Dividindo o Cérebro, dividindo a Alma
Enviado: 10 Set 2006, 16:43
Dividindo o cérebro, dividindo a alma
Por Leonardo Vasconcelos
Com o avanço na neurociência, os conceitos vulgares que alimentamos sobre a alma estão sendo gradativamente deixados de lado. Mesmo estados considerados transcendentais, como a meditação e o êxtase religioso, vêm sendo estudados e desmistificados pelos neurocientistas.
A popularidade da alma deriva, dentre outros fatores, da concepção da mente como coisa, o res cogitans (coisa pensante) de Descartes. Imaginando a mente como uma coisa, mesmo se fosse feita de algo imaterial, é natural questionar para onde ela vai depois que morremos, assim como se ela veio de algum lugar antes de nascermos.
Porém, a mente não é uma coisa e sim um processo. É sensato perguntar depois de uma partida de futebol onde foram parar a bola, os jogadores, os gandulas, o juiz, a grama. Mas a mesma sensatez não é encontrada se perguntarmos: “Onde foi parar a partida?”. A partida é um processo que nasce da interação de diversos fatores. A mente é um processo decorrente das interações que ocorrem no cérebro.
A maioria das concepções de alma não resistem ao princípio da parcimônia e outras são ainda mais frágeis, se demonstrando contra-empíricas. Admitindo ser a alma a responsável pelas nossas ações e nossa individualidade, sendo que todo ser no “plano físico” que apresente inteligência, consciência e vontade própria necessariamente tenha uma alma, qual seriam as conseqüências para a alma se conseguíssemos dividir o cérebro em dois? O impedimento significativo da intercomunicação entre os hemisférios abalaria a alma de alguma forma? As pesquisas, que podem nos guiar a uma provável resposta, não só são possíveis como já foram realizadas.
Na década de 50, Ronald Myers e Roger Sperry mostraram que ao seccionar o corpo caloso (uma das estruturas que conectam os dois hemisférios) de um gato, cada metade do cérebro funcionava de forma independente a outra. Podia-se tranqüilamente ensinar algo a uma das metades e deixar a outra ignorante. Ao tapar um dos olhos do gato e apresentar-lhe um problema, somente o hemisfério correspondente ao olho aberto tomava conhecimento do mesmo. Quando era reapresentado o problema ao gato, porém agora com o olho que ficara tapado livre e o outro tapado, era como se o apresentássemos pela primeira vez. A outra metade do cérebro não fornecia nenhuma informação sobre o que aprendeu a sua vizinha.
A coisa começa a ficar interessante quando estudamos a secção do corpo caloso em humanos. Michael Gazzaniga pesquisou a capacidade de sintetizar informações entre hemisférios entre pacientes calotomizados. Foram apresentadas as palavras sky e scrapter, uma para cada hemisfério, e pedido ao paciente para desenhar o que viu. Ao invés de desenhar um edifício (skyscrapter = arranha-céu), uma de suas mãos desenhou um céu (sky) e a outra uma raspadeira (scrapter), i.e., os dois hemisférios foram incapazes de fazer a síntese. Depois foram mostradas as palavras fire (fogo) e arm (braço), porém só para um hemisfério. O paciente desenhou uma arma de fogo (firearm), ou seja, a capacidade de síntese persiste em cada metade sozinha.
Donald MacKay, em 1981, conduziu uma lúdica experiência com o calotomizado J.W.. Um examinador mostrava um número de 0 a 9 ao hemisfério direito (responsável pela mão esquerda) e o hemisfério esquerdo oralmente tentava advinhar o número (a capacidade da fala é concentrada neste hemisfério), enquanto a mão esquerda dava dicas como: “para cima”, “para baixo” e “ok”. Numa das vezes J.W. chutou o número “1” no jogo e sua mão esquerda acenou “para baixo”. Ele resmungou dizendo que não tinha número abaixo de “1” no jogo, esquecendo-se do zero, que era a resposta.
Em condições normais, o controle universal das decisões pertence ao hemisfério dominante, ou seja, mesmo que os hemisférios discordassem em algo, a última palavra cabe ao dominante. Entretanto, quando o corpo caloso é seccionado, a metade subjugada do cérebro fica livre para fazer o que bem entender. Daí nasce um conflito muito curioso chamado de “mão alheia”.
Alan Parkin narra um dos casos de mão alheia que estudou: “Certa vez, pedi a ela que passasse a mão direita sobre um pequeno buraco. ‘Não posso, a outra mão está segurando’, disse ela. Olhei por cima e vi a mão esquerda dela agarrando firmemente a direita pelo punho.” Um outro paciente de Parkin reclamava que quando tentava fazer carinho e abraçar sua esposa, sua mão esquerda ameaçava agredi-la. Kurt Goldstein atendeu uma senhora de meia-idade cuja mão esquerda tentava estrangulá-la, fazendo com que ela intervisse com a mão direita.
LeDoux e Gazzaniga elaboraram um complicado experimento com P.S., que apresentava um esboço de linguagem no hemisfério direito (situação incomum). A experiência permitia aos dois hemisférios serem entrevistados exclusivamente. Embora ambos concordassem em muitas coisas, a metade direita apresentava suas peculiaridades. Ao perguntarem: “O que você vai fazer quando se formar?”, cada metade deu uma resposta. A esquerda (dominante) disse “desenhista”, já a direita organizou as letras embaralhadas à sua frente respondendo “piloto de corridas”.
O psiquiatra Jonh Ratey tratou de um homem que revelou capacidade lingüística nos dois hemisférios. Apesar de não ser calotomizado, seu corpo caloso funcionava defeituosamente. Permitindo um certo grau de independência entre os hemisférios, mas deixando haver troca de informação. Segundo o psiquiatra, o paciente “levava a vida inteira preocupado com suas dissociações. Por exemplo, proferir comentários mesquinhos ou sexualmente provocativos em ambientes sociais e isso o envergonhava, mas não o impedia de os fazer. A linguagem parecia estar fora de seu controle.”
Roger Sperry, depois de meses estudando casos de cérebro dividido, concluiu: “Tudo que observamos indica que a cirurgia deixou essas pessoas com duas mentes separadas”, ou seja, “duas esferas distintas de consciência”. Victor Mark, outro especialista no assunto, chegou à mesma conclusão.
Secionado o corpo caloso, apareceram duas individualidades na mesma pessoa, cada uma dotada de inteligência, consciência e vontade própria. Pela nossa admissão preliminar, elas precisariam necessariamente de uma alma. Como guardam uma soma gigantesca de características da “alma original”, podemos tranqüilamente inferir que as duas almas procedam da original. Em outras palavras: dividimos a alma! Esses bisturis de hoje em dia...
O que aconteceria depois da morte? Elas voltariam a se tornar uma só? Caso a paciente de Goldstein conseguisse se matar, só a alma suicida iria para o inferno ou sua companheira de corpo, que tentava impedi-la, também seria punida? Ou ainda, como seria a divisão do carma?
As experiências com cérebro dividido ilustram claramente que a mente é um processo dependente dos estados cerebrais. Se mexemos um tanto no cérebro, alteramos outro tanto na mente. Essa ligação é tão íntima que se existe algo que independe desses estados e resiste após a morte, é totalmente divergente do que mentalmente concebemos como “eu”. A individualidade mental das pessoas é tão entrelaçada com seus cérebros que imaginar espíritos mantendo personalidade idêntica ou similar a de quando eram vivos vira uma questão exclusiva da fé. Credo quia absurdum.
Allan Kardec, mentor da doutrina espírita, disse que quando o espiritismo entrasse em desacordo com a Ciência, ficássemos com a Ciência. Esse é um dos poucos pontos em que Kardec e eu concordamos.
Bibliografia:
RAMACHANDRAN, V.S., BLAKESLEE, Sandra, Fantasmas no cérebro. Editora Record
CARTER, Rita, O Livro de Ouro da Mente. Editora Ediouro.
TEIXEIRA, João de Fernandes. Mente, cérebro & cognição. Editora Vozes.
GAZZANIGA, Michael S., O cérebro dividido revisitado. Scientific Amerian Brasil, Edição Especial nº 4.
RATEY, John J., O Cérebro: Guia para o usuário. Editora Objetiva.
Por Leonardo Vasconcelos
Com o avanço na neurociência, os conceitos vulgares que alimentamos sobre a alma estão sendo gradativamente deixados de lado. Mesmo estados considerados transcendentais, como a meditação e o êxtase religioso, vêm sendo estudados e desmistificados pelos neurocientistas.
A popularidade da alma deriva, dentre outros fatores, da concepção da mente como coisa, o res cogitans (coisa pensante) de Descartes. Imaginando a mente como uma coisa, mesmo se fosse feita de algo imaterial, é natural questionar para onde ela vai depois que morremos, assim como se ela veio de algum lugar antes de nascermos.
Porém, a mente não é uma coisa e sim um processo. É sensato perguntar depois de uma partida de futebol onde foram parar a bola, os jogadores, os gandulas, o juiz, a grama. Mas a mesma sensatez não é encontrada se perguntarmos: “Onde foi parar a partida?”. A partida é um processo que nasce da interação de diversos fatores. A mente é um processo decorrente das interações que ocorrem no cérebro.
A maioria das concepções de alma não resistem ao princípio da parcimônia e outras são ainda mais frágeis, se demonstrando contra-empíricas. Admitindo ser a alma a responsável pelas nossas ações e nossa individualidade, sendo que todo ser no “plano físico” que apresente inteligência, consciência e vontade própria necessariamente tenha uma alma, qual seriam as conseqüências para a alma se conseguíssemos dividir o cérebro em dois? O impedimento significativo da intercomunicação entre os hemisférios abalaria a alma de alguma forma? As pesquisas, que podem nos guiar a uma provável resposta, não só são possíveis como já foram realizadas.
Na década de 50, Ronald Myers e Roger Sperry mostraram que ao seccionar o corpo caloso (uma das estruturas que conectam os dois hemisférios) de um gato, cada metade do cérebro funcionava de forma independente a outra. Podia-se tranqüilamente ensinar algo a uma das metades e deixar a outra ignorante. Ao tapar um dos olhos do gato e apresentar-lhe um problema, somente o hemisfério correspondente ao olho aberto tomava conhecimento do mesmo. Quando era reapresentado o problema ao gato, porém agora com o olho que ficara tapado livre e o outro tapado, era como se o apresentássemos pela primeira vez. A outra metade do cérebro não fornecia nenhuma informação sobre o que aprendeu a sua vizinha.
A coisa começa a ficar interessante quando estudamos a secção do corpo caloso em humanos. Michael Gazzaniga pesquisou a capacidade de sintetizar informações entre hemisférios entre pacientes calotomizados. Foram apresentadas as palavras sky e scrapter, uma para cada hemisfério, e pedido ao paciente para desenhar o que viu. Ao invés de desenhar um edifício (skyscrapter = arranha-céu), uma de suas mãos desenhou um céu (sky) e a outra uma raspadeira (scrapter), i.e., os dois hemisférios foram incapazes de fazer a síntese. Depois foram mostradas as palavras fire (fogo) e arm (braço), porém só para um hemisfério. O paciente desenhou uma arma de fogo (firearm), ou seja, a capacidade de síntese persiste em cada metade sozinha.
Donald MacKay, em 1981, conduziu uma lúdica experiência com o calotomizado J.W.. Um examinador mostrava um número de 0 a 9 ao hemisfério direito (responsável pela mão esquerda) e o hemisfério esquerdo oralmente tentava advinhar o número (a capacidade da fala é concentrada neste hemisfério), enquanto a mão esquerda dava dicas como: “para cima”, “para baixo” e “ok”. Numa das vezes J.W. chutou o número “1” no jogo e sua mão esquerda acenou “para baixo”. Ele resmungou dizendo que não tinha número abaixo de “1” no jogo, esquecendo-se do zero, que era a resposta.
Em condições normais, o controle universal das decisões pertence ao hemisfério dominante, ou seja, mesmo que os hemisférios discordassem em algo, a última palavra cabe ao dominante. Entretanto, quando o corpo caloso é seccionado, a metade subjugada do cérebro fica livre para fazer o que bem entender. Daí nasce um conflito muito curioso chamado de “mão alheia”.
Alan Parkin narra um dos casos de mão alheia que estudou: “Certa vez, pedi a ela que passasse a mão direita sobre um pequeno buraco. ‘Não posso, a outra mão está segurando’, disse ela. Olhei por cima e vi a mão esquerda dela agarrando firmemente a direita pelo punho.” Um outro paciente de Parkin reclamava que quando tentava fazer carinho e abraçar sua esposa, sua mão esquerda ameaçava agredi-la. Kurt Goldstein atendeu uma senhora de meia-idade cuja mão esquerda tentava estrangulá-la, fazendo com que ela intervisse com a mão direita.
LeDoux e Gazzaniga elaboraram um complicado experimento com P.S., que apresentava um esboço de linguagem no hemisfério direito (situação incomum). A experiência permitia aos dois hemisférios serem entrevistados exclusivamente. Embora ambos concordassem em muitas coisas, a metade direita apresentava suas peculiaridades. Ao perguntarem: “O que você vai fazer quando se formar?”, cada metade deu uma resposta. A esquerda (dominante) disse “desenhista”, já a direita organizou as letras embaralhadas à sua frente respondendo “piloto de corridas”.
O psiquiatra Jonh Ratey tratou de um homem que revelou capacidade lingüística nos dois hemisférios. Apesar de não ser calotomizado, seu corpo caloso funcionava defeituosamente. Permitindo um certo grau de independência entre os hemisférios, mas deixando haver troca de informação. Segundo o psiquiatra, o paciente “levava a vida inteira preocupado com suas dissociações. Por exemplo, proferir comentários mesquinhos ou sexualmente provocativos em ambientes sociais e isso o envergonhava, mas não o impedia de os fazer. A linguagem parecia estar fora de seu controle.”
Roger Sperry, depois de meses estudando casos de cérebro dividido, concluiu: “Tudo que observamos indica que a cirurgia deixou essas pessoas com duas mentes separadas”, ou seja, “duas esferas distintas de consciência”. Victor Mark, outro especialista no assunto, chegou à mesma conclusão.
Secionado o corpo caloso, apareceram duas individualidades na mesma pessoa, cada uma dotada de inteligência, consciência e vontade própria. Pela nossa admissão preliminar, elas precisariam necessariamente de uma alma. Como guardam uma soma gigantesca de características da “alma original”, podemos tranqüilamente inferir que as duas almas procedam da original. Em outras palavras: dividimos a alma! Esses bisturis de hoje em dia...
O que aconteceria depois da morte? Elas voltariam a se tornar uma só? Caso a paciente de Goldstein conseguisse se matar, só a alma suicida iria para o inferno ou sua companheira de corpo, que tentava impedi-la, também seria punida? Ou ainda, como seria a divisão do carma?
As experiências com cérebro dividido ilustram claramente que a mente é um processo dependente dos estados cerebrais. Se mexemos um tanto no cérebro, alteramos outro tanto na mente. Essa ligação é tão íntima que se existe algo que independe desses estados e resiste após a morte, é totalmente divergente do que mentalmente concebemos como “eu”. A individualidade mental das pessoas é tão entrelaçada com seus cérebros que imaginar espíritos mantendo personalidade idêntica ou similar a de quando eram vivos vira uma questão exclusiva da fé. Credo quia absurdum.
Allan Kardec, mentor da doutrina espírita, disse que quando o espiritismo entrasse em desacordo com a Ciência, ficássemos com a Ciência. Esse é um dos poucos pontos em que Kardec e eu concordamos.
Bibliografia:
RAMACHANDRAN, V.S., BLAKESLEE, Sandra, Fantasmas no cérebro. Editora Record
CARTER, Rita, O Livro de Ouro da Mente. Editora Ediouro.
TEIXEIRA, João de Fernandes. Mente, cérebro & cognição. Editora Vozes.
GAZZANIGA, Michael S., O cérebro dividido revisitado. Scientific Amerian Brasil, Edição Especial nº 4.
RATEY, John J., O Cérebro: Guia para o usuário. Editora Objetiva.