No Brasil de Lula, o absurdo é normal
Enviado: 26 Out 2006, 12:40
Os eleitores do Lula não se preocupam com fatos. Vão votar no Lula "porque ele é do povo" ou qualquer bobagem assim.
Mas é sempre bom chamar a atenção para os fatos.
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O Globo 26.10.2006
MIRIAM LEITÃO
O tempo do avesso
O Brasil se acostumou com maluquices e já não estranha mais nada.
Num evento no Planalto, no dia 13, o presidente Lula, atendendo a uma
reivindicação dos Sem-Terra e da Contag, disse: “Valeu a pena enfrentar a
polícia.”
Ele é presidente de todos os brasileiros, comanda o governo, as Forças
Armadas, o aparato policial; se acha que o pleito é justo, deve comandar o
atendimento à reivindicação, e não mandar os cidadãos ao confronto com a
polícia.
Dias depois, numa entrevista na TV Record, sugeriu aos trabalhadores de serviços
essenciais que façam uma greve diferente: “Um trabalhador que trabalha no metrô
não precisa parar; ele pode abrir as catracas para o povo andar de graça.”
Tudo o que um presidente pode sugerir, em qualquer situação em que há desacordo entre os cidadãos do país que preside, é que as partes negociem até se chegar a uma solução, dentro da lei, para as desavenças.
O Brasil já nem nota que os fatos estranhos são estranhos.
Acostumou-se. Na segunda-feira, quando a Bolívia avisou que não aumentaria o
prazo de negociação com a Petrobras, insinuando que a empresa brasileira fraudou
preços para ter lucros extraordinários, a primeira reação foi de Marco Aurélio
Garcia.
A impropriedade aí é que Garcia é hoje chefe do comitê de campanha do presidente
à reeleição; não deveria estar no governo, nem falando em nome do governo. Mas o
fez porque — outra esquisitice — o ministro das Relações Exteriores, Celso
Amorim, anda pulando de palanque em palanque, ocupadíssimo com as questões
internas. Só ontem os jornais traziam a reação de Amorim, que deve ter se
lembrado do cargo que ocupa no governo. Antes disso, outra bizarrice que foi
banalizada: por quatro anos o Brasil teve dois chanceleres.
Há também uma lista de fatos na categoria “parece estranho, mas não é”. Nessa
lista, está o apoio de Blairo Maggi à candidatura do presidente.
O agronegócio sofreu muito nos últimos anos, tanto que jogou o preço da crise no
governo, votando na oposição.
O Centro-Oeste, onde Maggi tem seu reduto, deu maioria de votos a Geraldo
Alckmin. Maggi é um grande proprietário de terras, grande produtor de soja, e é
a favor do governo. Esquisito? Nem tanto. O último pacote agrícola incluiu a
renegociação da dívida dos pequenos e médios produtores com as grandes empresas.
Atualmente grandes tradings e produtoras de grãos financiam produtores menores.
Quando a crise piorou, eles pararam de pagar aos seus credores. O governo
refinanciou essa dívida, o que beneficiou grandes empresas como a Cargill, a
Bunge e... a Maggi.
No Brasil, existe até esquisitice com aviso prévio.
Dias atrás, um dos líderes dos Sem-Terra, que anda às voltas com a Justiça, José
Rainha, avisou que a trégua dada pelos Sem-Terra acaba no dia 29. Mais
precisamente: “Vamos sair da trincheira no dia 29 às 17 horas.” O país ficou
sabendo que o movimento está fingindo bom comportamento para não assustar os
eleitores e não prejudicar o presidente da República.
Eles, que fizeram quase mil ocupações durante o mandato, deram uma “trégua”, não
se sabe a quem, mas com hora para acabar. É um avanço: agora, o país está sendo
enganado com aviso prévio.
Foram tantas as versões do presidente para os mesmos fatos que o brasileiro se
perdeu. Se houver uma prova de múltipla escolha sobre o que disse Lula sobre
aquele escândalo, a melhor resposta será “todas as alternativas anteriores”.
Entendi isso na conversa com o presidente. A mim, Lula disse que não havia
perguntado a Ricardo Berzoini sobre o dossiê, porque não era “delegado de
polícia”.
Disse mais: “Não perguntei, nem perguntarei.” Dias depois, à mesma pergunta na
TV Cultura, respondeu que chamou Berzoini, numa quarta-feira, pediu explicação e,
como não houve explicação satisfatória, ele o afastou do comitê de campanha. Em
cada um dos escândalos, Lula deu respostas múltiplas.
Na entrevista do GLOBO com ele, relacionei cinco explicações diferentes para o mensalão (não sabia, foi traído, isso é feito sistematicamente no país, conspiração das elites, culpa da imprensa) e perguntei em qual Lula eu deveria acreditar. Ele disse: “Todos.”
Está vendo? Se tiver dúvida, sempre marque em “todas as alternativas
anteriores”.
Não tem erro.
O país faz um grande esforço para acompanhar todos os depoimentos dos envolvidos
nos escândalos: declarações são publicadas, conferidas, acareações são feitas,
contradições ressaltadas, depoimentos tomados.
Tudo desperdício, porque o governador eleito da Bahia, Jaques Wagner, avisou que
“os réus petistas têm o direito de mentir”. Isso economiza tempo: não precisa
nem saber o que explicaram, basta não acreditar.
Nada normal também é a forma explícita com que o governo inteiro engajou-se na
campanha eleitoral. Começou pelos ministros políticos, contaminou a área
econômica, espalhou-se pelos outros escalões. Não está se falando nem de
aberrações, como a do diretor de gestão de risco do Banco do Brasil, Expedito
Veloso, mas, sim, de coisas mais simples, como a militância escancarada em pleno
horário de trabalho nas dependências públicas.
Fatos como os relatados aqui podem ser considerados como coisas exóticas,
palavras estapafúrdias, ou podem ser vistos como são: desvios de comportamento
que ameaçam a consolidação da cultura democrática do país.
Mas é sempre bom chamar a atenção para os fatos.
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O Globo 26.10.2006
MIRIAM LEITÃO
O tempo do avesso
O Brasil se acostumou com maluquices e já não estranha mais nada.
Num evento no Planalto, no dia 13, o presidente Lula, atendendo a uma
reivindicação dos Sem-Terra e da Contag, disse: “Valeu a pena enfrentar a
polícia.”
Ele é presidente de todos os brasileiros, comanda o governo, as Forças
Armadas, o aparato policial; se acha que o pleito é justo, deve comandar o
atendimento à reivindicação, e não mandar os cidadãos ao confronto com a
polícia.
Dias depois, numa entrevista na TV Record, sugeriu aos trabalhadores de serviços
essenciais que façam uma greve diferente: “Um trabalhador que trabalha no metrô
não precisa parar; ele pode abrir as catracas para o povo andar de graça.”
Tudo o que um presidente pode sugerir, em qualquer situação em que há desacordo entre os cidadãos do país que preside, é que as partes negociem até se chegar a uma solução, dentro da lei, para as desavenças.
O Brasil já nem nota que os fatos estranhos são estranhos.
Acostumou-se. Na segunda-feira, quando a Bolívia avisou que não aumentaria o
prazo de negociação com a Petrobras, insinuando que a empresa brasileira fraudou
preços para ter lucros extraordinários, a primeira reação foi de Marco Aurélio
Garcia.
A impropriedade aí é que Garcia é hoje chefe do comitê de campanha do presidente
à reeleição; não deveria estar no governo, nem falando em nome do governo. Mas o
fez porque — outra esquisitice — o ministro das Relações Exteriores, Celso
Amorim, anda pulando de palanque em palanque, ocupadíssimo com as questões
internas. Só ontem os jornais traziam a reação de Amorim, que deve ter se
lembrado do cargo que ocupa no governo. Antes disso, outra bizarrice que foi
banalizada: por quatro anos o Brasil teve dois chanceleres.
Há também uma lista de fatos na categoria “parece estranho, mas não é”. Nessa
lista, está o apoio de Blairo Maggi à candidatura do presidente.
O agronegócio sofreu muito nos últimos anos, tanto que jogou o preço da crise no
governo, votando na oposição.
O Centro-Oeste, onde Maggi tem seu reduto, deu maioria de votos a Geraldo
Alckmin. Maggi é um grande proprietário de terras, grande produtor de soja, e é
a favor do governo. Esquisito? Nem tanto. O último pacote agrícola incluiu a
renegociação da dívida dos pequenos e médios produtores com as grandes empresas.
Atualmente grandes tradings e produtoras de grãos financiam produtores menores.
Quando a crise piorou, eles pararam de pagar aos seus credores. O governo
refinanciou essa dívida, o que beneficiou grandes empresas como a Cargill, a
Bunge e... a Maggi.
No Brasil, existe até esquisitice com aviso prévio.
Dias atrás, um dos líderes dos Sem-Terra, que anda às voltas com a Justiça, José
Rainha, avisou que a trégua dada pelos Sem-Terra acaba no dia 29. Mais
precisamente: “Vamos sair da trincheira no dia 29 às 17 horas.” O país ficou
sabendo que o movimento está fingindo bom comportamento para não assustar os
eleitores e não prejudicar o presidente da República.
Eles, que fizeram quase mil ocupações durante o mandato, deram uma “trégua”, não
se sabe a quem, mas com hora para acabar. É um avanço: agora, o país está sendo
enganado com aviso prévio.
Foram tantas as versões do presidente para os mesmos fatos que o brasileiro se
perdeu. Se houver uma prova de múltipla escolha sobre o que disse Lula sobre
aquele escândalo, a melhor resposta será “todas as alternativas anteriores”.
Entendi isso na conversa com o presidente. A mim, Lula disse que não havia
perguntado a Ricardo Berzoini sobre o dossiê, porque não era “delegado de
polícia”.
Disse mais: “Não perguntei, nem perguntarei.” Dias depois, à mesma pergunta na
TV Cultura, respondeu que chamou Berzoini, numa quarta-feira, pediu explicação e,
como não houve explicação satisfatória, ele o afastou do comitê de campanha. Em
cada um dos escândalos, Lula deu respostas múltiplas.
Na entrevista do GLOBO com ele, relacionei cinco explicações diferentes para o mensalão (não sabia, foi traído, isso é feito sistematicamente no país, conspiração das elites, culpa da imprensa) e perguntei em qual Lula eu deveria acreditar. Ele disse: “Todos.”
Está vendo? Se tiver dúvida, sempre marque em “todas as alternativas
anteriores”.
Não tem erro.
O país faz um grande esforço para acompanhar todos os depoimentos dos envolvidos
nos escândalos: declarações são publicadas, conferidas, acareações são feitas,
contradições ressaltadas, depoimentos tomados.
Tudo desperdício, porque o governador eleito da Bahia, Jaques Wagner, avisou que
“os réus petistas têm o direito de mentir”. Isso economiza tempo: não precisa
nem saber o que explicaram, basta não acreditar.
Nada normal também é a forma explícita com que o governo inteiro engajou-se na
campanha eleitoral. Começou pelos ministros políticos, contaminou a área
econômica, espalhou-se pelos outros escalões. Não está se falando nem de
aberrações, como a do diretor de gestão de risco do Banco do Brasil, Expedito
Veloso, mas, sim, de coisas mais simples, como a militância escancarada em pleno
horário de trabalho nas dependências públicas.
Fatos como os relatados aqui podem ser considerados como coisas exóticas,
palavras estapafúrdias, ou podem ser vistos como são: desvios de comportamento
que ameaçam a consolidação da cultura democrática do país.