática escassez dos seus resultados, além dos efeitos "colaterais". A política de separação "unilateral" com a Palestina, simbolizada pelo muro entre os dois territórios, tornou-se subitamente obsoleta, a partir do momento em que, pela primeira vez, Israel se mostrou vulnerável aos mísseis inimigos. A superioridade israelita deixou de constituir um efectivo factor de dissuasão para ser substituída pelo fim do mito da invulnerabilidade militar e tecnológica. É por isso compreensível que o Hezbollah e os Estados que o apoiam - o Irão e, secundariamente, a Síria - reclamem uma vitória que não será apenas simbólica.

A comparação com o desastre americano--britânico no Iraque é inevitável. Dois tremendos erros de cálculo, dois devastadores efeitos de boomerang para duas aventuras militares em que a subavaliação das respectivas consequências e da capacidade de resposta do inimigo acabaram por reforçá-lo e conceder-lhe uma aura de legitimidade e até de heroísmo no interior do mundo islâmico. Israel, embora directamente familiarizado com a realidade do Médio Oriente, não escapou ao efeito do complexo de cerco e respondeu à provocação do Hezbollah em estreito mimetismo com a cegueira imperial americana.

O autismo ideológico e securitário fez Israel, os Estados Unidos e os seus aliados incondicionais no Ocidente perderem a visão estratégica e política da diversidade e complexidade do fenómeno terrorista, misturando águas que deveriam estar separadas e, nessa medida, favorecendo objectivamente a aliança entre os diferentes (e até, por vezes, ferozmente conflituais) ramos do extremismo muçulmano.

A insuspeitíssima revista Time detalhava, na sua penúltima edição, os motivos pelos quais a actual crise do Médio Oriente "não tem realmente a ver com terrorismo" e porque é que Bush, insistindo nesse equívoco, se mostrava incapaz de enfrentar a situação. É que para Bush - tal como para Blair ou para o Governo israelita - tem de existir forçosamente uma conexão entre o Hamas, o Hezbollah e a Al-Qaeda, quando, na verdade, a natureza e os objectivos dos três movimentos não são redutíveis a um tronco comum da nebulosa terrorista. Como explicava esta semana Max Hastings, no The Guardian, enquanto não se distinguirem os reais ressentimentos islâmicos no Médio Oriente da paranóia homicida da Al-Qaeda não se encontrarão respostas para a ameaça do terrorismo global. É isso também que separa, no fundo, a justa réplica americana ao 11 de Setembro no Afeganistão da louca aventura no Iraque que, desde então, mergulhou a diplomacia dos Estados Unidos em estado de coma.

Fazer durar este equívoco trágico significa fortalecer a própria invisibilidade do terrorismo global, apesar do sucesso da operação britânica que levou, há poucos dias, ao desmantelamento de um remake porventura ainda mais terrífico do 11 de Setembro. A coincidência entre a crise no Médio Oriente e a nova conspiração terrorista mostra que, de noite, todos os gatos são pardos. Só que, neste caso, eles são pardos porque a ideologia de quem os observa é cega - e nocturna.

DN