"A vitória seria uma Fada Morgana"
Enviado: 13 Set 2006, 10:47
UOL
Entrevista com Zbigniew Brzezinski: "A vitória seria uma Fada Morgana"
Hans Hoyng e Georg Mascolo
O ex-assessor de Segurança Nacional dos EUA Zbigniew Brzezinski conversa sobre os erros cometidos pelo governo Bush em sua guerra ao terrorismo, a campanha desastrosa no Iraque e os riscos de um levante global contra a desigualdade.
Der Spiegel - Doutor Brzezinski, o presidente Bush compara os perigos do terrorismo aos da Guerra Fria. Ele chegou a falar diversas vezes em uma "nação em guerra" que só aceitará a "vitória total". Ele está certo ou está usando retórica exagerada?
Zbigniew Brzezinski - Ele está fundamentalmente errado. Se é demagogia deliberada ou simplesmente ignorância histórica, não sei. Durante quatro anos fui responsável por coordenar a reação dos EUA em caso de um ataque nuclear. E posso lhe garantir que uma guerra nuclear entre os EUA e a União Soviética em escala abrangente teria matado de 160 a 180 milhões de pessoas em 24 horas. Nenhuma ameaça terrorista se compara a essa num futuro previsível. Além disso, o terrorismo é essencialmente uma técnica de matar pessoas, e não um inimigo propriamente dito. Alguém que declara guerra contra um fantasma invisível e inidentificável entra em um estado mental que virtualmente promove exageros perigosos e distorções da realidade.
DS - Quais são essas distorções?
Brzezinski - Depois do ataque japonês a Pearl Harbor em 1941, os EUA estavam enérgicos e determinados, e durante os 40 anos da Guerra Fria foram pacientes e deliberados. Em nenhum caso qualquer presidente americano pregou intencionalmente o medo como mensagem principal para a população, ao contrário. Com suas formulações muito frouxas, o presidente está criando um clima de medo que é destrutivo para o moral americano e distorce a política americana.
DS - O medo, como a idéia de uma arma nuclear nas mãos de terroristas, não é algo muito natural?
Brzezinski - Certamente essa idéia não é totalmente irreal, mas por outro lado não estamos diante do arsenal de armas nucleares soviético. Não desejo minimizar o perigo de um ou mesmo diversos atos terroristas, mas sua escala simplesmente não é comparável.
DS - Mas às vezes as discussões nos EUA e também na Europa dão a impressão de que o islamismo radical assumiu o lugar da antiga URSS e que uma espécie de Guerra Fria está continuando.
Brzezinski - O islamismo radical é um fenômeno tão anônimo que surgiu em alguns países e não em outros. Ele deve ser levado a sério, mas ainda é somente um perigo regional predominante no Oriente Médio e a leste do Oriente Médio. E mesmo nessas regiões os fundamentalistas islâmicos não são maioria.
DS - Incentivar o medo não é uma reação válida, portanto?
Brzezinski - Temos de formular uma política para essa região que nos ajude a mobilizar nossos amigos potenciais. Somente se cooperarmos com eles poderemos conter e eventualmente eliminar esse fenômeno. É um paradoxo: durante a Guerra Fria, nossa política foi dirigida para unir nossos amigos e dividir nossos inimigos. Infelizmente, nossa tática hoje, incluindo a ocasional linguagem islamófoba, tende a unir nossos inimigos e alienar nossos amigos.
DS - Então é a retórica exagerada que faz que Osama bin Laden seja elevado ao nível de um Mao ou Stálin?
Brzezinski - Correto. E isso, é claro, é uma distorção da realidade, apesar do fato de Bin Laden ser um assassino. Ele é um criminoso e deveria ser apresentado como tal, e não intencionalmente elevado a um líder globalmente significativo de um movimento transnacional, quase religioso.
DS - Houve algum progresso na luta contra o terrorismo nos últimos cinco anos?
Brzezinski - Sim e não. Bata na madeira. Até agora não houve repetição dos ataques terroristas nos EUA, e isso, assim como o recente complô frustrado em Londres, provavelmente se deve em parte às medidas preventivas que tomamos. Também existe uma crescente percepção entre as elites modernas no mundo muçulmano de que o terrorismo islâmico também é uma ameaça para elas, mas é um processo lento. Além disso, esse processo foi prejudicado, como pela nossa invasão do Iraque, que galvanizou muita hostilidade no mundo islâmico em relação aos EUA.
Nossa posição insensível e ambígua no conflito Israel-Palestina também é uma razão muito importante para a hostilidade contra nós. Tudo isso ajuda o terrorismo.
DS - A vitória total, como exige o presidente Bush, é realmente possível?
Brzezinski - Isso depende de nossa definição de vitória. Se agirmos inteligentemente e fizermos as coalizões necessárias, o apelo do terrorismo poderá diminuir e limitar sua capacidade de encontrar simpatizantes ou mesmo possíveis mártires. Então ele provavelmente se dissipará aos poucos. No entanto, se considerarmos a vitória como equivalente a Hitler se matando no bunker, isso não acontecerá. É exatamente por isso que toda a analogia com a guerra é tão enganosa.
Não ajuda a fazer o público entender que estamos tratando com um problema de longo prazo em uma região muito volátil, cuja solução depende de mobilizar forças moderadas e isolar os fanáticos.
DS - Que vantagens o presidente Bush vê em sua retórica de guerra?
Brzezinski - Em primeiro lugar ela o ajudou a se reeleger - um país em guerra não demite seu comandante em chefe. Em segundo, ela aumenta sua capacidade de exercer seus poderes executivos em uma escala que nenhum outro presidente conseguiu antes dele. Isto, é claro, acarreta riscos como a infração dos direitos civis. E lhe dá a alegação de que pode usar as forças armadas como quiser, mesmo sem sanção do Congresso, envolvendo uma declaração de guerra.
DS - Existe algum perigo inerente para a democracia?
Brzezinski - Em longo prazo, sim. No entanto, a democracia está tão incutida na psique e no tecido da sociedade americana que essa ameaça só poderia surgir se o presidente fosse capaz de implementar tais políticas por um período de tempo prolongado. Mas Bush não pode ser reeleito. Portanto, tudo terminará em dois anos e meio.
DS - Políticos europeus nunca aceitaram o conceito da guerra ao terror. Além disso, há graves diferenças sobre as técnicas de interrogatório ou os campos de prisioneiros como Guantánamo. Diante de opiniões tão diversas, como os EUA e a Europa podem cooperar?
Brzezinski - Isso é exatamente o que torna tão difícil enfrentar o problema coletivamente. No entanto, realisticamente, também temos de levar em consideração que existe, de maneira silenciosa, uma extensa cooperação, especialmente entre nossas forças policiais. Mas exatamente essa cooperação reflete a percepção de que o combate ao terrorismo é em última instância uma operação contra um comportamento criminoso. Embora eu compartilhe as críticas da Europa sobre Guantánamo e Abu Ghraib, os maus-tratos e até a tortura de prisioneiros, os europeus não deveriam em sua indignação perder de vista seu próprio passado - nem os alemães, e também não os franceses, que tiveram extensa experiência na guerra da Argélia.
DS - O governo americano declarou o Iraque a frente central na guerra ao terror, mas em vez de disseminar democracia o Iraque hoje serve como ímã para novos terroristas. Como os EUA podem se safar de sua própria armadilha?
Brzezinski - Não devemos fugir nem buscar a vitória, que seria essencialmente uma Fada Morgana. Temos de falar seriamente com os iraquianos sobre uma data de retirada definida em conjunto para as forças de ocupação e então anunciar a data em conjunto. Afinal, a presença dessas forças alimenta a rebelião. Então veremos que os líderes iraquianos que concordam com uma retirada dentro de um ano são praticamente os políticos que ficarão lá.
Aqueles que nos pedirem para não sair provavelmente são os que sairão junto conosco. Isso diz tudo o que precisamos saber sobre o verdadeiro apoio que os políticos iraquianos têm.
DS - Uma retirada tão rápida não deixaria para trás o caos?
Brzezinski - O governo iraquiano teria de convidar todos os vizinhos islâmicos, até o Paquistão e o Marrocos, para uma conferência de estabilização. A maioria deles está disposta a ajudar. E quando os EUA saírem terão de convocar uma conferência dos países doadores que têm participação na recuperação econômica do Iraque, em particular na produção de petróleo. Essa é uma das principais preocupações da Europa e do Extremo Oriente.
DS - A conferência de doadores ocorrerá no outono, de qualquer modo.
Brzezinski - Sim, mas duvido que ela provocará muito entusiasmo enquanto os soldados americanos estiverem no país indefinidamente. Incidentalmente, esse não é apenas o meu argumento. Tudo isso corresponde a quase literalmente as propostas do novo assessor de segurança iraquiano.
DS - Os opositores de uma retirada rápida defendem a tese de que a guerra sectária entre xiitas e sunitas no Iraque se tornaria ainda mais violenta do que já é.
Brzezinski - Todos os que conhecem a história dos exércitos de ocupação sabem que as forças armadas estrangeiras não são muito eficazes para reprimir a resistência armada, rebeliões, movimentos de libertação nacional, seja qual for o nome que se dê. Afinal eles são estrangeiros, não entendem o país e não têm acesso à inteligência necessária. Essa é a situação em que nos encontramos. Além disso, existe um círculo vicioso no sentido de que até os exércitos de ocupação profissionais tornam-se desmoralizados com o tempo, o que leva a atos de violência contra a população civil e assim reforça a resistência. Os iraquianos podem lidar com a violência de motivação religiosa em seu país muito melhor do que os americanos de milhares de quilômetros de distância.
DS - Então não há alternativa para a retirada das tropas, mesmo que haja uma escalada inicial da violência?
Brzezinski - Os iraquianos não são um povo primitivo que precisam da tutela colonial americana para resolver seus problemas.
DS - Na realidade, o presidente não teme que o Iraque deixe de ser a democracia modelo que ele imagina depois que os americanos partirem?
Brzezinski - Isso é uma certeza, e portanto qualquer tentativa de buscar sua definição de vitória é pura fantasia. Mas haverá um governo dominado por curdos e xiitas, e alguns elementos sunitas. Isso em si já é uma melhora comparada ao regime de Saddam Hussein, e portanto pelo menos um sucesso parcial.
DS - O senhor tem certeza de que é possível evitar uma guerra civil religiosa?
Brzezinski - É claro que não posso ter certeza. Mas De Gaulle tinha certeza quando decidiu que a França podia terminar a guerra na Argélia?
Todos ao redor dele o advertiram sobre as terríveis conseqüências de sua decisão.
DS - O senhor não teme que esse conflito religioso possa incendiar toda a região?
Brzezinski - Muito pelo contrário. Quanto mais ficarmos, maior a probabilidade de incêndio. O fato é que estamos lá há três anos e a situação hoje é muito pior do que naquela época. Pelo menos logicamente há certa evidência que apóia minha proposta.
DS - Bush apresentou ao mundo o "eixo do mal". Ele não facilitou as coisas para si mesmo ao atacar a parte menos perigosa desse eixo?
Brzezinski - Sim, o Iraque não era perigoso. A Coréia do Norte e o Irã parecem estar atualmente muito calculistas. No entanto, o Irã é um país genuinamente histórico que tem um papel importante na região. Meu palpite é que o Irã encontrará alguma forma de acomodação com o resto do mundo, pelo menos mais fácil de alcançar do que a da Coréia do Norte.
DS - Se as negociações com o Irã falharem, os EUA interviriam militarmente?
Brzezinski - Há alguns membros do governo que defendem isso. No entanto, em vista das experiências no Iraque, considero mais provável que o governo, juntamente com seus aliados, imponha sanções significativas, que então levarão alguns anos para mostrar seus efeitos, o que torna altamente improvável que seja Bush quem empreenderá uma ação tão perigosa.
DS - Quais seriam as conseqüências desse ataque?
Brzezinski - Os iranianos têm diversas opções em aberto. Uma delas é a desestabilização do Iraque e da parte ocidental do Afeganistão, assim como a sempre presente opção de ativar o Hizbollah no Líbano.
Eles poderiam cortar a produção de petróleo, prejudicar a produção saudita e ameaçar a passagem dos navios petroleiros pelo estreito de Ormuz, com todas as conseqüências devastadoras para a economia mundial.
Eles também poderiam acelerar a produção de armas de destruição em massa, o que muito possivelmente levaria a ataques militares renovados e mais abrangentes - um círculo vicioso.
DS - O senhor disse que os EUA precisam de conselhos sólidos dos europeus para evitar uma visão irreal do mundo. A Europa está na posição de dar esse conselho?
Brzezinski - No Oriente Médio, os EUA estão inadvertidamente deslizando para o papel de uma potência colonial, repetindo as experiências européias.
Uma combinação de interesse próprio, um sentido de missão e uma ignorância arrogante resultaram no que os americanos estão fazendo agora. Como a Grã-Bretanha e a França tiveram as mesmas experiências no passado, têm um melhor sentido do fato de que a rota americana no Oriente Médio é um erro político e, em longo prazo, também perigosa para os EUA. Em curto prazo ela prejudica os princípios americanos e sua legitimidade internacional.
DS - O senhor realmente acredita que esse é o tipo de conselho que o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, dá a Bush?
Brzezinski - É o que ele deveria dar. Mas eu acho que os britânicos tomaram uma decisão depois da crise de Suez em 1956 de nunca mais entrar em choque com os EUA e ser uma fonte alternativa de influência global tornando-se o parceiro mais próximo dos EUA.
DS - Existe um temor na Europa de que Bush possa voltar ao unilateralismo se recuperar sua liberdade de ação na política externa.
Brzezinski - Para isso ele teria de conseguir milagrosamente sua vitória fantasmagórica. Mas esta recua ainda mais. Foi exatamente assim com os soviéticos, que costumavam insistir que a vitória do socialismo estava logo depois do horizonte, desprezando o fato de que o horizonte é uma linha imaginária que recua conforme você avança em sua direção.
Além disso, em dois anos e meio ele não será mais presidente, e nenhum sucessor vai querer adotar os lemas e a demagogia dos últimos três anos.
DS - Existe alguma condição sob a qual os EUA poderiam perder sua atual supremacia política?
Brzezinski - Bastaria manterem as atuais políticas e também, no futuro, não dar uma resposta séria às queixas cada vez mais fortes de desigualdade global. Estamos hoje lidando com uma humanidade muito mais ativa politicamente, que exige uma resposta coletiva do Ocidente para seus problemas.
DS - Seu pedido para erradicar a desigualdade global não é tão ilusório quanto o pedido de Bush para que os EUA libertem o mundo do mal?
Brzezinski - Alcançar a igualdade seria de fato um objetivo ilusório.
Reduzir a desigualdade na era da televisão e da Internet pode se tornar uma necessidade política. Estamos entrando em uma fase histórica em que as populações da China e da Índia, mas também do Nepal, da Bolívia ou da Venezuela, não vão mais tolerar as enormes disparidades na condição humana.
Isso poderia muito bem ser o perigo coletivo que teremos de enfrentar nas próximas décadas.
DS - O senhor o chama de "despertar político global".
Brzezinski - Sim, e é basicamente uma repetição, mas hoje em escala global, do despertar social e político que ocorreu na França na época da revolução. Durante o século 19 ela se espalhou pela Europa e partes do hemisfério ocidental, no século 20 chegou ao Japão e finalmente à China. Agora esta varrendo o resto do mundo.
DS - Os países islâmicos também?
Brzezinski - Não realmente da mesma maneira. É um processo turbulento, de múltiplas direções, que no entanto desafia a estabilidade global. Se os EUA, a Europa e o Japão, mas também China, Rússia e Índia, não conseguirem encontrar um mecanismo para uma colaboração global eficaz, escorregaremos para um crescente caos mundial, que será fatal para a liderança americana.
Portanto, considero o papel da liderança americana vulnerável, mas insubstituível no futuro previsível.
Quem é?
Zbigniew Brzezinski, 78, serviu como assessor de Segurança Nacional do presidente americano Jimmy Carter de 1977 a 1981. Hoje ele é professor de política externa americana na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e assessor do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Entrevista com Zbigniew Brzezinski: "A vitória seria uma Fada Morgana"
Hans Hoyng e Georg Mascolo
O ex-assessor de Segurança Nacional dos EUA Zbigniew Brzezinski conversa sobre os erros cometidos pelo governo Bush em sua guerra ao terrorismo, a campanha desastrosa no Iraque e os riscos de um levante global contra a desigualdade.
Der Spiegel - Doutor Brzezinski, o presidente Bush compara os perigos do terrorismo aos da Guerra Fria. Ele chegou a falar diversas vezes em uma "nação em guerra" que só aceitará a "vitória total". Ele está certo ou está usando retórica exagerada?
Zbigniew Brzezinski - Ele está fundamentalmente errado. Se é demagogia deliberada ou simplesmente ignorância histórica, não sei. Durante quatro anos fui responsável por coordenar a reação dos EUA em caso de um ataque nuclear. E posso lhe garantir que uma guerra nuclear entre os EUA e a União Soviética em escala abrangente teria matado de 160 a 180 milhões de pessoas em 24 horas. Nenhuma ameaça terrorista se compara a essa num futuro previsível. Além disso, o terrorismo é essencialmente uma técnica de matar pessoas, e não um inimigo propriamente dito. Alguém que declara guerra contra um fantasma invisível e inidentificável entra em um estado mental que virtualmente promove exageros perigosos e distorções da realidade.
DS - Quais são essas distorções?
Brzezinski - Depois do ataque japonês a Pearl Harbor em 1941, os EUA estavam enérgicos e determinados, e durante os 40 anos da Guerra Fria foram pacientes e deliberados. Em nenhum caso qualquer presidente americano pregou intencionalmente o medo como mensagem principal para a população, ao contrário. Com suas formulações muito frouxas, o presidente está criando um clima de medo que é destrutivo para o moral americano e distorce a política americana.
DS - O medo, como a idéia de uma arma nuclear nas mãos de terroristas, não é algo muito natural?
Brzezinski - Certamente essa idéia não é totalmente irreal, mas por outro lado não estamos diante do arsenal de armas nucleares soviético. Não desejo minimizar o perigo de um ou mesmo diversos atos terroristas, mas sua escala simplesmente não é comparável.
DS - Mas às vezes as discussões nos EUA e também na Europa dão a impressão de que o islamismo radical assumiu o lugar da antiga URSS e que uma espécie de Guerra Fria está continuando.
Brzezinski - O islamismo radical é um fenômeno tão anônimo que surgiu em alguns países e não em outros. Ele deve ser levado a sério, mas ainda é somente um perigo regional predominante no Oriente Médio e a leste do Oriente Médio. E mesmo nessas regiões os fundamentalistas islâmicos não são maioria.
DS - Incentivar o medo não é uma reação válida, portanto?
Brzezinski - Temos de formular uma política para essa região que nos ajude a mobilizar nossos amigos potenciais. Somente se cooperarmos com eles poderemos conter e eventualmente eliminar esse fenômeno. É um paradoxo: durante a Guerra Fria, nossa política foi dirigida para unir nossos amigos e dividir nossos inimigos. Infelizmente, nossa tática hoje, incluindo a ocasional linguagem islamófoba, tende a unir nossos inimigos e alienar nossos amigos.
DS - Então é a retórica exagerada que faz que Osama bin Laden seja elevado ao nível de um Mao ou Stálin?
Brzezinski - Correto. E isso, é claro, é uma distorção da realidade, apesar do fato de Bin Laden ser um assassino. Ele é um criminoso e deveria ser apresentado como tal, e não intencionalmente elevado a um líder globalmente significativo de um movimento transnacional, quase religioso.
DS - Houve algum progresso na luta contra o terrorismo nos últimos cinco anos?
Brzezinski - Sim e não. Bata na madeira. Até agora não houve repetição dos ataques terroristas nos EUA, e isso, assim como o recente complô frustrado em Londres, provavelmente se deve em parte às medidas preventivas que tomamos. Também existe uma crescente percepção entre as elites modernas no mundo muçulmano de que o terrorismo islâmico também é uma ameaça para elas, mas é um processo lento. Além disso, esse processo foi prejudicado, como pela nossa invasão do Iraque, que galvanizou muita hostilidade no mundo islâmico em relação aos EUA.
Nossa posição insensível e ambígua no conflito Israel-Palestina também é uma razão muito importante para a hostilidade contra nós. Tudo isso ajuda o terrorismo.
DS - A vitória total, como exige o presidente Bush, é realmente possível?
Brzezinski - Isso depende de nossa definição de vitória. Se agirmos inteligentemente e fizermos as coalizões necessárias, o apelo do terrorismo poderá diminuir e limitar sua capacidade de encontrar simpatizantes ou mesmo possíveis mártires. Então ele provavelmente se dissipará aos poucos. No entanto, se considerarmos a vitória como equivalente a Hitler se matando no bunker, isso não acontecerá. É exatamente por isso que toda a analogia com a guerra é tão enganosa.
Não ajuda a fazer o público entender que estamos tratando com um problema de longo prazo em uma região muito volátil, cuja solução depende de mobilizar forças moderadas e isolar os fanáticos.
DS - Que vantagens o presidente Bush vê em sua retórica de guerra?
Brzezinski - Em primeiro lugar ela o ajudou a se reeleger - um país em guerra não demite seu comandante em chefe. Em segundo, ela aumenta sua capacidade de exercer seus poderes executivos em uma escala que nenhum outro presidente conseguiu antes dele. Isto, é claro, acarreta riscos como a infração dos direitos civis. E lhe dá a alegação de que pode usar as forças armadas como quiser, mesmo sem sanção do Congresso, envolvendo uma declaração de guerra.
DS - Existe algum perigo inerente para a democracia?
Brzezinski - Em longo prazo, sim. No entanto, a democracia está tão incutida na psique e no tecido da sociedade americana que essa ameaça só poderia surgir se o presidente fosse capaz de implementar tais políticas por um período de tempo prolongado. Mas Bush não pode ser reeleito. Portanto, tudo terminará em dois anos e meio.
DS - Políticos europeus nunca aceitaram o conceito da guerra ao terror. Além disso, há graves diferenças sobre as técnicas de interrogatório ou os campos de prisioneiros como Guantánamo. Diante de opiniões tão diversas, como os EUA e a Europa podem cooperar?
Brzezinski - Isso é exatamente o que torna tão difícil enfrentar o problema coletivamente. No entanto, realisticamente, também temos de levar em consideração que existe, de maneira silenciosa, uma extensa cooperação, especialmente entre nossas forças policiais. Mas exatamente essa cooperação reflete a percepção de que o combate ao terrorismo é em última instância uma operação contra um comportamento criminoso. Embora eu compartilhe as críticas da Europa sobre Guantánamo e Abu Ghraib, os maus-tratos e até a tortura de prisioneiros, os europeus não deveriam em sua indignação perder de vista seu próprio passado - nem os alemães, e também não os franceses, que tiveram extensa experiência na guerra da Argélia.
DS - O governo americano declarou o Iraque a frente central na guerra ao terror, mas em vez de disseminar democracia o Iraque hoje serve como ímã para novos terroristas. Como os EUA podem se safar de sua própria armadilha?
Brzezinski - Não devemos fugir nem buscar a vitória, que seria essencialmente uma Fada Morgana. Temos de falar seriamente com os iraquianos sobre uma data de retirada definida em conjunto para as forças de ocupação e então anunciar a data em conjunto. Afinal, a presença dessas forças alimenta a rebelião. Então veremos que os líderes iraquianos que concordam com uma retirada dentro de um ano são praticamente os políticos que ficarão lá.
Aqueles que nos pedirem para não sair provavelmente são os que sairão junto conosco. Isso diz tudo o que precisamos saber sobre o verdadeiro apoio que os políticos iraquianos têm.
DS - Uma retirada tão rápida não deixaria para trás o caos?
Brzezinski - O governo iraquiano teria de convidar todos os vizinhos islâmicos, até o Paquistão e o Marrocos, para uma conferência de estabilização. A maioria deles está disposta a ajudar. E quando os EUA saírem terão de convocar uma conferência dos países doadores que têm participação na recuperação econômica do Iraque, em particular na produção de petróleo. Essa é uma das principais preocupações da Europa e do Extremo Oriente.
DS - A conferência de doadores ocorrerá no outono, de qualquer modo.
Brzezinski - Sim, mas duvido que ela provocará muito entusiasmo enquanto os soldados americanos estiverem no país indefinidamente. Incidentalmente, esse não é apenas o meu argumento. Tudo isso corresponde a quase literalmente as propostas do novo assessor de segurança iraquiano.
DS - Os opositores de uma retirada rápida defendem a tese de que a guerra sectária entre xiitas e sunitas no Iraque se tornaria ainda mais violenta do que já é.
Brzezinski - Todos os que conhecem a história dos exércitos de ocupação sabem que as forças armadas estrangeiras não são muito eficazes para reprimir a resistência armada, rebeliões, movimentos de libertação nacional, seja qual for o nome que se dê. Afinal eles são estrangeiros, não entendem o país e não têm acesso à inteligência necessária. Essa é a situação em que nos encontramos. Além disso, existe um círculo vicioso no sentido de que até os exércitos de ocupação profissionais tornam-se desmoralizados com o tempo, o que leva a atos de violência contra a população civil e assim reforça a resistência. Os iraquianos podem lidar com a violência de motivação religiosa em seu país muito melhor do que os americanos de milhares de quilômetros de distância.
DS - Então não há alternativa para a retirada das tropas, mesmo que haja uma escalada inicial da violência?
Brzezinski - Os iraquianos não são um povo primitivo que precisam da tutela colonial americana para resolver seus problemas.
DS - Na realidade, o presidente não teme que o Iraque deixe de ser a democracia modelo que ele imagina depois que os americanos partirem?
Brzezinski - Isso é uma certeza, e portanto qualquer tentativa de buscar sua definição de vitória é pura fantasia. Mas haverá um governo dominado por curdos e xiitas, e alguns elementos sunitas. Isso em si já é uma melhora comparada ao regime de Saddam Hussein, e portanto pelo menos um sucesso parcial.
DS - O senhor tem certeza de que é possível evitar uma guerra civil religiosa?
Brzezinski - É claro que não posso ter certeza. Mas De Gaulle tinha certeza quando decidiu que a França podia terminar a guerra na Argélia?
Todos ao redor dele o advertiram sobre as terríveis conseqüências de sua decisão.
DS - O senhor não teme que esse conflito religioso possa incendiar toda a região?
Brzezinski - Muito pelo contrário. Quanto mais ficarmos, maior a probabilidade de incêndio. O fato é que estamos lá há três anos e a situação hoje é muito pior do que naquela época. Pelo menos logicamente há certa evidência que apóia minha proposta.
DS - Bush apresentou ao mundo o "eixo do mal". Ele não facilitou as coisas para si mesmo ao atacar a parte menos perigosa desse eixo?
Brzezinski - Sim, o Iraque não era perigoso. A Coréia do Norte e o Irã parecem estar atualmente muito calculistas. No entanto, o Irã é um país genuinamente histórico que tem um papel importante na região. Meu palpite é que o Irã encontrará alguma forma de acomodação com o resto do mundo, pelo menos mais fácil de alcançar do que a da Coréia do Norte.
DS - Se as negociações com o Irã falharem, os EUA interviriam militarmente?
Brzezinski - Há alguns membros do governo que defendem isso. No entanto, em vista das experiências no Iraque, considero mais provável que o governo, juntamente com seus aliados, imponha sanções significativas, que então levarão alguns anos para mostrar seus efeitos, o que torna altamente improvável que seja Bush quem empreenderá uma ação tão perigosa.
DS - Quais seriam as conseqüências desse ataque?
Brzezinski - Os iranianos têm diversas opções em aberto. Uma delas é a desestabilização do Iraque e da parte ocidental do Afeganistão, assim como a sempre presente opção de ativar o Hizbollah no Líbano.
Eles poderiam cortar a produção de petróleo, prejudicar a produção saudita e ameaçar a passagem dos navios petroleiros pelo estreito de Ormuz, com todas as conseqüências devastadoras para a economia mundial.
Eles também poderiam acelerar a produção de armas de destruição em massa, o que muito possivelmente levaria a ataques militares renovados e mais abrangentes - um círculo vicioso.
DS - O senhor disse que os EUA precisam de conselhos sólidos dos europeus para evitar uma visão irreal do mundo. A Europa está na posição de dar esse conselho?
Brzezinski - No Oriente Médio, os EUA estão inadvertidamente deslizando para o papel de uma potência colonial, repetindo as experiências européias.
Uma combinação de interesse próprio, um sentido de missão e uma ignorância arrogante resultaram no que os americanos estão fazendo agora. Como a Grã-Bretanha e a França tiveram as mesmas experiências no passado, têm um melhor sentido do fato de que a rota americana no Oriente Médio é um erro político e, em longo prazo, também perigosa para os EUA. Em curto prazo ela prejudica os princípios americanos e sua legitimidade internacional.
DS - O senhor realmente acredita que esse é o tipo de conselho que o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, dá a Bush?
Brzezinski - É o que ele deveria dar. Mas eu acho que os britânicos tomaram uma decisão depois da crise de Suez em 1956 de nunca mais entrar em choque com os EUA e ser uma fonte alternativa de influência global tornando-se o parceiro mais próximo dos EUA.
DS - Existe um temor na Europa de que Bush possa voltar ao unilateralismo se recuperar sua liberdade de ação na política externa.
Brzezinski - Para isso ele teria de conseguir milagrosamente sua vitória fantasmagórica. Mas esta recua ainda mais. Foi exatamente assim com os soviéticos, que costumavam insistir que a vitória do socialismo estava logo depois do horizonte, desprezando o fato de que o horizonte é uma linha imaginária que recua conforme você avança em sua direção.
Além disso, em dois anos e meio ele não será mais presidente, e nenhum sucessor vai querer adotar os lemas e a demagogia dos últimos três anos.
DS - Existe alguma condição sob a qual os EUA poderiam perder sua atual supremacia política?
Brzezinski - Bastaria manterem as atuais políticas e também, no futuro, não dar uma resposta séria às queixas cada vez mais fortes de desigualdade global. Estamos hoje lidando com uma humanidade muito mais ativa politicamente, que exige uma resposta coletiva do Ocidente para seus problemas.
DS - Seu pedido para erradicar a desigualdade global não é tão ilusório quanto o pedido de Bush para que os EUA libertem o mundo do mal?
Brzezinski - Alcançar a igualdade seria de fato um objetivo ilusório.
Reduzir a desigualdade na era da televisão e da Internet pode se tornar uma necessidade política. Estamos entrando em uma fase histórica em que as populações da China e da Índia, mas também do Nepal, da Bolívia ou da Venezuela, não vão mais tolerar as enormes disparidades na condição humana.
Isso poderia muito bem ser o perigo coletivo que teremos de enfrentar nas próximas décadas.
DS - O senhor o chama de "despertar político global".
Brzezinski - Sim, e é basicamente uma repetição, mas hoje em escala global, do despertar social e político que ocorreu na França na época da revolução. Durante o século 19 ela se espalhou pela Europa e partes do hemisfério ocidental, no século 20 chegou ao Japão e finalmente à China. Agora esta varrendo o resto do mundo.
DS - Os países islâmicos também?
Brzezinski - Não realmente da mesma maneira. É um processo turbulento, de múltiplas direções, que no entanto desafia a estabilidade global. Se os EUA, a Europa e o Japão, mas também China, Rússia e Índia, não conseguirem encontrar um mecanismo para uma colaboração global eficaz, escorregaremos para um crescente caos mundial, que será fatal para a liderança americana.
Portanto, considero o papel da liderança americana vulnerável, mas insubstituível no futuro previsível.
Quem é?
Zbigniew Brzezinski, 78, serviu como assessor de Segurança Nacional do presidente americano Jimmy Carter de 1977 a 1981. Hoje ele é professor de política externa americana na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e assessor do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves