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Pedra no sapato neoliberal
Quando se fala em adotar políticas econômicas menos ortodoxas, com o objetivo de acelerar a redução das incríveis desigualdades sociais brasileiras, não são poucos os que, com acesso aos meios de comunicação e obedientes ao padrão neoliberal vigente, logo sacam dos modelos do Chile, da Coréia e até da China. Não importa que cada uma dessas economias tenha peculiaridades que as distanciam das questões brasileiras e menos ainda que também por lá persistam problemas de bom tamanho. O que vale é agarrar-se ao poder e resistir às mudanças.
Não importa nem mesmo que alguns dos recursos que, na prática, garantem as apregoadas vantagens do modelo macaqueado tenham de ser escamoteados, para garantir a validade da teoria. No caso do badalado Chile, por exemplo, continua-se louvando um sistema previdenciário que, faz já algum tempo, faz água.
O sistema de capitalização individual viveu as glórias das “soluções de mercado” na fase de formação dos pecúlios – como, diga-se de passagem, qualquer outro sistema de acumulação costuma viver nessa fase. Instituído no começo dos anos 80, sob a batuta da ditadura militar, está começando a pagar os benefícios contratados lá atrás e a hora da verdade não está sendo a maravilha que se apregoa por aqui. A cobertura não chega à metade dos trabalhadores chilenos e o custo de administração são altíssimos, alcançando, em média, 20% do total depositado pelo contribuinte.
Na Coréia, os pesados e invejados investimentos em educação e inovação foram obviamente fundamentais para promover um celebrado boom industrial e uma melhoria geral nas condições de vida da população. Nada contra seguir essa trilha. Mas a coisa, para andar bem, tem exigido uma política ativa e permanente de desvalorização cambial, cujo risco potencial é exposto pela hipertrofia das reservas em dólares, em contínua e custosa expansão. Isso é melhor esquecer, como também é melhor esquecer que, na economia coreana, intervenção estatal é mais regra do que exceção.
Quanto à China, os olhos só ficam abertos – mais correto é dizer que ficam arregalados – para as maravilhas da ocidentalização consumista. Diante do sistema bancário totalmente artificial, expressão financeira de um modelo de controle absoluto da atividade econômica, da calamidade do sistema público de saúde, da exploração abjeta da mão-de-obra abundante, da pirataria descarada de produtos e, por fim, mas não por último, da clássica ditadura de partido único, com prisões políticas e fuzilamentos, fazem-se de cegos.
Seria ingenuidade indagar por que não se vê nada semelhante, em matéria de entusiasmo com modelos econômicos alheios, por exemplo, em relação à Argentina. A vizinha caloteira é, no momento, uma pedra no sapato neoliberal. Quando não resolvem empurrar para debaixo do tapete e, simplesmente, esquecer o que hoje em dia ocorre por lá na economia, os doutores recarregam as baterias de suas bolas de cristal viciadas no esforço de prever um novo fim do mundo em algum ponto do futuro próximo para a economia argentina.
O fato é que, depois do calote da dívida externa – que, aliás, culminou numa bem sucedida reestruturação em que a maior parte dos credores aceitou receber 25% dos seus créditos, mas com o direito a compensações adicionais atreladas ao crescimento econômico –, a Argentina enfunou as velas. Já são 37 meses de crescimento ininterrupto a taxas asiáticas. Desde o segundo trimestre de 2002, a produção Argentina cresceu 35%, mais de 9% ao ano. E nem adianta mais falar que esse gordo porcentual apenas reflete a deprimida base de comparação. Em termos absolutos, o PIB argentino atual já superou o pico de 1998.
Calma moçada do pensamento único. É claro que toda e qualquer economia está sujeita a tropeços e até mesmo a desastres. Se, até nos Estados Unidos existe hoje um crescente temor de estouro da “maior bolha da história americana”, como classificou, recentemente, a revista The Economist, o que dizer da economia Argentina? Sem dúvida a coisa avança entre desequilíbrios, com a inflação teimando a se manter nos dois dígitos, mesmo com tarifas públicas congeladas e aqueles perigosos pactos de controle de preço. E as despesas públicas estão avançando com rapidez maior do que a desejável.
Mas, para quem era vista daqui do Brasil com sorrisinhos de superioridade, ainda mais por ser conduzida, na visão dos “modernos” tupiniquins, por dinossauros antimercado, a economia argentina está dando um olé. Não se trata apenas de constatar que a pobreza recuou de mais de 50% da população, em 2003, para 34%, em 2005, com redução pela metade dos considerados indigentes, um grupo que, no auge da crise, chegou a incríveis 25% da população. Também nos indicadores macroeconômicos, os resultados surpreendem positivamente.
Na Argentina, o setor público apresenta, no momento, um superávit de 3,2% do PIB. Já foi, é verdade, de 4,5%, no passado. É um recuo preocupante, mas nem tanto. Afinal, não estamos falando de um superávit primário, como o nosso. Esse superávit argentino é nominal, ou seja, inclui o pagamento dos juros. No Brasil, quando se inclui a despesa com juros, o superávit se transforma num déficit de 2% do PIB.
Vai dar tudo errado, de novo, ali na primeira curva? Tem gente boa que não aposta nisso. É gente que não queima dinheiro e levou o investimento na Argentina a crescer, em três anos, quase 130%. E que continua apostando na recuperação econômica do país. No primeiro trimestre de 2006, os investimentos avançaram mais de 20% sobre o mesmo período do ano anterior, quando já vinham em alta. Detalhe a lamentar pelos brasileiros (neoliberais ou não): parte desses investimentos se destina à indústria automobilística e está sendo feito com recursos antes programados para o Brasil.
Notar que, com calote, casca e tudo, a economia argentina se recupera não significa sugerir que se copie o modelo econômico que anda dando certo no vizinho. Até porque, sobretudo em relação à dívida externa, palco do tão repelido calote, não há mais o que brigar no Brasil: o negócio foi resolvido de outro jeito e tudo bem. Ajuda apenas a lembrar que cada país é um caso específico e que nenhum modelo deve ser pura e simplesmente macaqueado.
Pedra no sapato neoliberal
Pedra no sapato neoliberal
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).