Disciplina no ensino
Enviado: 12 Out 2006, 19:03
Disciplina no ensino
Hélio Schwartsman
Para variar, comento uma boa notícia. A Fuvest anunciou que vai acabar com a divisão de disciplinas na primeira fase de seu vestibular, o qual seleciona os alunos que estudarão na USP. A idéia é avançar na interdisciplinaridade e exigir do aluno mais reflexão e menos memorização --objetivos louváveis.
É claro que alguns vão chiar. Candidatos e professores de cursinho já se queixam do pouco tempo de que vão dispor para se adaptar à nova situação. Afinal, a próxima prova ocorrerá no final de novembro e a mudança foi divulgada no início de outubro. Não é, porém, esse o tipo de reclamação que me interessa. Preocupam-me mais as objeções dos que vêem na alteração o risco de um nivelamento por baixo. Questões que misturam conteúdos de várias disciplinas tendem a ser mais genéricas. Se o número delas aumenta, diminui o espaço para propor perguntas que testem mais a fundo o nível de conhecimento do candidato.
Tal perigo é real, ainda que a eventualidade de uma prova burra não seja conseqüência necessária. Pelo menos em teoria é perfeitamente possível elaborar testes inteligentes sem recurso à divisão estanque das matérias. Mas eu vou um pouco mais longe e me pergunto se é mesmo o caso de cobrar tantos conteúdos dos candidatos.
O programa da Fuvest 2007, por exemplo, não fica nada a dever a um plano de enciclopédia. Talvez não a "Britannica", mas pelo menos uma "Barsa". Ninguém é claro precisa me convencer da importância de conhecer a tabela periódica --um dos mais brilhantes e bem-sucedidos esforços de catalogação já concebido pela mente humana-- ou das belezas recônditas da trigonometria. Mas tudo somado talvez seja demais, principalmente se a extensão dos saberes exigidos se dá à custa da assimilação dos conceitos mais elementares.
Essa hipótese não é minha, mas de especialistas norte-americanos que fazem parte do Project 2061 (http://www.project2061.org), ligado à AAAS (Associação Americana para o Progresso da Ciência). Eles passaram mais de 15 anos analisando os "curricula" e o desempenho de estudantes em matérias científicas e elaboraram uma série de sugestões para o ensino fundamental e médio dos EUA. Elas incluem a redução dos tópicos abordados pelas escolas, a remoção de detalhes considerados desnecessários e a limitação do vocabulário ao mais essencial. Em biologia, por exemplo, ficam gene, membrana e célula caem fora mitocôndria, complexo de Golgi e ribossomo.
À primeira vista, a idéia pode parecer estapafúrdia. Já que a garotada não está aprendendo direito, vamos facilitar-lhes a vida e ensinar menos coisas. Só que o caso não é exatamente este. Na análise dos especialistas, os programas miraram em coisas demais e acabaram perdendo o foco. Em meio a um mosaico de conteúdos apresentados em boxes ricamente ilustrados no material didático, o aluno deixa de fixar os conceitos mais fundamentais. Quando tudo se torna importante, nada mais importa muito.
Exemplo eloqüente da ignorância com diploma é o de um vídeo do Observatório Astrofísico Harvard-Smithsonian, divulgado poucos anos atrás, que chocou a comunidade científica dos EUA. Entrevistadores perguntavam a alunos da 4ª série e a formandos do prestigioso Massachusetts Institute of Technology (MIT) de onde vinha a massa das árvores. As respostas dos dois grupos foram muito parecidas: do sol, da água, do solo. Obviamente todas elas estão erradas. Os alunos do MIT ficaram surpresos quando foram informados de que a matéria das árvores vinha do dióxido de carbono atmosférico, isto é, do ar. "O ar não poderia pesar tanto", comentou um dos formandos do MIT. É claro que o vídeo foi editado. Mas o simples fato de haver pelo menos um graduando do MIT que não tenha assimilado o conceito de matéria já é inquietante.
Acho que podemos extrapolar essas condições para o Brasil. Nossos alunos se saem bem pior do que seus homólogos norte-americanos nos testes de desempenho internacionais e, por incrível que pareça, nossos programas no ensino médio podem ser ainda mais extensos que os dos EUA.
Dou um passo além e afirmo que a situação nas humanas não é muito diferente. Embora seja filósofo por formação vejo com certa desconfiança a inclusão de filosofia, sociologia e outros penduricalhos na rede obrigatória. Em princípio, todo saber é bem-vindo, mas não creio que faça muito sentido tentar ensinar Kant ou Hegel a quem ainda enfrente dificuldades para interpretar textos bem mais simples, categoria em que se enquadra a maioria de nossos formandos na 8ª série.
Parece-me mais lógico investir pesadamente em leitura e matemática nas séries iniciais para só depois diversificar --e sempre se certificando de que os conceitos centrais foram não apenas decorados, mas apreendidos. É relativamente fácil ensinar filosofia e ciência a um jovem que saiba ler com competência e domine noções fundamentais de álgebra e geometria. Já descobrir ao final do ensino médio que o aluno não consegue nem seguir um manual de instruções de eletrodoméstico é um desastre.
Assim, torna-se especialmente importante que instituições como a Fuvest sinalizem com mudanças que valorizem mais a reflexão do que os conteúdos propriamente ditos. É que, por força de um daqueles mecanismos malucos tão comuns no Brasil, não é o Ministério da Educação que fixa o programa de ensino no país, mas sim os vestibulares mais concorridos como o da USP. O que quer que a Fuvest exija se converte em cânon e passa rapidamente a integrar os "curricula" de cursinhos e escolas públicas e privadas. A alteração no vestibular vale mais pelo que ela pode representar para o ensino em geral do que para o processo seletivo da USP. A medida é ainda mais bem-vinda quando se a coloca no contexto da valorização de outros sistemas de avaliação como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que vem ganhando espaço. Pode ser o começo do fim do vestibular.
Não me entendam mal. Longe de mim querer rebaixar o nível. Pelo contrário, se devo ser acusado de algo nessa seara é de elitista. Penso que o Brasil deve contar com duas ou três universidades de ponta, que, pelo menos em alguns nichos, disputem o título de melhores do mundo. É difícil, mas não impossível. E, para tentar chegar lá, não existe mágica. É preciso selecionar os melhores alunos numa avaliação estritamente acadêmica. Nada contra equilíbrio racial, de sexo ou a preocupação com o voluntariado social. Considerações desse tipo até podem entrar no sistema de seleção para as universidades em geral, mas não para as instituições hipercompetitivas que vão disputar milimetricamente com suas congêneres no exterior. Nesse ambiente, dedicar-se ao serviço social é sinônimo de desperdiçar preciosas horas de estudo.
Hélio Schwartsman
Para variar, comento uma boa notícia. A Fuvest anunciou que vai acabar com a divisão de disciplinas na primeira fase de seu vestibular, o qual seleciona os alunos que estudarão na USP. A idéia é avançar na interdisciplinaridade e exigir do aluno mais reflexão e menos memorização --objetivos louváveis.
É claro que alguns vão chiar. Candidatos e professores de cursinho já se queixam do pouco tempo de que vão dispor para se adaptar à nova situação. Afinal, a próxima prova ocorrerá no final de novembro e a mudança foi divulgada no início de outubro. Não é, porém, esse o tipo de reclamação que me interessa. Preocupam-me mais as objeções dos que vêem na alteração o risco de um nivelamento por baixo. Questões que misturam conteúdos de várias disciplinas tendem a ser mais genéricas. Se o número delas aumenta, diminui o espaço para propor perguntas que testem mais a fundo o nível de conhecimento do candidato.
Tal perigo é real, ainda que a eventualidade de uma prova burra não seja conseqüência necessária. Pelo menos em teoria é perfeitamente possível elaborar testes inteligentes sem recurso à divisão estanque das matérias. Mas eu vou um pouco mais longe e me pergunto se é mesmo o caso de cobrar tantos conteúdos dos candidatos.
O programa da Fuvest 2007, por exemplo, não fica nada a dever a um plano de enciclopédia. Talvez não a "Britannica", mas pelo menos uma "Barsa". Ninguém é claro precisa me convencer da importância de conhecer a tabela periódica --um dos mais brilhantes e bem-sucedidos esforços de catalogação já concebido pela mente humana-- ou das belezas recônditas da trigonometria. Mas tudo somado talvez seja demais, principalmente se a extensão dos saberes exigidos se dá à custa da assimilação dos conceitos mais elementares.
Essa hipótese não é minha, mas de especialistas norte-americanos que fazem parte do Project 2061 (http://www.project2061.org), ligado à AAAS (Associação Americana para o Progresso da Ciência). Eles passaram mais de 15 anos analisando os "curricula" e o desempenho de estudantes em matérias científicas e elaboraram uma série de sugestões para o ensino fundamental e médio dos EUA. Elas incluem a redução dos tópicos abordados pelas escolas, a remoção de detalhes considerados desnecessários e a limitação do vocabulário ao mais essencial. Em biologia, por exemplo, ficam gene, membrana e célula caem fora mitocôndria, complexo de Golgi e ribossomo.
À primeira vista, a idéia pode parecer estapafúrdia. Já que a garotada não está aprendendo direito, vamos facilitar-lhes a vida e ensinar menos coisas. Só que o caso não é exatamente este. Na análise dos especialistas, os programas miraram em coisas demais e acabaram perdendo o foco. Em meio a um mosaico de conteúdos apresentados em boxes ricamente ilustrados no material didático, o aluno deixa de fixar os conceitos mais fundamentais. Quando tudo se torna importante, nada mais importa muito.
Exemplo eloqüente da ignorância com diploma é o de um vídeo do Observatório Astrofísico Harvard-Smithsonian, divulgado poucos anos atrás, que chocou a comunidade científica dos EUA. Entrevistadores perguntavam a alunos da 4ª série e a formandos do prestigioso Massachusetts Institute of Technology (MIT) de onde vinha a massa das árvores. As respostas dos dois grupos foram muito parecidas: do sol, da água, do solo. Obviamente todas elas estão erradas. Os alunos do MIT ficaram surpresos quando foram informados de que a matéria das árvores vinha do dióxido de carbono atmosférico, isto é, do ar. "O ar não poderia pesar tanto", comentou um dos formandos do MIT. É claro que o vídeo foi editado. Mas o simples fato de haver pelo menos um graduando do MIT que não tenha assimilado o conceito de matéria já é inquietante.
Acho que podemos extrapolar essas condições para o Brasil. Nossos alunos se saem bem pior do que seus homólogos norte-americanos nos testes de desempenho internacionais e, por incrível que pareça, nossos programas no ensino médio podem ser ainda mais extensos que os dos EUA.
Dou um passo além e afirmo que a situação nas humanas não é muito diferente. Embora seja filósofo por formação vejo com certa desconfiança a inclusão de filosofia, sociologia e outros penduricalhos na rede obrigatória. Em princípio, todo saber é bem-vindo, mas não creio que faça muito sentido tentar ensinar Kant ou Hegel a quem ainda enfrente dificuldades para interpretar textos bem mais simples, categoria em que se enquadra a maioria de nossos formandos na 8ª série.
Parece-me mais lógico investir pesadamente em leitura e matemática nas séries iniciais para só depois diversificar --e sempre se certificando de que os conceitos centrais foram não apenas decorados, mas apreendidos. É relativamente fácil ensinar filosofia e ciência a um jovem que saiba ler com competência e domine noções fundamentais de álgebra e geometria. Já descobrir ao final do ensino médio que o aluno não consegue nem seguir um manual de instruções de eletrodoméstico é um desastre.
Assim, torna-se especialmente importante que instituições como a Fuvest sinalizem com mudanças que valorizem mais a reflexão do que os conteúdos propriamente ditos. É que, por força de um daqueles mecanismos malucos tão comuns no Brasil, não é o Ministério da Educação que fixa o programa de ensino no país, mas sim os vestibulares mais concorridos como o da USP. O que quer que a Fuvest exija se converte em cânon e passa rapidamente a integrar os "curricula" de cursinhos e escolas públicas e privadas. A alteração no vestibular vale mais pelo que ela pode representar para o ensino em geral do que para o processo seletivo da USP. A medida é ainda mais bem-vinda quando se a coloca no contexto da valorização de outros sistemas de avaliação como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que vem ganhando espaço. Pode ser o começo do fim do vestibular.
Não me entendam mal. Longe de mim querer rebaixar o nível. Pelo contrário, se devo ser acusado de algo nessa seara é de elitista. Penso que o Brasil deve contar com duas ou três universidades de ponta, que, pelo menos em alguns nichos, disputem o título de melhores do mundo. É difícil, mas não impossível. E, para tentar chegar lá, não existe mágica. É preciso selecionar os melhores alunos numa avaliação estritamente acadêmica. Nada contra equilíbrio racial, de sexo ou a preocupação com o voluntariado social. Considerações desse tipo até podem entrar no sistema de seleção para as universidades em geral, mas não para as instituições hipercompetitivas que vão disputar milimetricamente com suas congêneres no exterior. Nesse ambiente, dedicar-se ao serviço social é sinônimo de desperdiçar preciosas horas de estudo.