Líbano: As Brechas Abertas no Muro de Desinformação
Enviado: 08 Nov 2006, 20:47
"Você sabe tão bem quanto eu que, no fim das contas, a opinião pública sempre tendia a favorecer o lado vencedor", declarou Ehud Barak, ex-primeiro-ministro de Israel, durante uma entrevista concedida ao programa "Hard-Talk", da rede BBC, no início do ataque ao Líbano. A declaração foi profética, mas não exatamente como Barak imaginava. Durante os 3 ou 4 primeiros dias, a mídia - estadunidense, européia e brasileira - era praticamente unânimeao condenar o "seqüestro" dos soldados israelenses pelo Hezbollah, invariavelmente caracterizado como "grupo terrorista". Mas a inversão de espectativas, isto é, a grande derrota sofrida por Israel, em todos os campos, produziu uma mudança na cobertura. Exceto por um ou outro veículo mais explicitamente parcial, como é o caso da Veja e da Folha de São Paulo, no Brasil, ou o da rede Fox, nos Estados Unidos, o "terrorista" Hezbollah adquiriu status de "extremista", "combatente", ou "resistente". Até mesmo por parte da CNN abriram brechas no muro da desinformação.
A "desproporção" da resposta de Israel à captura dos soldados e o tamanho de algumas atrocidades cometidas pelo exército israelense - como a matança de crianças na vila libanesa de Qana, por exemplo - permitiram, ao menos, romper a idéia de que se tratava a guerra do bem(o Estado de Israel como representante da democracia, dos valores ocidentais, da ética, etc.) contra o mal(terroristas islâmicos fanáticos, seres brutos e refratários à civilização). A operação israelense foi tão desastrosa que produziu protestos na rua, contra o governo e o comando militar, em Tel Aviv e outras cidades israelenses, fato inédito em tempos de guerra. A mídia não podia ocultar eventos de tal magnitude, mesmo se fosse o seu desejo.
A popularidade do Hezbollah
Além disso, tornou-se difícil responder à pergunta mais óbvia do mundo: se o Hezbollah é mesmo um obscuro grupo terrorista, sem qualquer inserção social, armado por estrangeiros e integrado por covardes que usam civis como escudos humanos, então como explicar a atitud da população libanesa e do mundo árabe em geral, que, em vez de se revoltar contra o Hezbollah, aumentou o seu ódio aos atacantes israelenses? Há duas respostas possíveis e mutualmente excludente: 1. o Hezbollah não é um grupo terrorista, e não é visto assim pela população libanesa(embora eventualmente cometa ações que poderiam ser consideradas terroristas), e por isso a população o apóia; 2. o Hezbollahé mesmo terrorista e só conta com a simpatia da população porque os libaneses apóiam as ações do grupo que poderiam ser consideradas terroristas.
A primeira resposta parece a mais plausível, principalmente quando se recorda o Hezbollah, sozinho, foi capaz de convocar manifestações que reuniram 500.000 pessoas em Beirute, no início de 2005, logo após o assassinato do ex-premiê Rafic Hariri. E mais: o Hezbollah realiza um importante trabalho social no sul do Líbano, além de se fazer representar por uma bancada no parlamento. É obvio, finalmente, que nenhum grupo isolado e sem vínculos fortes com a população de seu país poderia resistir à ofensiva do quarto mais poderoso exército do mundo. A segunda resposta é totalmente inaceitável: ela qualifica como "terrorista" toda uma população, ou pelo menos uma parcela importante dela. Estamos, aí, perigosamente perto da justificativa de uma punição coletiva.
Imagens chocantes
As televisões européias, em particular, mostraram cenas dramáticas das cidades e povoados destruídos, no Líbano e, em escala bem menor, em Israel. Algumas redes chegaram a reproduzir reportagens pautadas pela rede Al Jazira. Os telespectadores tiveram contato com imagens absolutamente chocantes de mulheres libanesas desesperadas, carregando em seu colo crianças mortas. Também viram, é claro, o pânico da população israelense, a vida organizada em abrigos e bunkers no norte do país, o êxodo de centenas de milhares para Tel Aviv e as cidades ao sul. Inevitavelmente, fizeram para si próprios a seguinte pergunta: se o Hezbollah é mesmo terrorista, esta é a melhor forma de combatê-lo? É com terrorismo de Estado que se destrói o terrorismo de grupos?
Esse quadro geral acabou produzindo efeitos fortes na cobertura. Como previu Barak, as simpatias se voltaram para o lado vencedor - no caso, o Hezbollah -, e isso suscitou indagações e indignação na opinião pública mundial, fazendo com que o debate fosse, finalmente, levado às telas e às páginas de jornais. Um exemplo disso foi a entrevista feita pela Sky News, com o deputado britânico George Galloway, da qual publicamos um pequeno trecho inicial(a íntegra pode ser vista no site Youtube http://www.youtube.com/watch?v=brkmfrxrQ):
"- Jornalista: O homem que temos hoje conosco não tem por hábito guardar as suas opiniões para si próprio. Opôs-se com determinação à invasão do Iraque e atualmente defende o ataque do Hezbollah contra Israel(...). Como é que justrifica seu apoio ao Hezbollah e ao seu líder, Hassan Nasrallah?
- Galloway: Que disparate! Que absudo! Que maneira tão estúpida de expor o assunto e que pergunta tão falsa e idiota! Há 24 anos, no nascimento da minha filha eu corria para o hospital, por entre uma enorme manifestação, em Londres, contra a invasão e a ocupação israelense no Líbano. Israel invadiu e ocupou o Líbano durante toda a vida da minha filha de 24 anos. O Hezbollah faz parte da resistência nacional do Líbano e tenta - tendo afastado com sucesso os israelenses em 2000- expulsar Israel do resto das suas terras e resgatar milhares de prisioneiros libaneses que foram seqüestrados por Israel nos tempos da sua ocupação ilegal no Líbano. É Israel que ocupa o Líbano, é Israel que ataca o Líbano, não é o Líbano que ataca Israel. Vocês acabam de passar uma reportagem em que 10 soldados se apressam em invadir o Líbano e pedem-nos para chorar o resultado da operação, como se tratasse de um crime guerra(NdT: os soldados israelenses foram mortos). Israel está invadindo o Líbano e matou 30 vezes mais civis libaneses..."
É óbvio que os editores da Sky - emissora tradicionalmente simpática ao lado israelense - conheciam de antemão as posições de Galloway. Ainda assim, eles sentiram compelidos a entrevistá-lo, para, de alguma forma, contemplar o sentimento expresso por grandes manifestações nas ruas de Londres e outras capitais européias. Para traçar um paralelo, foi o que aconteceu no Brasil em 1984, com a campanha pelas Diretas Já: a mídia fez grande questão de ocultá-la até que a força das manifestações populares transbordou todos os limites; continuar ignorando a campanha implicaria cair no mais profundo descrédito.
Uma das conseqüencias do ataque ao Líbano, em resumo, foi a erosão, em poucos dias, de um trabalho de muitos anos de construção de uma imagem democrática, civilizadora e justa de Israel, em oposição à barbárie árabe. De todas as derrotas sofridas por Israel, essa talvez tenha sido a mais profunda e de efeito mais duradouro.
A "desproporção" da resposta de Israel à captura dos soldados e o tamanho de algumas atrocidades cometidas pelo exército israelense - como a matança de crianças na vila libanesa de Qana, por exemplo - permitiram, ao menos, romper a idéia de que se tratava a guerra do bem(o Estado de Israel como representante da democracia, dos valores ocidentais, da ética, etc.) contra o mal(terroristas islâmicos fanáticos, seres brutos e refratários à civilização). A operação israelense foi tão desastrosa que produziu protestos na rua, contra o governo e o comando militar, em Tel Aviv e outras cidades israelenses, fato inédito em tempos de guerra. A mídia não podia ocultar eventos de tal magnitude, mesmo se fosse o seu desejo.
A popularidade do Hezbollah
Além disso, tornou-se difícil responder à pergunta mais óbvia do mundo: se o Hezbollah é mesmo um obscuro grupo terrorista, sem qualquer inserção social, armado por estrangeiros e integrado por covardes que usam civis como escudos humanos, então como explicar a atitud da população libanesa e do mundo árabe em geral, que, em vez de se revoltar contra o Hezbollah, aumentou o seu ódio aos atacantes israelenses? Há duas respostas possíveis e mutualmente excludente: 1. o Hezbollah não é um grupo terrorista, e não é visto assim pela população libanesa(embora eventualmente cometa ações que poderiam ser consideradas terroristas), e por isso a população o apóia; 2. o Hezbollahé mesmo terrorista e só conta com a simpatia da população porque os libaneses apóiam as ações do grupo que poderiam ser consideradas terroristas.
A primeira resposta parece a mais plausível, principalmente quando se recorda o Hezbollah, sozinho, foi capaz de convocar manifestações que reuniram 500.000 pessoas em Beirute, no início de 2005, logo após o assassinato do ex-premiê Rafic Hariri. E mais: o Hezbollah realiza um importante trabalho social no sul do Líbano, além de se fazer representar por uma bancada no parlamento. É obvio, finalmente, que nenhum grupo isolado e sem vínculos fortes com a população de seu país poderia resistir à ofensiva do quarto mais poderoso exército do mundo. A segunda resposta é totalmente inaceitável: ela qualifica como "terrorista" toda uma população, ou pelo menos uma parcela importante dela. Estamos, aí, perigosamente perto da justificativa de uma punição coletiva.
Imagens chocantes
As televisões européias, em particular, mostraram cenas dramáticas das cidades e povoados destruídos, no Líbano e, em escala bem menor, em Israel. Algumas redes chegaram a reproduzir reportagens pautadas pela rede Al Jazira. Os telespectadores tiveram contato com imagens absolutamente chocantes de mulheres libanesas desesperadas, carregando em seu colo crianças mortas. Também viram, é claro, o pânico da população israelense, a vida organizada em abrigos e bunkers no norte do país, o êxodo de centenas de milhares para Tel Aviv e as cidades ao sul. Inevitavelmente, fizeram para si próprios a seguinte pergunta: se o Hezbollah é mesmo terrorista, esta é a melhor forma de combatê-lo? É com terrorismo de Estado que se destrói o terrorismo de grupos?
Esse quadro geral acabou produzindo efeitos fortes na cobertura. Como previu Barak, as simpatias se voltaram para o lado vencedor - no caso, o Hezbollah -, e isso suscitou indagações e indignação na opinião pública mundial, fazendo com que o debate fosse, finalmente, levado às telas e às páginas de jornais. Um exemplo disso foi a entrevista feita pela Sky News, com o deputado britânico George Galloway, da qual publicamos um pequeno trecho inicial(a íntegra pode ser vista no site Youtube http://www.youtube.com/watch?v=brkmfrxrQ):
"- Jornalista: O homem que temos hoje conosco não tem por hábito guardar as suas opiniões para si próprio. Opôs-se com determinação à invasão do Iraque e atualmente defende o ataque do Hezbollah contra Israel(...). Como é que justrifica seu apoio ao Hezbollah e ao seu líder, Hassan Nasrallah?
- Galloway: Que disparate! Que absudo! Que maneira tão estúpida de expor o assunto e que pergunta tão falsa e idiota! Há 24 anos, no nascimento da minha filha eu corria para o hospital, por entre uma enorme manifestação, em Londres, contra a invasão e a ocupação israelense no Líbano. Israel invadiu e ocupou o Líbano durante toda a vida da minha filha de 24 anos. O Hezbollah faz parte da resistência nacional do Líbano e tenta - tendo afastado com sucesso os israelenses em 2000- expulsar Israel do resto das suas terras e resgatar milhares de prisioneiros libaneses que foram seqüestrados por Israel nos tempos da sua ocupação ilegal no Líbano. É Israel que ocupa o Líbano, é Israel que ataca o Líbano, não é o Líbano que ataca Israel. Vocês acabam de passar uma reportagem em que 10 soldados se apressam em invadir o Líbano e pedem-nos para chorar o resultado da operação, como se tratasse de um crime guerra(NdT: os soldados israelenses foram mortos). Israel está invadindo o Líbano e matou 30 vezes mais civis libaneses..."
É óbvio que os editores da Sky - emissora tradicionalmente simpática ao lado israelense - conheciam de antemão as posições de Galloway. Ainda assim, eles sentiram compelidos a entrevistá-lo, para, de alguma forma, contemplar o sentimento expresso por grandes manifestações nas ruas de Londres e outras capitais européias. Para traçar um paralelo, foi o que aconteceu no Brasil em 1984, com a campanha pelas Diretas Já: a mídia fez grande questão de ocultá-la até que a força das manifestações populares transbordou todos os limites; continuar ignorando a campanha implicaria cair no mais profundo descrédito.
Uma das conseqüencias do ataque ao Líbano, em resumo, foi a erosão, em poucos dias, de um trabalho de muitos anos de construção de uma imagem democrática, civilizadora e justa de Israel, em oposição à barbárie árabe. De todas as derrotas sofridas por Israel, essa talvez tenha sido a mais profunda e de efeito mais duradouro.