Lula de sunga de praia atenta conta os bons costumes
Enviado: 04 Nov 2006, 01:13
Fonte
Sunga, decoro, Mann e Musil
O general João Batista Figueiredo foi o primeiro presidente a se deixar fotografar de sunga. A ditadura já tinha virado uma pantomima. Certo, dirão, melhor ficar pelado do que comandar um governo de torturadores, a exemplo de ditadores anteriores, tão mais sóbrios, tão mais vetustos. Vistas as coisas por esse ângulo, o melhor rei seria o que governasse nu.
Lula sabe que está sendo fotografado, mas se expõe de uma forma que eu, um senhor conservador e bem mais jovem do que ele, considero um tanto indecorosa. Falo de “decoro” em sentido, vá lá, literário: seguir as regras da harmonia, da proporção, do recato. Não, não acho que só corpos olímpicos devam se exibir. De fato, com tamanho desassombro, nem eles. As belezas guardadas me atraem mais. Ainda hoje, encantam-me as pessoas que ficam coradas. As praias, nesse sentido, são lugares um tanto indecorosos.
Mesmo a educação da moderna classe média me parece, por notícias que tenho, espantosamente “liberal”. No ponto extremo do simbolismo, lembro-me da punição bíblica a quem vê a nudez do pai. Meu mundo ainda tem um eixo formado de interdições que acho absolutamente necessárias: na relação ente amigos, na relação entre marido e mulher, na relação com os filhos (no meu caso, filhas), nas relações de trabalho. Por que você deve ver quem você ama escovando os dentes? Pra quê? Há intimidades que degradam. Evitemo-las.
A exemplo de São Paulo, o meu predileto da Bíblia, na Primeira Epístola aos Coríntios, “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (I Cor 6,12). Volto, dia desses, a falar de literatura e das coisas que realmente me comovem. O poeta latino Horácio está entre os meus prediletos: porque tinha, ao escrever, uma moderação, um recato, uma economia, que são admiráveis. Coisas que, infelizmente, não tenho. Sei que sou barroco às vezes; outras vezes, borrascoso mesmo. Espero que o tempo me confira serenidade, amanse a minha fúria. Nem que seja já ali, bem perto do fim. A esperança, a minha, há de morrer comigo.
Numa entrevista que fiz com Contardo Calligaris — e não estou dizendo, com isso, que ele endossaria este texto —, ele me contou uma passagem admirável. Ele, Contardo, um jovem comunista, indagou severamente seu pai: “Como o senhor pode ser um militante antifascista e não ser comunista?” O pai lhe respondeu: “Sabe o que é? Eu era contra os fascistas porque eu os achava tão vulgares!” Assim que for tecnicamente possível, publicarei aqui essa entrevista.
A resposta é encantadora. Trata-se de uma aposta na civilização. A sunga de Lula, ainda que ele fosse o nosso Péricles, é vulgar. Nenhuma outra palavra a define. Neste estrito sentido, sem que ela seja causa de nada, torna-se um emblema de uma falta mais geral de decoro, de harmonia, de proporção. Na novela Tonio Kröger, o grande Thomas Mann escreve: “A beleza engendra o pudor” — cito de memória, mas deve ser isso. Em nome de uma suposta reparação social, tornada magnífica pelos “intelectuais do regime”, o país está ficando a cada dia mais vulgar, feio, despudorado.
Ladrões descarados evocam em sua defesa uma espécie de amor à causa; querem que sejamos cúmplices morais de sua concupiscência.
Um contemporâneo de Mann, Robert Musil, o meu predileto, vocês sabem, define uma nova era: “Algo imponderável. Um presságio. Uma ilusão. Como quando um ímã larga a limalha, e esta se mistura toda outra vez. Como quando fios de novelos se desmancham. Quando um cortejo se dispersa. Quando uma orquestra começa a desafinar. (...) Idéias que antes possuíam um magro valor engordavam. Pessoas antigamente ignoradas tornavam-se famosas. O grosseiro se suaviza. (...) havia apenas um pouco de ruindade demais misturada ao que era bom, engano demais na verdade, flexibilidade demais nos significados (...)” Está em O Homem Sem Qualidades.
Sunga, decoro, Mann e Musil
O general João Batista Figueiredo foi o primeiro presidente a se deixar fotografar de sunga. A ditadura já tinha virado uma pantomima. Certo, dirão, melhor ficar pelado do que comandar um governo de torturadores, a exemplo de ditadores anteriores, tão mais sóbrios, tão mais vetustos. Vistas as coisas por esse ângulo, o melhor rei seria o que governasse nu.
Lula sabe que está sendo fotografado, mas se expõe de uma forma que eu, um senhor conservador e bem mais jovem do que ele, considero um tanto indecorosa. Falo de “decoro” em sentido, vá lá, literário: seguir as regras da harmonia, da proporção, do recato. Não, não acho que só corpos olímpicos devam se exibir. De fato, com tamanho desassombro, nem eles. As belezas guardadas me atraem mais. Ainda hoje, encantam-me as pessoas que ficam coradas. As praias, nesse sentido, são lugares um tanto indecorosos.
Mesmo a educação da moderna classe média me parece, por notícias que tenho, espantosamente “liberal”. No ponto extremo do simbolismo, lembro-me da punição bíblica a quem vê a nudez do pai. Meu mundo ainda tem um eixo formado de interdições que acho absolutamente necessárias: na relação ente amigos, na relação entre marido e mulher, na relação com os filhos (no meu caso, filhas), nas relações de trabalho. Por que você deve ver quem você ama escovando os dentes? Pra quê? Há intimidades que degradam. Evitemo-las.
A exemplo de São Paulo, o meu predileto da Bíblia, na Primeira Epístola aos Coríntios, “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (I Cor 6,12). Volto, dia desses, a falar de literatura e das coisas que realmente me comovem. O poeta latino Horácio está entre os meus prediletos: porque tinha, ao escrever, uma moderação, um recato, uma economia, que são admiráveis. Coisas que, infelizmente, não tenho. Sei que sou barroco às vezes; outras vezes, borrascoso mesmo. Espero que o tempo me confira serenidade, amanse a minha fúria. Nem que seja já ali, bem perto do fim. A esperança, a minha, há de morrer comigo.
Numa entrevista que fiz com Contardo Calligaris — e não estou dizendo, com isso, que ele endossaria este texto —, ele me contou uma passagem admirável. Ele, Contardo, um jovem comunista, indagou severamente seu pai: “Como o senhor pode ser um militante antifascista e não ser comunista?” O pai lhe respondeu: “Sabe o que é? Eu era contra os fascistas porque eu os achava tão vulgares!” Assim que for tecnicamente possível, publicarei aqui essa entrevista.
A resposta é encantadora. Trata-se de uma aposta na civilização. A sunga de Lula, ainda que ele fosse o nosso Péricles, é vulgar. Nenhuma outra palavra a define. Neste estrito sentido, sem que ela seja causa de nada, torna-se um emblema de uma falta mais geral de decoro, de harmonia, de proporção. Na novela Tonio Kröger, o grande Thomas Mann escreve: “A beleza engendra o pudor” — cito de memória, mas deve ser isso. Em nome de uma suposta reparação social, tornada magnífica pelos “intelectuais do regime”, o país está ficando a cada dia mais vulgar, feio, despudorado.
Ladrões descarados evocam em sua defesa uma espécie de amor à causa; querem que sejamos cúmplices morais de sua concupiscência.
Um contemporâneo de Mann, Robert Musil, o meu predileto, vocês sabem, define uma nova era: “Algo imponderável. Um presságio. Uma ilusão. Como quando um ímã larga a limalha, e esta se mistura toda outra vez. Como quando fios de novelos se desmancham. Quando um cortejo se dispersa. Quando uma orquestra começa a desafinar. (...) Idéias que antes possuíam um magro valor engordavam. Pessoas antigamente ignoradas tornavam-se famosas. O grosseiro se suaviza. (...) havia apenas um pouco de ruindade demais misturada ao que era bom, engano demais na verdade, flexibilidade demais nos significados (...)” Está em O Homem Sem Qualidades.