Como a globalização reduz os salários do Ocidente
Enviado: 17 Out 2006, 14:22
Der Spiegel escreveu:Como a globalização reduz os salários do Ocidente
Gabor Steingart
A Ásia está se desenvolvendo rapidamente em uma potência econômica, com a China e a Índia se transformando gradualmente nos novos mestres do universo. Enquanto isso, o Ocidente enfrenta a perspectiva de perder o jogo da globalização, à medida que a mão-de-obra européia é desvalorizada... aos milhões.
Nota do editor: O ensaio a seguir foi extraído do best seller alemão "World War for Prosperity" (guerra mundial pela prosperidade), do editor Gabor Steingart da "Spiegel". A "Spiegel Online" está publicando uma série diária de trechos do livro.
O capitalista é uma criatura lógica - ele investe seu dinheiro onde espera obter o maior retorno para seu capital. Seja na construção de uma fábrica nos trópicos ou cavando um túnel no "permafrost" (gelo permanente), o capitalista está principalmente interessado em expandir seus ativos. Afinal, o objetivo mais importante do capital é se multiplicar. Caso ocorra o oposto - se ele decrescer- ninguém, nem mesmo os trabalhadores, estará em melhores condições. De fato, o encolhimento do capital geralmente leva a redução de empregos. Palavras como má administração, crise, reestruturação e demissões rapidamente chegam aos jornais.
Se os empregos sobreviverão a uma crise é determinado por uma única pergunta notavelmente direta: o capital investido pode se transformar em mais capital? Nenhum capitalista se interessaria em ver seu investimento encolher de um dia para o outro, caso contrário ele rapidamente deixaria de ser um capitalista.
Os trabalhadores têm uma reputação melhor, apesar de provavelmente irem para onde se encontram os empregos. Se lhes for permitido migrar livremente, eles irão para onde o salário é bom e para onde esperam ter um padrão de vida confiável. Os italianos do sul migram para o norte da Itália, os alemães do leste migram para o oeste e os sul-americanos para a América do Norte. Milhões de pessoas estão constantemente atravessando oceanos e continentes em busca do único propósito de se aproximarem daquilo que consideram ser a terra prometida.
Mas a grande injustiça é que o capital é bem-vindo em quase toda parte, enquanto os trabalhadores não. Truques e incentivos são usados para atrair investimentos em todo o mundo, mas os países rotineiramente fecham suas fronteiras para trabalhadores imigrantes. Em alguns casos, eles até mesmo empregam suas forças armadas para afastar encrenqueiros potenciais.
Também há outro aspecto no qual trabalho e capital diferem. O capital e o capitalista são uma entidade única. Eles estão basicamente unidos pelo quadril, um incapaz de sobreviver sem o outro. Separar o capital de seus donos privados não funciona, como Estados como a ex-Alemanha Oriental aprendeu quando estatizou suas indústrias.
O capitalista é flexível e se tornou realmente inquieto
O problema do trabalho, resumindo, é que o mesmo relacionamento simbiôntico não se aplica ao trabalho e trabalhadores. Apesar dos trabalhadores poderem ser impedidos de cruzar as fronteiras nacionais, nenhum guarda de fronteira pode impedir outra pessoa de ocupar suas vagas de trabalho. Em retrospecto, talvez a verdadeira maravilha do mundo pós-Segunda Guerra Mundial seja o fato dos países do Ocidente terem conseguido por décadas controlar a entrada de forasteiros em seus mercados de trabalho.
Os países negociam todo tido de bens, importam e exportam de tudo sob o sol, de bananas a aparelhos de televisão, da gasolina ao aço, e o dinheiro é transferido de um lado para outro. Mas os trabalhadores nunca são importados e exportados. Apesar da Alemanha Ocidental ter trazido trabalhadores convidados turcos para o país por muitos anos, eles logo ficam sujeitos às mesmas regras e condições dos trabalhadores alemães.
Nem há qualquer diferença particularmente significativa entre os mercados de trabalho na Europa e na América do Norte. As empresas com sedes em lados opostos do Atlântico eram concorrentes, não rivais. Elas pagavam salários, não caridade. Crianças eram crianças e não trabalhadores. A sociedade civil aprovou leis para assegurar relações civilizadas entre trabalhadores e empregadores, para que os dois grupos, apesar de décadas de exploração e luta de classes, no final descobrissem que tinham mais em comum do que pensavam.
Os líderes comunistas no Leste Europeu olhavam o "tête-à-tête" do Ocidente entre trabalhador e empregador com suspeita, mas se recusavam a tomar parte daquilo. Eles negociavam matéria-prima e bens com o Ocidente ao mesmo tempo em que mantinham distância de seus mercados de capital e trabalho. Os países do Terceiro Mundo também pareciam existir em um planeta diferente, com o desinteresse do Ocidente e sua própria impotência garantindo sua exclusão do processo que agora chamamos de globalização.
Mas tudo isto mudou fundamentalmente. O abismo entre o Ocidente e o restante do mundo não apenas está sendo preenchido, mas agora se assemelha a uma ponte. Os capitalistas estão atravessando correndo tal ponte, à procura de aventura e da exploração plena de sua recém adquirida capacidade de viajar. Eles percorrem os lugares mais remotos do planeta, suas fábricas estão despontando em todas as partes e os empregos os seguem.
Em 1980, a soma de todos os investimentos diretos dos países, isto, os recursos que um dado país investe fora de suas próprias fronteiras, era de apenas US$ 500 bilhões. O capitalista à moda antiga tendia a ser do tipo doméstico.
Mas seu sucessor é de uma estirpe diferente. O investimento direto mundial total saltou para US$ 10 trilhões, um aumento de quase 2.000% em apenas 25 anos. O capitalista é flexível, até mesmo inquieto em muitos casos, e agora espera que o trabalho imite sua sede de viagens. O empreendedor à moda antiga era um patriarca e freqüentemente era mais nacionalista do que seus conterrâneos. O capitalista moderno é um passageiro freqüente multiplicado muitas vezes; ele está em casa assim como é um forasteiro onde quer que esteja. Chamá-lo de nacionalista não poderia ser mais equivocado.
Negociando trabalho tanto quanto prata ou seda
Os empregos agora seguem o capitalista em suas viagens pelo mundo. Eles partem do Ocidente e reaparecem em outros lugares. Eles aumentam em uma empresa de software indiana, em uma fábrica de brinquedos húngara ou em uma fábrica de motores para automóveis chinesa. Apesar das freqüentes alegações do contrário, os empregos não simplesmente desaparecem no ar. Em vez disso, eles são substituídos por tecnologia ou por trabalhadores localizados em outro lugar.
Aquilo que nunca se ouviu falar aconteceu, algo que ninguém esperava. Um mercado de trabalho global se desenvolveu, um mercado que está se expandindo diariamente e mudando palpavelmente a forma como bilhões de pessoas vivem e trabalham. As pessoas estão atualmente ligadas por um sistema invisível de conduítes, pessoas que não se conhecem e, em alguns casos, não estão nem mesmo cientes da existência do país no qual seus pares vivem.
Isto é precisamente o que distingue a atual globalização do comércio entre as nações do passado, o império colonial e o capitalismo industrial de meados do século 19. Pela primeira vez na história, um sistema econômico altamente homogêneo se desenvolveu, abrangendo todos os fatores de produção. Capital, matéria-prima e mão-de-obra são negociados como prata e seda eram no passado.
Muitas das coisas que antes considerávamos certas se tornaram menos garantidas. Poder e riqueza estão sendo redistribuídos, assim como as oportunidades. Apesar de nós todos vermos o mundo, nós o vemos com pontos de vista altamente diferentes.
Os recém-chegados ao mercado global de trabalho olham à frente com otimismo e grande expectativa com o futuro. Pela primeira vez, muitos são capazes de levar para casa salários que são mais do que mera ninharia. Para eles, o mercado global de trabalho traz uma promessa inacreditável.
Mas a nova era é bem menos promissora para milhões de trabalhadores no Ocidente, dispersando o otimismo dos primeiros anos. Muitos deixarão o mercado de trabalho nos próximos anos. Mesmo em lugares onde os trabalhadores ocidentais presumivelmente são capazes de resistir, os salários estão caindo -não drasticamente, mas pouco a pouco a cada ano. De repente, os trabalhadores se vêem diante de uma sensação que nunca sentiram antes, pelo menos não a tal ponto: insegurança.
Tanto para detratores quanto defensores, o desenvolvimento de um mercado global de trabalho é um processo de dimensões históricas, um processo que se torna bem mais palpável quando se considera as massas incomumente grandes de pessoas que estão engrossando este mercado. Nos anos 70, 90 milhões de trabalhadores de Hong Kong, Malásia, Cingapura, Japão e Taiwan se tornaram parte de um sistema econômico antes dominado quase que totalmente por europeus ocidentais, canadenses e americanos. Os Tigres Asiáticos foram recebidos com considerável espanto e os japoneses com o profundo respeito que mereciam. Mas estes recém-chegados ao mercado global de trabalho eram apenas a vanguarda da era moderna.
Os trabalhadores ocidentais se tornaram uma minoria
Os chineses ingressaram no clube pouco tempo depois, seguidos, após o colapso da União Soviética, dos europeus orientais e dos indianos. Em um espaço que representa pouco mais que um piscar do olho histórico, cerca de 1,2 bilhão de trabalhadores adicionais ingressaram no mercado de trabalho. Este afluxo maciço levou a uma mudança acentuada na balança de poder: os 350 milhões de trabalhadores bem treinados, mas caros, do Ocidente, que até recentemente eram responsáveis por uma grande parcela da produção global, se tornaram uma minoria virtualmente da noite para o dia.
E como se esta expansão de oferta sozinha não fosse impressionante o bastante, as altas taxas de natalidade das potencias econômicas emergentes do mundo são responsáveis por um número crescente de novos trabalhadores ávidos para ingressar no mercado global de trabalho. Eles querem empregos e farão o que for necessário para obtê-los. Apesar de nenhum novo Estado ter entrado no mercado global de trabalho na última década, cerca de 400 milhões de pessoas adicionais ingressaram. Outros 200 milhões, segundo a Organização Internacional do Trabalho da ONU, em Genebra, também desejam trabalhar mas não encontram trabalho, independente de quão mal remunerado. Longe de não serem empregáveis, este vasto exército de desempregados é basicamente composto de trabalhadores à espera.
Os preços das ações do mundo piscam nas telas de computador dos bancos. Os preços das ações de empresas americanas e européias são assimilados em questão de minutos, às vezes em segundos. Se telas de computador fossem instaladas em uma agência de empregos mostrando salários em vários países, muitos ficariam surpresos com o que veriam. O mesmo nivelamento de preços poderia ser visto no mercado global de trabalho, apenas em câmera lenta.
A adição de bilhões de trabalhadores dispostos provocou um processo que em breve mudará a estrutura fundamental das sociedades ocidentais: os salários e, ao mesmo tempo, os padrões de vida de trabalhadores comuns estão se aproximando do mesmo nível. Em um certo desenlace irônico, o capital agora assegura que a antiga exigência esquerdista de salários iguais para trabalho igual esteja sendo posta em prática. Só que, desta vez, estes salários iguais estão sendo aplicados por todo o globo e em detrimento dos trabalhadores ocidentais.
Trabalho por US$ 3 por dia - ou menos
A expressão escalonamento de salários está ganhando todo um novo significado. No passado, empregadores e empregados no Ocidente negociavam os salários independentemente do Estado. Mas em tempos de inflação de mão-de-obra, os empregadores são capazes de estabelecer os salários independentemente dos sindicatos trabalhistas porque, afinal, há milhões de trabalhadores dispostos a trabalhar por menos do que outros trabalhadores.
Os salários estão crescendo no Leste Europeu e no Sudeste Asiático e caindo no Ocidente, enquanto os na China e Índia permanecem nos níveis mais baixos mundiais. Das cerca de 3 bilhões de pessoas atualmente ativas no mercado global de trabalho, cerca da metade ganha menos de US$ 3 por dia, o que significa duas coisas: primeiro, estas pessoas são pobres e, segundo, salários de miséria estão baixando os salários de outro trabalhadores melhor remunerados. Os destinos daqueles na extremidade inferior da pirâmide salarial estão ligados aos daqueles no meio.
Um dos maiores erros cometidos atualmente é acreditar que milhões de trabalhadores migrantes na China e trabalhadores sindicalizados em Wolfsburg e Detroit não têm nada a ver uns com os outros. Pode parecer ser assim, mas não é. O trabalhador migrante chinês típico provavelmente não tem idéia de onde fica Wolfsburg - a sede da Volkswagen - enquanto os trabalhadores do setor automobilístico alemão e americano podem ter apenas uma noção vaga do que significa ser um trabalhador migrante. Todavia, suas biografias estão inseparavelmente ligadas.
O trabalhador migrante, que freqüentemente vive em uma choupana parecida com uma gaiola e trabalha, sem nenhuma salvaguarda legal, para uma empresa que fornece peças para uma montadora chinesa, concorre com um trabalhador em tempo integral mas não treinado naquela mesma fábrica chinesa. Seus salários não são significativamente diferentes porque o trabalhador migrante só que quer conquistar o emprego do trabalhador chinês em tempo integral. Os empregadores locais ficam constantemente tentados a substituir seus trabalhadores em tempo integral pelos migrantes. Conscientemente ou não, os dois grupos de trabalhadores estão em uma concorrência amarga pelos mesmos salários.
É claro, o trabalhador não treinado mas em tempo integral faz o melhor que pode para escapar desta disputa salarial. Sua meta, no mínimo, é se tornar um trabalhador treinado em uma montadora chinesa e está disposto a fazer de tudo - trabalhar horas extras, freqüentar cursos de treinamento, não exigir salários maiores - para atingir tal meta. Afinal, o sucesso algum dia lhe permitirá ingressar na classe privilegiada de chineses jovens bem treinados.
O trabalhador de horário integral e não treinado vê o trabalhador migrante da forma como ele é visto pelo trabalhador treinado estabelecido - como um rival feroz. Para ter uma vantagem, ele está disposto a aceitar mesmo o salário mais baixo, especialmente em um país que carece do tipo de sindicatos trabalhistas organizados que poderiam dissuadi-lo de fazer isto.
Assim que o trabalhador chinês não treinado atinge sua meta e conta com alguns anos de experiência, ele se torna um rival dos operários das montadoras em Detroit e Wolfsburg. Apesar dos dois grupos -trabalhadores treinados chineses e ocidentais sindicalizados - permanecerem estranhos, os dois grupos de concorrentes agora estão armazenados nos computadores dos altos executivos de suas respectivas empresas. Os rivais competem, mas apenas como estatísticas. Quando chega o momento de tomar decisões de investimento, eles sempre acabam em concorrência direta.
Abandonando a promessa de um padrão de vida melhor
Há uma grande abundância de trabalhadores no novo mercado de trabalho global. Dezoito milhões de europeus atualmente estão desempregados. Adicione a isto as mulheres que optaram pela vida familiar e os trabalhadores mais velhos que estão sendo aposentados contra sua vontade e o número real do desemprego na Europa chega a cerca de 30 milhões. Este exército europeu de desempregados é igual às populações de Berlim, Paris, Londres, Madri, Bruxelas, Roma, Lisboa e Atenas somadas. O sociólogo alemão Ulrich Beck se refere a estas pessoas como os "estruturalmente supérfluos".
A verdadeira extensão da redução salarial na Europa apenas se torna evidente quando se considera os desempregados e empregados somados. Aqueles que optam em ver apenas os empregados não enxergam a amplitude do problema. Na verdade, o total de salários está caindo em uma taxa muito mais rápida do que as estatísticas de renda sugerem. Um declínio salarial que ninguém esperava no Ocidente está ocorrendo no mercado global de trabalho. Afinal, a promessa dos anos do pós-guerra era de que os salários em ascensão promoveriam crescente riqueza. Mas foi uma promessa que foi abandonada praticamente do dia para a noite. De fato, se houvesse algo como uma agência global de trabalho, as telas de seus computadores mostrariam os salários no Ocidente em constante declínio.
Ninguém deve esperar um rápido crescimento da renda no Extremo Oriente ou no Leste Europeu, onde espera-se que os milhões de camponeses e moradores de favelas aguardando emprego na indústria criem uma pressão adicional para redução de salários. Os salários no Extremo Oriente ainda estão subindo em uma taxa substancialmente mais baixa do que o Ocidente gostaria de ver. Segundo o IFO Institute, um grupo de pesquisa econômica com sede em Munique, mesmo um congelamento imediato dos salários na Europa Ocidental não seria particularmente eficaz.
Mesmo se os salários crescerem constantemente no Extremo Oriente e na Índia, em 30 anos as rendas nestes países ainda equivaleria a apenas metade das do Ocidente. A verdade hoje é bem simples: os trabalhadores na Europa e na América do Norte que são incapazes de oferecer uma justificativa melhor para seus salários do que acordos coletivos, o alto custo de vida e a tradição ocidental de equilibrar capital e trabalho, se verão forçados a fazer greve no futuro.
Diferente de alguns pontos de vista, isto de forma alguma levará a uma perda global de vagas de trabalho na indústria. Enquanto o número de bens produzidos, vendidos e consumidos crescer, não haverá perda de empregos. De fato, no início do século 21, a economia mundial está experimentando uma de suas maiores ondas de crescimento das últimas décadas.
Apesar da Internet e do maior uso da automação, o número de vagas de trabalho na indústria continua crescendo, com a distribuição do trabalho mudando consideravelmente à medida que o mercado global de trabalho se desenvolve. Onde o trabalho é necessário agora é apenas de interesse daqueles que não foram bem-sucedidos em seus esforços para ingressar no mercado de trabalho. Mas apesar do mercado de trabalho ter perdido suas fronteiras, os trabalhadores ocidentais não têm escolha a não ser permanecer onde estão.
Tradução: George El Khouri Andolfato