De favelas para subúrbios
Enviado: 25 Ago 2006, 13:57
Financial Times
Jimmy Ávila lembra que contornava o esgoto a céu aberto quando ia para a escola em Diadema, uma cidade de cerca de 400 mil habitantes na periferia sul de São Paulo. No início dos anos 90, a casa rústica de tijolos e cimento de Ávila na Avenida das Nações dava para filas de outros barracos feitos de madeira e chapas de ferro. Traficantes vendiam crack nas esquinas.
"As pessoas aqui não tinham expectativas e havia realmente grandes frustrações. A maioria das crianças tinha visto alguém morrer e era um lugar muito difícil para a polícia entrar", diz Ávila, 25, que trabalha como pesquisador e estuda economia.
Cerca de uma década depois, Diadema está transformada. A administração local, dirigida há mais de duas décadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT, de centro-esquerda, na presidência), asfaltou ruas, instalou iluminação pública e fundou mais de uma dúzia de bibliotecas e centros culturais.
Apoiada por organizações não-governamentais e empresas locais, a polícia atacou o tráfico de drogas. O índice de homicídios - entre os mais altos do Brasil no final dos anos 90 - caiu quase pela metade em sete anos.
A região ainda é pobre, mas nas ruas principais de Diadema há restaurantes pintados em cores fortes, salões de beleza e barracas de suco de frutas. As crianças jogam futebol e nadam em um conjunto esportivo bem equipado, financiado por empresários locais. De uma estação rodoviária, ônibus modernos levam os moradores até a rede de metrô de São Paulo, atingindo o centro da cidade em pouco mais de uma hora.
A transformação de Diadema de uma favela perigosa em um bairro estável da classe trabalhadora faz parte de uma mudança maior nas cidades latino-americanas. A escala da pobreza urbana ainda é enorme, assim como a extensão da violência, salientada pelos recentes ataques a policiais em São Paulo (embora isso tenha mais a ver com problemas do sistema de justiça criminal brasileiro do que com a organização das cidades).
Mas em cidades de toda a região governos locais mais eficazes, o envolvimento da comunidade e do setor privado, a estabilidade econômica e um declínio da migração rural estão contribuindo para uma melhora das condições urbanas. Embora ainda apresente muitos defeitos, a experiência latino-americana encerra lições para países da Ásia e da África em um estágio anterior do processo de urbanização, e sugere que, com as políticas certas, muitos de seus problemas afinal são superáveis.
Tudo isso está muito distante da situação da região nos anos 60 aos 80, quando a simples escala e velocidade da expansão urbana superou a capacidade do setor público ou das empresas de fornecer moradia, empregos e infra-estrutura. A migração rural e as mudanças sociais e demográficas, incluindo a ruptura de grandes famílias, transformaram o que eram economias principalmente agrícolas em uma das regiões mais urbanizadas do mundo.
Três em cada quatro latino-americanos vivem em cidades (Rio de Janeiro, Buenos Aires, Cidade do México e São Paulo) que estão entre as 15 maiores do mundo. Desde 1870 São Paulo, a maior cidade da América do Sul, dobrou de tamanho em média a cada 14 anos, um índice de expansão mais rápido do que qualquer outra cidade da história, segundo Norman Gall, diretor do Instituto Braudel, um grupo de pensadores econômicos locais.
As reações iniciais complicaram a questão. No Rio, as autoridades agiram fisicamente para eliminar as favelas que haviam crescido nos morros, separando bairros de classe média. Os moradores das favelas foram enviados para conjuntos mal-planejados como a Cidade de Deus, que ficou famosa no premiado filme homônimo, a quilômetros de distância de serviços, empregos e lazer.
As autoridades de São Paulo removeram os favelados para prédios de apartamentos, só para descobrir que eles rapidamente abandonavam suas novas casas pois não podiam pagar as contas, ou tentados pelo dinheiro da venda ou sublocação. "Foram fracassos extremamente dispendiosos", diz Eduardo Rojas, um especialista em desenvolvimento urbano do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Washington.
Gradualmente, porém, os políticos mudaram de abordagem. Em vez de eliminar as favelas do mapa, as autoridades procuraram civilizá-las e integrá-las ao tecido urbano. As ruas foram asfaltadas, encanamentos e linhas elétricas estendidas a terrenos invadidos. Outras medidas, que vão da colocação de nomes nas ruas e números nas casas para garantir os títulos legais de propriedade, foram características dessa abordagem, assim como iniciativas para criar escolas, clínicas e policiamento regular.
"É importante definir a presença do Estado", diz Jorge Wilheim, um importante arquiteto e planejador urbano brasileiro. "As pessoas precisam acreditar que o governo existe."
Uma das iniciativas mais ambiciosas ocorreu no Rio, onde a autoridade local (financiada pelo BID) desde 1995 tentou integrar mais de 60 favelas ao tecido urbano através de reformas na infra-estrutura e melhoras nos serviços.
A estabilidade econômica ajudou. Desde meados dos anos 90 a maioria dos governos em toda a região administrou as finanças públicas com maior eficiência, com quedas resultantes na inflação. As taxas de juros no Brasil ainda são altas, mas no Chile e no México elas caíram a tais níveis que foi possível desenvolver um mercado de hipotecas.
Isso, combinado com novas técnicas de construção que utilizam materiais pré-fabricados, levou as hipotecas baratas ao alcance dos pobres urbanos.
Enquanto isso, as empresas estão despertando para o que o acadêmico indiano C.K. Prahalad descreve como "a fortuna na base da pirâmide" - as oportunidades existentes no fornecimento de serviços para o vasto número de pessoas confinadas à economia informal.
O progresso, porém, continua lento e desigual. Um problema ressaltado pelo BID em um relatório recente é a governança. A América Latina, com suas fortes tradições de governo autoritário e centralizado, abraçou a idéia de governos locais eleitos há somente cerca de 20 anos.
Os governos locais tendem a ter poucos recursos: enquanto na Europa ou nos EUA 35% dos gastos públicos são dirigidos por estruturas de governos locais, a porcentagem é de apenas 20% na América Latina, em média. Mais importante, o crescimento urbano foi tão rápido que muitas vezes tornou muitas divisões administrativas irrelevantes.
A tendência da América Latina à burocracia piora as coisas. Rojas, do BID, diz que um governo local mais eficaz e com mais recursos será um ingrediente essencial para abordar o problema habitacional da região.
Ele compara cidades como São Paulo e Rio de Janeiro a adolescentes em rápido crescimento. "Seu cérebro ou governança não é capaz de acompanhar a velocidade de crescimento dos membros."
Em São Paulo, por exemplo, o labirinto administrativo borra os limites da responsabilidade. A cidade é dividida em 96 distritos agrupados em 28 administrações regionais, mas estas se sobrepõem a inúmeras outras unidades de planejamento criadas por órgãos federais, estaduais e municipais. Um dos motivos para o sucesso de Diadema é que seu estatuto de município a distingue da cidade propriamente dita, diz Gall.
Não há garantia de que os urbanistas e políticos não repetirão erros, como descobriram recentemente moradores da favela do Gato em São Paulo.
Pouco antes das eleições locais em 2004, o governo da cidade arrasou o denso bairro de barracos de madeira e ferro corrugado e transferiu cerca de 500 famílias para novos apartamentos especialmente construídos.
Dois anos depois, os desenvolvimentos comunitários prometidos não se materializaram. Mais de um quarto dos residentes venderam suas casas para estranhos mais ricos. E no mês passado, depois de várias advertências de falta de pagamento, a companhia de eletricidade cortou a energia de 200 famílias. Sentado diante de um posto de segurança abandonado na entrada de um conjunto, Sassá, um ex-operário da construção grisalho que dirige a associação dos moradores, afoga suas mágoas num copo plástico de cachaça.
"Fomos abandonados. Estou realmente decepcionado", ele diz.
Mas existem outros exemplos opostos e poderosos. Uma sensação generalizada de que as condições dos pobres urbanos estão melhorando deverá dar a vitória ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva - ele também um produto da épica migração brasileira do norte rural para as cidades industriais do sul - nas eleições de outubro. E, pelo menos em Diadema, parece que São Paulo está virando uma esquina.
Jimmy Ávila lembra que contornava o esgoto a céu aberto quando ia para a escola em Diadema, uma cidade de cerca de 400 mil habitantes na periferia sul de São Paulo. No início dos anos 90, a casa rústica de tijolos e cimento de Ávila na Avenida das Nações dava para filas de outros barracos feitos de madeira e chapas de ferro. Traficantes vendiam crack nas esquinas.
"As pessoas aqui não tinham expectativas e havia realmente grandes frustrações. A maioria das crianças tinha visto alguém morrer e era um lugar muito difícil para a polícia entrar", diz Ávila, 25, que trabalha como pesquisador e estuda economia.
Cerca de uma década depois, Diadema está transformada. A administração local, dirigida há mais de duas décadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT, de centro-esquerda, na presidência), asfaltou ruas, instalou iluminação pública e fundou mais de uma dúzia de bibliotecas e centros culturais.
Apoiada por organizações não-governamentais e empresas locais, a polícia atacou o tráfico de drogas. O índice de homicídios - entre os mais altos do Brasil no final dos anos 90 - caiu quase pela metade em sete anos.
A região ainda é pobre, mas nas ruas principais de Diadema há restaurantes pintados em cores fortes, salões de beleza e barracas de suco de frutas. As crianças jogam futebol e nadam em um conjunto esportivo bem equipado, financiado por empresários locais. De uma estação rodoviária, ônibus modernos levam os moradores até a rede de metrô de São Paulo, atingindo o centro da cidade em pouco mais de uma hora.
A transformação de Diadema de uma favela perigosa em um bairro estável da classe trabalhadora faz parte de uma mudança maior nas cidades latino-americanas. A escala da pobreza urbana ainda é enorme, assim como a extensão da violência, salientada pelos recentes ataques a policiais em São Paulo (embora isso tenha mais a ver com problemas do sistema de justiça criminal brasileiro do que com a organização das cidades).
Mas em cidades de toda a região governos locais mais eficazes, o envolvimento da comunidade e do setor privado, a estabilidade econômica e um declínio da migração rural estão contribuindo para uma melhora das condições urbanas. Embora ainda apresente muitos defeitos, a experiência latino-americana encerra lições para países da Ásia e da África em um estágio anterior do processo de urbanização, e sugere que, com as políticas certas, muitos de seus problemas afinal são superáveis.
Tudo isso está muito distante da situação da região nos anos 60 aos 80, quando a simples escala e velocidade da expansão urbana superou a capacidade do setor público ou das empresas de fornecer moradia, empregos e infra-estrutura. A migração rural e as mudanças sociais e demográficas, incluindo a ruptura de grandes famílias, transformaram o que eram economias principalmente agrícolas em uma das regiões mais urbanizadas do mundo.
Três em cada quatro latino-americanos vivem em cidades (Rio de Janeiro, Buenos Aires, Cidade do México e São Paulo) que estão entre as 15 maiores do mundo. Desde 1870 São Paulo, a maior cidade da América do Sul, dobrou de tamanho em média a cada 14 anos, um índice de expansão mais rápido do que qualquer outra cidade da história, segundo Norman Gall, diretor do Instituto Braudel, um grupo de pensadores econômicos locais.
As reações iniciais complicaram a questão. No Rio, as autoridades agiram fisicamente para eliminar as favelas que haviam crescido nos morros, separando bairros de classe média. Os moradores das favelas foram enviados para conjuntos mal-planejados como a Cidade de Deus, que ficou famosa no premiado filme homônimo, a quilômetros de distância de serviços, empregos e lazer.
As autoridades de São Paulo removeram os favelados para prédios de apartamentos, só para descobrir que eles rapidamente abandonavam suas novas casas pois não podiam pagar as contas, ou tentados pelo dinheiro da venda ou sublocação. "Foram fracassos extremamente dispendiosos", diz Eduardo Rojas, um especialista em desenvolvimento urbano do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Washington.
Gradualmente, porém, os políticos mudaram de abordagem. Em vez de eliminar as favelas do mapa, as autoridades procuraram civilizá-las e integrá-las ao tecido urbano. As ruas foram asfaltadas, encanamentos e linhas elétricas estendidas a terrenos invadidos. Outras medidas, que vão da colocação de nomes nas ruas e números nas casas para garantir os títulos legais de propriedade, foram características dessa abordagem, assim como iniciativas para criar escolas, clínicas e policiamento regular.
"É importante definir a presença do Estado", diz Jorge Wilheim, um importante arquiteto e planejador urbano brasileiro. "As pessoas precisam acreditar que o governo existe."
Uma das iniciativas mais ambiciosas ocorreu no Rio, onde a autoridade local (financiada pelo BID) desde 1995 tentou integrar mais de 60 favelas ao tecido urbano através de reformas na infra-estrutura e melhoras nos serviços.
A estabilidade econômica ajudou. Desde meados dos anos 90 a maioria dos governos em toda a região administrou as finanças públicas com maior eficiência, com quedas resultantes na inflação. As taxas de juros no Brasil ainda são altas, mas no Chile e no México elas caíram a tais níveis que foi possível desenvolver um mercado de hipotecas.
Isso, combinado com novas técnicas de construção que utilizam materiais pré-fabricados, levou as hipotecas baratas ao alcance dos pobres urbanos.
Enquanto isso, as empresas estão despertando para o que o acadêmico indiano C.K. Prahalad descreve como "a fortuna na base da pirâmide" - as oportunidades existentes no fornecimento de serviços para o vasto número de pessoas confinadas à economia informal.
O progresso, porém, continua lento e desigual. Um problema ressaltado pelo BID em um relatório recente é a governança. A América Latina, com suas fortes tradições de governo autoritário e centralizado, abraçou a idéia de governos locais eleitos há somente cerca de 20 anos.
Os governos locais tendem a ter poucos recursos: enquanto na Europa ou nos EUA 35% dos gastos públicos são dirigidos por estruturas de governos locais, a porcentagem é de apenas 20% na América Latina, em média. Mais importante, o crescimento urbano foi tão rápido que muitas vezes tornou muitas divisões administrativas irrelevantes.
A tendência da América Latina à burocracia piora as coisas. Rojas, do BID, diz que um governo local mais eficaz e com mais recursos será um ingrediente essencial para abordar o problema habitacional da região.
Ele compara cidades como São Paulo e Rio de Janeiro a adolescentes em rápido crescimento. "Seu cérebro ou governança não é capaz de acompanhar a velocidade de crescimento dos membros."
Em São Paulo, por exemplo, o labirinto administrativo borra os limites da responsabilidade. A cidade é dividida em 96 distritos agrupados em 28 administrações regionais, mas estas se sobrepõem a inúmeras outras unidades de planejamento criadas por órgãos federais, estaduais e municipais. Um dos motivos para o sucesso de Diadema é que seu estatuto de município a distingue da cidade propriamente dita, diz Gall.
Não há garantia de que os urbanistas e políticos não repetirão erros, como descobriram recentemente moradores da favela do Gato em São Paulo.
Pouco antes das eleições locais em 2004, o governo da cidade arrasou o denso bairro de barracos de madeira e ferro corrugado e transferiu cerca de 500 famílias para novos apartamentos especialmente construídos.
Dois anos depois, os desenvolvimentos comunitários prometidos não se materializaram. Mais de um quarto dos residentes venderam suas casas para estranhos mais ricos. E no mês passado, depois de várias advertências de falta de pagamento, a companhia de eletricidade cortou a energia de 200 famílias. Sentado diante de um posto de segurança abandonado na entrada de um conjunto, Sassá, um ex-operário da construção grisalho que dirige a associação dos moradores, afoga suas mágoas num copo plástico de cachaça.
"Fomos abandonados. Estou realmente decepcionado", ele diz.
Mas existem outros exemplos opostos e poderosos. Uma sensação generalizada de que as condições dos pobres urbanos estão melhorando deverá dar a vitória ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva - ele também um produto da épica migração brasileira do norte rural para as cidades industriais do sul - nas eleições de outubro. E, pelo menos em Diadema, parece que São Paulo está virando uma esquina.