Raízes genéticas brasileiras
Enviado: 24 Set 2006, 13:53
Dois textos sobre a miscigenação racial brasileira.
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24.09.2006 "O Globo"
Raízes ocultas do Brasil
SEGUNDO AS e stimativas, o Brasil tem cerca de 120 mil judeus. Uma gota
- ínfimos 0,07% do total - num oceano demográfico de 180 milhões de
habitantes.
Pesquisas acadêmicas, filmes e livros, no entanto, vêm apontando nos
últimos anos para um cenário diferente. Se for levada em consideração a
ascendência e não a prática da religião, o Brasil apresenta-se como um
possível candidato ao posto de país com maior população judaica do planeta.
A mágica multiplicadora tem origem nas raízes históricas da formação do
povo brasileiro, ainda em tempos coloniais, mas os fatos cruciais que
levam a essa inusitada possibilidade ocorreram na Península Ibérica
antes mesmo da chegada de Cabral à Bahia em 1500. A história do Brasil
judaico começa na verdade em 1492, quando entre 90 mil e 130 mil judeus
expulsos da Espanha pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel, cruzaram a
fronteira e buscaram refúgio em Portugal, na época com quase um milhão
de habitantes. Somandose aos cerca de 30 mil a 50 mil judeus
portugueses, o país teria ficado com uma população judaica estimada em
13% a 15% do total. Os números, é bom lembrar, são de cronistas da
época, mas hoje aceita-se que pelo menos 10% fossem judeus na época do
Descobrimento.
Conversão forçada de judeus
O fator determinante ocorreu em 1496, quando D. Manuel I ordenou a
expulsão dos judeus de Portugal para poder casar-se com a filha dos Reis
Católicos, mas, não querendo ficar sem uma parte economicamente
importante da população do reino, deu um "jeitinho português" para
resolver a situação. Avisou que iria pôr à disposição em Lisboa navios
para quem quisesse ir embora e, no dia marcado, milhares de judeus
amontoados na cidade foram batizados à força por um batalhão de padres
que saíram aspergindo água benta na multidão atônita. Do batismo forçado
em 1497 surgiram grandes contingentes de cristãos-novos, que logo
começariam a embarcar nas caravelas para ajudar a povoar a nova colônia
portuguesa na América do Sul.
- O judeu entrou intimamante na composição étnica do povo brasileiro.
E agora já temos pesquisas que indicam o número: podemos afirmar que, no
estado atual das investigações, de 25% a 30% da população nas cidades
coloniais brasileiras eram de origem judaica - assegura a historiadora
Anita Novinsky, diretora do Laboratório de Estudos da Intolerância da
USP e uma das maiores autoridades mundiais sobre cristãos novos.
- Mas o percentual na colônia como um todo podia ser ainda maior porque
muitos fugiam para o Sertão para escapar da Inquisição.
Como resultado da astúcia de D.Manuel e da grande miscigenação em terras brasileiras, o sangue judaico - embora não as crenças religiosas - foi aos poucos se espalhando pelo
restante da população.
Daí que muitas figurinhas fáceis dos livros de história traçam suas
raízes aos descendentes de Abraão: o primeiro ?dono? do Brasil, Fernando
de Noronha, que arrendou o país em 1503; o primeiro governador-geral,
Tomé de Souza; o bandeirante Raposo Tavares, entre outros; o estadista
Joaquim Nabuco; o poeta Vinicius de Moraes; o compositor Chico Buarque
de Hollanda; o cineasta Glauber Rocha. Todos unidos em suas origens
judaicas.
EM BUSCA DOS judeus e dos cristãos novos que partiram para o interior sem
deixar rastro, a jornalista Luize Valente e a fotógrafa Elaine Eiger
rumaram para o Nordeste após tomarem conhecimento de uma comunidade no
Rio Grande do Norte onde parte dos 800 moradores - todos católicos -
mantinha hábitos curiosos. Na minúscula Venha Ver, surpreenderam-se ao
se depararem com rituais de origem judaica tão antigos que até o
judaísmo moderno já os deixou para trás, como orar para a Lua nova ou
sepultar mortos em mortalha sem caixão.
- É um lugar completamente isolado e muito pobre. Queríamos saber como
aqueles hábitos chegaram ali - conta Luize, que com Elaine lançou em
2005 o documentário "A estrela oculta do Sertão", trazendo à tona a saga
de descendentes de cristãos novos espalhados pelo interior.
- Nos demos conta de que o Brasil tem raízes judaicas não associadas às raízes
religiosas, mas que ficaram como herança familiar. Há muitos hábitos
preservados no Nordeste, que é uma região menos globalizada.
Miscigenação apagou rastros
O folclorista Câmara Cascudo foi um dos que buscaram essas raízes
esquecidas da cultura brasileira. Uma das hipóteses que levantou foi de
que a brasileiríssima festa do bumba-meu boi tenha se originado da
procissão da Simhá Torá em Recife durante a ocupação holandesa no século
XVII.
Aliás, a cidade foi a primeira das Américas a contar com uma sinagoga e
um rabino sob o governo holandês.
Como os judeus saíam dançando pelas ruas segurando os rolos da Torá, que
tinham duas extremidades semelhantes a chifres, a população teria
começado a dizer que eles estavam "dançando com a toura". Daí para o
bumba-meu-boi teria sido um pulo.
Teorias à parte, o fato é que o rastro judaico original entre os
brasileiros perdeu-se ao longo dos séculos e há muito deixou de ser
evidente. Com a incorporação forçada dos judeus à população portuguesa a
partir de 1496, os convertidos ganharam os sobrenomes de seus padrinhos
cristãos ou foram batizados com nomes comuns da própria língua. E em
1773 foi abolido o registro obrigatório da ascendência judaica nos
documentos.
Com isso e mais o alto índice de miscigenação ocorrido no Brasil,
qualquer sobrenome com milhares de entradas nas listas telefônicas pode
esconder uma ligação direta com os filhos de Israel num passado distante.
O "Dicionário sefaradi de sobrenomes" (Ed. Fraiha), que reúne 17 mil
nomes de famílias de origem judaica encontrados na Península Ibérica,
tem 91 registros do comuníssimo Silva e outros 89 do tradicional Pereira.
- O Brasil é um país mestiço e isso vale para todos. Temos sangue de
todas as origens e o nome por si só não é uma marca, mas onde a
população é mais de ascendência portuguesa, há maior descendência de
cristãos-novos - diz um dos autores do dicionário, o genealogista Paulo
Valadares, cuja tese de mestrado na USP mapeou o rastro deixado por 12
famílias de judeus/cristãos-novos do século XV ao século XX.
Retorno às origens judaicas
A consciência de que os judeus estão intimamente ligados ao passado
brasileiro levou o advogado Joseph Pernidji, de 86 anos, a mergulhar na
busca das raízes de sua família, que nunca se afastou do judaísmo. Dono
de uma biblioteca de dois mil volumes sobre o tema, ele passou décadas
pesquisando aqui e no exterior até chegar ao antepassado Eliel Vivas, um
dos que driblaram D. Manuel e saíram de Portugal em 1496. Resolveu
contar no livro "Das fogueiras da Inquisição às terras do Brasil" (Ed.
Imago) a saga da família sefardita que só chegou ao país no início do
século XX, mas nunca perdeu de vista a Península Ibérica natal onde tudo
começou.
- As famílias expulsas guardaram o folclore e o linguajar como um
tesouro cultural por 500 anos e eles fizeram parte da minha infância.
Costumo dizer que se Portugal e Espanha expulsaram os judeus, os judeus
não as expulsaram de sua alma - diz ele, que defende a tese de que a
maior parte das famílias brasileiras de origem portuguesa tenha pelo
menos ?um grama de sangue judeu?.
E se os Pernidji nunca deixaram o judaísmo, há quem refaça o caminho de
volta para resgatar não somente a história familiar, mas também a fé dos
antepassados. O engenheiro mineiro Marcelo Guimarães é um deles.
Fundador da Associação Brasileira dos Descendentes de Judeus da
Inquisição, ele abandonou a carreira para dedicar-se ao judaísmo
messiânico:
-Qualquer cidadão tem o direito de resgatar suas origens
sangüíneas e também ideológicas, além de crenças, tradições e costumes
inerentes a um determinado povo-, defende no site da organização.
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ALI KAMEL - "O Globo" 19/09/06
Somos filhos da mistura
ALI KAMEL Outro dia, fui acusado de dar publicidade no meu livro “Não somos racistas” aos estudos segundo os quais 87% dos brasileiros têm mais do que 10% de ancestralidade genômica africana, e de omitir outras pesquisas que indicariam outra realidade. O crítico Marcelo Leite citou o estudo que mostra que, no Brasil, 98% dos marcadores genéticos dos homens brancos, herdados do pai, têm origem européia, enquanto os marcadores genéticos herdados da mãe têm origens mais bem distribuídas: 39%, européia, 33%, indígena e 28%, africana. A partir desse dado, ele fez uma ilação que, se verdadeira, dói na alma: “A tradução é clara: os senhores portugueses e seus descendentes, indubitavelmente brancos, eram os machos dominantes e tinham filhos com as poucas mulheres brancas, mas também se saciavam com as escravas índias e negras, gerando a multidão de pardos na pele e no DNA, nem sempre os dois juntos, que povoou e povoa, ainda hoje, o Brasil. Isso, obviamente, nada tem a ver com racismo (ao menos para quem está pronto a enxergar como congraçamento o que outros preferem ver como violência).” Seríamos, então, todos filhos do estupro ? Em primeiro lugar, não omiti nada, porque são pesquisas que dizem coisas diferentes. A ancestralidade genômica analisa um conjunto de características herdadas de pai e mãe, através das gerações, que determina o grau de procedência geográfica daquele patrimônio genético. Os marcadores genéticos do cromossomo Y, herdados apenas por homens do pai, e os marcadores genéticos do DNA mitocondrial, herdados por homens e mulheres da mãe, mas transmitidos à geração seguinte apenas pelas mulheres, falam apenas do fundador de uma determinada linhagem, que pode remontar a centenas de anos atrás: falam de apenas um só indivíduo.
Um exemplo claro: uma índia teve uma filha com um europeu há 500 anos. Este é o início de uma linhagem.
A filha dela herdou da mãe um DNA mitocondrial 100% indígena. Esta filha se casou com um europeu e toda a sua descendência, ao longo de 500 anos, fez a mesma coisa, gerações se casando sempre com europeus: hoje, a descendente daquela união, filha, neta, bisneta e tataraneta, pelos dois lados, de europeus, será na aparência totalmente européia, terá uma ancestralidade genômica quase integralmente européia, mas o seu DNA mitocondrial ainda hoje será 100% indígena.
O mesmo acontece com os marcadores genéticos do cromossomo Y. Se o fundador da linhagem, há 500 anos, era europeu, não importa que todos depois tenham se casado com índios ao longo da história: hoje o descendente daquela união há 500 anos será um índio, terá uma ancestralidade genômica quase integralmente ameríndia, mas o seu marcador genético do cromossomo Y ainda assim será 100% de origem européia.
Portanto, a conclusão é mesmo clara: a vasta maioria dos homens brancos no Brasil descende de um fundador de linhagem de origem européia, e, por isso, tem marcadores genéticos do cromossomo Y 100% de origem européia.
Mas isso não implica necessariamente que todos os homens daquela linhagem, ao longo de anos e anos, tenham sido brancos: quer dizer apenas que o fundador era europeu.
Entre o fundador e o indivíduo de hoje, podem ter existido gerações das mais diversas misturas. E o instrumento que mostra o grau dessa mestiçagem é a pesquisa de ancestralidade genômica, e não a pesquisa sobre marcadores genéticos do cromossomo Y e marcadores genéticos do DNA mitocondrial.
Resta analisar a hipótese dantesca: somos filhos do estupro? É preciso desconhecer a nossa história demográfica para responder positivamente.
Nos primeiros 150 anos do Brasil, havia escassez de mulheres brancas. Para o português, as mulheres indígenas foram quase a única opção para que constituísse família e povoasse a terra. Houve violência? Provavelmente, mas viajantes e cronistas de época dão conta de que essa não era a regra. Em 1551, o padre Manoel da Nóbrega escrevia sobre Pernambuco: “Os mais aqui tinham índia de muito tempo de que tinham filhos e tinham por grande infâmia casarem com elas. Agora se vão casando, e tomando vida de bom estado.” Gilberto Freyre escreve: “Zacarias Wagner observaria no século XVII que entre as filhas das caboclas iam buscar esposas legítimas muitos portugueses, mesmos dos mais ricos, e até ‘alguns neerlandeses abrasados de paixão’.” Em 1755, uma lei promulgada pelo Marquês de Pombal estimulava ativamente a união entre portugueses e índias.
E as negras? É evidente que o português, para usar um termo de Leite, sempre se saciou delas das mais diversas formas, perversas ou não.
Mas terá havido uniões estáveis? A historiografia diz que sim. “E, pela mesma razão, não há mineiro que possa viver sem nenhuma negra Mina, dizendo que só com ela tem fortuna”, dizia, referindo-se a Minas Gerais, Luiz Vaia Monteiro, governador do Rio de Janeiro em 1730, acrescentando que elas eram elevadas à condição de “donas de casa”.
É verdade que o casamento não foi a regra, porque as leis brasileiras e portuguesas, ao facilitarem o perfilhamento de filhos ilegítimos, estimulavam o concubinato ou as relações efêmeras.
Mas a união entre negros e brancos no Brasil é uma prática que percorre os séculos.
Essa é a nossa beleza.
O que acabo de descrever está em linha com os números que Leite cita, mas as conclusões dele são descabidas.
Os brancos brasileiros hoje têm mesmo altíssima possibilidade de ter marcadores genéticos do cromossomo Y, herdados do pai, de origem européia, e marcadores genéticos do DNA mitocondrial, herdados da mãe, com origem mais bem distribuída: africana, ameríndia e européia. Esses dados, porém, mostram apenas o começo da história, quando os primeiros brancos se deitaram com as primeiras índias, com as primeiras negras, com as primeiras européias que aqui chegaram.
Pode ter havido violência, pode ter havido paixão. Quem vai saber? O que sabemos com certeza é que esses números nada dizem sobre a história de cada indivíduo, das gerações que os precederam, dos amores dos quais são hoje o resultado. Dizem respeito apenas ao casal original. E só. O que conta a história completa dos indivíduos, através das gerações, é o estudo que divulgo no livro: e este diz que 87% dos brasileiros têm mais de 10% de ancestralidade africana.
Depois do casal original, tomamos gosto pela mistura e nos tornamos avessos a interdições raciais. Somos todos misturados. Não somos racistas.
ALI KAMEL é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br.
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24.09.2006 "O Globo"
Raízes ocultas do Brasil
SEGUNDO AS e stimativas, o Brasil tem cerca de 120 mil judeus. Uma gota
- ínfimos 0,07% do total - num oceano demográfico de 180 milhões de
habitantes.
Pesquisas acadêmicas, filmes e livros, no entanto, vêm apontando nos
últimos anos para um cenário diferente. Se for levada em consideração a
ascendência e não a prática da religião, o Brasil apresenta-se como um
possível candidato ao posto de país com maior população judaica do planeta.
A mágica multiplicadora tem origem nas raízes históricas da formação do
povo brasileiro, ainda em tempos coloniais, mas os fatos cruciais que
levam a essa inusitada possibilidade ocorreram na Península Ibérica
antes mesmo da chegada de Cabral à Bahia em 1500. A história do Brasil
judaico começa na verdade em 1492, quando entre 90 mil e 130 mil judeus
expulsos da Espanha pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel, cruzaram a
fronteira e buscaram refúgio em Portugal, na época com quase um milhão
de habitantes. Somandose aos cerca de 30 mil a 50 mil judeus
portugueses, o país teria ficado com uma população judaica estimada em
13% a 15% do total. Os números, é bom lembrar, são de cronistas da
época, mas hoje aceita-se que pelo menos 10% fossem judeus na época do
Descobrimento.
Conversão forçada de judeus
O fator determinante ocorreu em 1496, quando D. Manuel I ordenou a
expulsão dos judeus de Portugal para poder casar-se com a filha dos Reis
Católicos, mas, não querendo ficar sem uma parte economicamente
importante da população do reino, deu um "jeitinho português" para
resolver a situação. Avisou que iria pôr à disposição em Lisboa navios
para quem quisesse ir embora e, no dia marcado, milhares de judeus
amontoados na cidade foram batizados à força por um batalhão de padres
que saíram aspergindo água benta na multidão atônita. Do batismo forçado
em 1497 surgiram grandes contingentes de cristãos-novos, que logo
começariam a embarcar nas caravelas para ajudar a povoar a nova colônia
portuguesa na América do Sul.
- O judeu entrou intimamante na composição étnica do povo brasileiro.
E agora já temos pesquisas que indicam o número: podemos afirmar que, no
estado atual das investigações, de 25% a 30% da população nas cidades
coloniais brasileiras eram de origem judaica - assegura a historiadora
Anita Novinsky, diretora do Laboratório de Estudos da Intolerância da
USP e uma das maiores autoridades mundiais sobre cristãos novos.
- Mas o percentual na colônia como um todo podia ser ainda maior porque
muitos fugiam para o Sertão para escapar da Inquisição.
Como resultado da astúcia de D.Manuel e da grande miscigenação em terras brasileiras, o sangue judaico - embora não as crenças religiosas - foi aos poucos se espalhando pelo
restante da população.
Daí que muitas figurinhas fáceis dos livros de história traçam suas
raízes aos descendentes de Abraão: o primeiro ?dono? do Brasil, Fernando
de Noronha, que arrendou o país em 1503; o primeiro governador-geral,
Tomé de Souza; o bandeirante Raposo Tavares, entre outros; o estadista
Joaquim Nabuco; o poeta Vinicius de Moraes; o compositor Chico Buarque
de Hollanda; o cineasta Glauber Rocha. Todos unidos em suas origens
judaicas.
EM BUSCA DOS judeus e dos cristãos novos que partiram para o interior sem
deixar rastro, a jornalista Luize Valente e a fotógrafa Elaine Eiger
rumaram para o Nordeste após tomarem conhecimento de uma comunidade no
Rio Grande do Norte onde parte dos 800 moradores - todos católicos -
mantinha hábitos curiosos. Na minúscula Venha Ver, surpreenderam-se ao
se depararem com rituais de origem judaica tão antigos que até o
judaísmo moderno já os deixou para trás, como orar para a Lua nova ou
sepultar mortos em mortalha sem caixão.
- É um lugar completamente isolado e muito pobre. Queríamos saber como
aqueles hábitos chegaram ali - conta Luize, que com Elaine lançou em
2005 o documentário "A estrela oculta do Sertão", trazendo à tona a saga
de descendentes de cristãos novos espalhados pelo interior.
- Nos demos conta de que o Brasil tem raízes judaicas não associadas às raízes
religiosas, mas que ficaram como herança familiar. Há muitos hábitos
preservados no Nordeste, que é uma região menos globalizada.
Miscigenação apagou rastros
O folclorista Câmara Cascudo foi um dos que buscaram essas raízes
esquecidas da cultura brasileira. Uma das hipóteses que levantou foi de
que a brasileiríssima festa do bumba-meu boi tenha se originado da
procissão da Simhá Torá em Recife durante a ocupação holandesa no século
XVII.
Aliás, a cidade foi a primeira das Américas a contar com uma sinagoga e
um rabino sob o governo holandês.
Como os judeus saíam dançando pelas ruas segurando os rolos da Torá, que
tinham duas extremidades semelhantes a chifres, a população teria
começado a dizer que eles estavam "dançando com a toura". Daí para o
bumba-meu-boi teria sido um pulo.
Teorias à parte, o fato é que o rastro judaico original entre os
brasileiros perdeu-se ao longo dos séculos e há muito deixou de ser
evidente. Com a incorporação forçada dos judeus à população portuguesa a
partir de 1496, os convertidos ganharam os sobrenomes de seus padrinhos
cristãos ou foram batizados com nomes comuns da própria língua. E em
1773 foi abolido o registro obrigatório da ascendência judaica nos
documentos.
Com isso e mais o alto índice de miscigenação ocorrido no Brasil,
qualquer sobrenome com milhares de entradas nas listas telefônicas pode
esconder uma ligação direta com os filhos de Israel num passado distante.
O "Dicionário sefaradi de sobrenomes" (Ed. Fraiha), que reúne 17 mil
nomes de famílias de origem judaica encontrados na Península Ibérica,
tem 91 registros do comuníssimo Silva e outros 89 do tradicional Pereira.
- O Brasil é um país mestiço e isso vale para todos. Temos sangue de
todas as origens e o nome por si só não é uma marca, mas onde a
população é mais de ascendência portuguesa, há maior descendência de
cristãos-novos - diz um dos autores do dicionário, o genealogista Paulo
Valadares, cuja tese de mestrado na USP mapeou o rastro deixado por 12
famílias de judeus/cristãos-novos do século XV ao século XX.
Retorno às origens judaicas
A consciência de que os judeus estão intimamente ligados ao passado
brasileiro levou o advogado Joseph Pernidji, de 86 anos, a mergulhar na
busca das raízes de sua família, que nunca se afastou do judaísmo. Dono
de uma biblioteca de dois mil volumes sobre o tema, ele passou décadas
pesquisando aqui e no exterior até chegar ao antepassado Eliel Vivas, um
dos que driblaram D. Manuel e saíram de Portugal em 1496. Resolveu
contar no livro "Das fogueiras da Inquisição às terras do Brasil" (Ed.
Imago) a saga da família sefardita que só chegou ao país no início do
século XX, mas nunca perdeu de vista a Península Ibérica natal onde tudo
começou.
- As famílias expulsas guardaram o folclore e o linguajar como um
tesouro cultural por 500 anos e eles fizeram parte da minha infância.
Costumo dizer que se Portugal e Espanha expulsaram os judeus, os judeus
não as expulsaram de sua alma - diz ele, que defende a tese de que a
maior parte das famílias brasileiras de origem portuguesa tenha pelo
menos ?um grama de sangue judeu?.
E se os Pernidji nunca deixaram o judaísmo, há quem refaça o caminho de
volta para resgatar não somente a história familiar, mas também a fé dos
antepassados. O engenheiro mineiro Marcelo Guimarães é um deles.
Fundador da Associação Brasileira dos Descendentes de Judeus da
Inquisição, ele abandonou a carreira para dedicar-se ao judaísmo
messiânico:
-Qualquer cidadão tem o direito de resgatar suas origens
sangüíneas e também ideológicas, além de crenças, tradições e costumes
inerentes a um determinado povo-, defende no site da organização.
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ALI KAMEL - "O Globo" 19/09/06
Somos filhos da mistura
ALI KAMEL Outro dia, fui acusado de dar publicidade no meu livro “Não somos racistas” aos estudos segundo os quais 87% dos brasileiros têm mais do que 10% de ancestralidade genômica africana, e de omitir outras pesquisas que indicariam outra realidade. O crítico Marcelo Leite citou o estudo que mostra que, no Brasil, 98% dos marcadores genéticos dos homens brancos, herdados do pai, têm origem européia, enquanto os marcadores genéticos herdados da mãe têm origens mais bem distribuídas: 39%, européia, 33%, indígena e 28%, africana. A partir desse dado, ele fez uma ilação que, se verdadeira, dói na alma: “A tradução é clara: os senhores portugueses e seus descendentes, indubitavelmente brancos, eram os machos dominantes e tinham filhos com as poucas mulheres brancas, mas também se saciavam com as escravas índias e negras, gerando a multidão de pardos na pele e no DNA, nem sempre os dois juntos, que povoou e povoa, ainda hoje, o Brasil. Isso, obviamente, nada tem a ver com racismo (ao menos para quem está pronto a enxergar como congraçamento o que outros preferem ver como violência).” Seríamos, então, todos filhos do estupro ? Em primeiro lugar, não omiti nada, porque são pesquisas que dizem coisas diferentes. A ancestralidade genômica analisa um conjunto de características herdadas de pai e mãe, através das gerações, que determina o grau de procedência geográfica daquele patrimônio genético. Os marcadores genéticos do cromossomo Y, herdados apenas por homens do pai, e os marcadores genéticos do DNA mitocondrial, herdados por homens e mulheres da mãe, mas transmitidos à geração seguinte apenas pelas mulheres, falam apenas do fundador de uma determinada linhagem, que pode remontar a centenas de anos atrás: falam de apenas um só indivíduo.
Um exemplo claro: uma índia teve uma filha com um europeu há 500 anos. Este é o início de uma linhagem.
A filha dela herdou da mãe um DNA mitocondrial 100% indígena. Esta filha se casou com um europeu e toda a sua descendência, ao longo de 500 anos, fez a mesma coisa, gerações se casando sempre com europeus: hoje, a descendente daquela união, filha, neta, bisneta e tataraneta, pelos dois lados, de europeus, será na aparência totalmente européia, terá uma ancestralidade genômica quase integralmente européia, mas o seu DNA mitocondrial ainda hoje será 100% indígena.
O mesmo acontece com os marcadores genéticos do cromossomo Y. Se o fundador da linhagem, há 500 anos, era europeu, não importa que todos depois tenham se casado com índios ao longo da história: hoje o descendente daquela união há 500 anos será um índio, terá uma ancestralidade genômica quase integralmente ameríndia, mas o seu marcador genético do cromossomo Y ainda assim será 100% de origem européia.
Portanto, a conclusão é mesmo clara: a vasta maioria dos homens brancos no Brasil descende de um fundador de linhagem de origem européia, e, por isso, tem marcadores genéticos do cromossomo Y 100% de origem européia.
Mas isso não implica necessariamente que todos os homens daquela linhagem, ao longo de anos e anos, tenham sido brancos: quer dizer apenas que o fundador era europeu.
Entre o fundador e o indivíduo de hoje, podem ter existido gerações das mais diversas misturas. E o instrumento que mostra o grau dessa mestiçagem é a pesquisa de ancestralidade genômica, e não a pesquisa sobre marcadores genéticos do cromossomo Y e marcadores genéticos do DNA mitocondrial.
Resta analisar a hipótese dantesca: somos filhos do estupro? É preciso desconhecer a nossa história demográfica para responder positivamente.
Nos primeiros 150 anos do Brasil, havia escassez de mulheres brancas. Para o português, as mulheres indígenas foram quase a única opção para que constituísse família e povoasse a terra. Houve violência? Provavelmente, mas viajantes e cronistas de época dão conta de que essa não era a regra. Em 1551, o padre Manoel da Nóbrega escrevia sobre Pernambuco: “Os mais aqui tinham índia de muito tempo de que tinham filhos e tinham por grande infâmia casarem com elas. Agora se vão casando, e tomando vida de bom estado.” Gilberto Freyre escreve: “Zacarias Wagner observaria no século XVII que entre as filhas das caboclas iam buscar esposas legítimas muitos portugueses, mesmos dos mais ricos, e até ‘alguns neerlandeses abrasados de paixão’.” Em 1755, uma lei promulgada pelo Marquês de Pombal estimulava ativamente a união entre portugueses e índias.
E as negras? É evidente que o português, para usar um termo de Leite, sempre se saciou delas das mais diversas formas, perversas ou não.
Mas terá havido uniões estáveis? A historiografia diz que sim. “E, pela mesma razão, não há mineiro que possa viver sem nenhuma negra Mina, dizendo que só com ela tem fortuna”, dizia, referindo-se a Minas Gerais, Luiz Vaia Monteiro, governador do Rio de Janeiro em 1730, acrescentando que elas eram elevadas à condição de “donas de casa”.
É verdade que o casamento não foi a regra, porque as leis brasileiras e portuguesas, ao facilitarem o perfilhamento de filhos ilegítimos, estimulavam o concubinato ou as relações efêmeras.
Mas a união entre negros e brancos no Brasil é uma prática que percorre os séculos.
Essa é a nossa beleza.
O que acabo de descrever está em linha com os números que Leite cita, mas as conclusões dele são descabidas.
Os brancos brasileiros hoje têm mesmo altíssima possibilidade de ter marcadores genéticos do cromossomo Y, herdados do pai, de origem européia, e marcadores genéticos do DNA mitocondrial, herdados da mãe, com origem mais bem distribuída: africana, ameríndia e européia. Esses dados, porém, mostram apenas o começo da história, quando os primeiros brancos se deitaram com as primeiras índias, com as primeiras negras, com as primeiras européias que aqui chegaram.
Pode ter havido violência, pode ter havido paixão. Quem vai saber? O que sabemos com certeza é que esses números nada dizem sobre a história de cada indivíduo, das gerações que os precederam, dos amores dos quais são hoje o resultado. Dizem respeito apenas ao casal original. E só. O que conta a história completa dos indivíduos, através das gerações, é o estudo que divulgo no livro: e este diz que 87% dos brasileiros têm mais de 10% de ancestralidade africana.
Depois do casal original, tomamos gosto pela mistura e nos tornamos avessos a interdições raciais. Somos todos misturados. Não somos racistas.
ALI KAMEL é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br.