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Quando a arte se revela entregue aos desígnios divinos...

Enviado: 06 Dez 2006, 14:51
por Apocaliptica
A arte como instrumento de expressão genuína do que nos vai por dentro, muitas vezes revela no êxtase uma condição quase mística.Depositando em deus ou forças extra-terrenas, a capacidade de resolver conflitos emocionais. Principalmente quando o "aflito" (adoro essa palavra :emoticon12: ) não consegue mais suportar por si as agruras de viver e de ser humano.
Assim também ocorrendo quando o êxtase é de paz, alegria e prazer.
É a postura mesma do que se dobrou à sublimação dos próprios instintos, entrega-se à deuses, destinos, karmas e demais formas de transcender.
Agora vejam que bela poesia...tão intensa, e de tal forma coberta pelo véu dessa incapacidade humana de ter o controle dos sonhos, da paixão e da perda...mesmo assim, à espera .



Neurônios

Hildeberto Abreu Magalhães


Não seria capaz de te escrever um poema confesso,
um poema capaz de autenticidade e odor?

Fico onde estou, mascarando o sofrimento, sozinho,
sem necessitar da simplicidade da saudação triste;
corro o olhar, à vista de um olho vermelho, todo
segredo binário transforma-se em conto...

Será que lhe roubei o sossego? Meu corpo vertido em fumaça,
movimentando-se como bailarina, roçando teu ventre:
apresentas-te sofreguidão e descaso, re-flexo opaco;
como vou olhar-te sem desejar-te o contato caro,

o sussurro perto da nuca, teu cheiro que me corta.
Penso antes que roubaste-me a paz e nada de bom
restou desta história morta.

Em pleno meio-dia, parado aqui, nesta rua, aguardando um
beijo indeciso, estás querendo derreter-me;
verás como se comporta um triste 'ice cub' orvalhado,
umedecendo o vale entre teus seios belos e pequenos,
descendo por tua barriga como uma língua ardente.
Custa-me pensar que do teu lado sou uma criança tola...

Quando penso em ti, minha cabeça dói; como fosses
sair de lá, por acreditar-me afim a Zeus: mas
que vão apelo à Natureza. Revelo-me miserável!

A vontade necessária para tanto não é consistente!
Antes, zelo por estares aconchegada e quente, então,
nos pequenos fios condutores de minha parca luz.

Ah! como quero poder descrever e dissertar, e assim
escrever-te um romance para as horas fúteis, mas
tenho pouca memória (pouca vitamina, talvez) e
sintetizo a vida analisando o dia por vez.

Teria que ser um conto, ainda que aprecies o canto.
Teria que ser uma curta história, que deixa saudade;

Miss me? Eu sinto tanta falta, me falta força para
seguir-me fartando a vida, na falta e na tortura;
fazer-te nova escultura, servir-me-ás como modelo.

Mas estou longe e tua imagem é vaga e sombria.
Quero lançar-me às pedras, ou antes, fazer delas
talismãs, teus voodoos secretos, uma fruta saborosa.

Quero me lambuzar de cores variadas e pintar-te
o corpo, quem sabe deixar de ser tão cínico.

O amor de Prometeu, o amor de Dioniso, o amor de Zeus,
que mais posso desejar-te como signo fatal?

"Demos as mão e ao correr juntos, esbarramos em fórmulas
mal-ditas e satíricas, de refrões seculares".

Já vimos juntos o arrebol? É um risco a mais;
metáforas espessas, o que podem expressar?
Pergunta-se do que "sub-jaz" ou do que "aparece"?

Tento acreditar em "Lethes", deixar-te na memória,
escorregarem-se os dias nestes rios fluentes;
estamos navegando à deriva de uma intersecção de setas.

E ainda a alma rebelde que me cospe o rosto:
constrange-me o suicídio, por ser uma utilidade inútil.

O sonho está diminuindo; a estrada, eu sempre
retorno àquele mesmo ponto, encruzilhada de
escolhas, no mais das vezes, interpeladas pela barbaridade.

Tenho medo do exílio de teus olhos, no assalto ao céu...

Assim quer o Deus? Desenhos de fumaça, crianças brincam,
a vida correndo mais um setembro, construindo o caráter
da prima-vera, sob auspícios diversos e 'be careful!'.

Acredito realmente na guerra e na morte, mas não
na dor. Como se estivesse perdido no caminho,
mesmo sabendo exatamente onde me encontro.

Mesmo pre-sentindo que tudo correrá como antes e
poderei beijar-te cálida ou calorosamente, assim
exijo uma seta para o arco que curva sóbrio:
teu suor em minha boca, teus sais para salvar-me
da solidão, teu sexo para energizar minhas glândulas.

Ou somente o teu cheiro, teu olhar, e 'go away alone'.

Veja, os animais, todos se soltaram: veja o coelho
Bob Dylan e a galinha Janis, o porco Rotten;
corra, ou vamos perdê-los! Agora, pastor!

Traga-me o vinho do odre mais antigo, comemore
comigo o brotar da estação, dilacera-me com
teu punhal, pareço anestesiado? Serei símbolo-diverso?

Deita do meu lado esquerdo, cobre-me com teu corpo,
para sentir-lhe o peso; diga-me apenas 'querido' e

já a música inquietante absorve-nos em cristais.
Lamento não poder gritar! Lamento a guerra e o
rosto no espelho. O que estou fazendo? Nada.

"Não é nada orgânico, obrigado". Ecos primaveris.

Passa o passo rápido no
auge do contraste que sobe ou desce e que
seca e umedece agora...
Alçou vôo e desapareceu,
roçou o enjôo e vomitou,
olvidou voar como pássaro...

Um vento que rodeia minha amada, um vento quente
do norte, aliás, tórrido e puro éter, e mudança
de modo-contínuo, mesmo sendo um e o mesmo,
movimento ávido do mesmo calor, estátua na chuva!

Preciso preencher uma ânsia de vacuidade e dispersão,
para arrebatar a lâmina de tua mão, naquele dia,
quando os medos e paixões subsistiram num gesto;

quando mudas o fim do poema e descubro que foi
antigamente projetado e me vejo nele feliz e
absorto por ser divinamente dirigido a ti,
em todas as súplicas surdas e canções, em
novas re-edições de línguas mortas, que não se tocam
mais, que feneceram por falta de uso devido
ou mesmo impróprio. Não houve o fato. Ridículo?

______________________________________________________

Linda. Demais.
Enjoy!

Enviado: 06 Dez 2006, 15:01
por Led Zeppelin
Também gosto muito de poesia, essa particularmente não conhecia, e gostei muito.

Uma das minhas favoritas senão a mais:

Arquétipo

Ele era belo; na espaçosa fronte
O dedo do Senhor gravado havia
O sigilo do gênio; em seu caminho
O hino da manhã soava ainda,
E os pássaros da selva gorjeando
Saudavam-lhe a passagem neste mundo.

Sim, era uma criança, e no entanto
Friez de morte lhe coava n'alma!
O seu riso era triste como o inverno,
E dos olhos cansados, nem um raio
Nem um clarão, nem pálido lampejo
Da mocidade o fogo revelavam!

Era-lhe a vida uma comédia insípida,
Estúpida e sem graça, - ele a passava
Com a fria indiferença do marujo
Que fuma o seu cachimbo reclinado
Na proa do navio olhando as vagas,
- Vivia por viver... porque vivia.

Em nada acreditava; há muito tempo
Que a idéia de Deus soprara d'alma
Como das botas a poeira incômoda.
O evangelho era um livro de anedotas.
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
A poesia provocava o sono.

Muita donzela suspirou por ele,
Muita beleza lhe dormiu nos braços,
Mas frio como o gênio da descrença,
Após uma hora de gozar maldito
Saciado, as deixou, como o conviva
A mesa do festim, - farto e cansado.

Era mais caprichoso, - mais bizarro
Do que um filho de Albion, mais volúvel
Que um profundo político; uma tarde
Após haver jantado, recordou-se
Que ainda era solteiro; Pelo Papa!

- É preciso tentar, disse consigo.
Quatro dias depois tinha casado.
Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês - um livro in-fólio,
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu bocejando ao sacerdote.

Como tudo na vida, o matrimônio
Bem cedo o aborreceu; após três meses
Disse adeus à mulher que pranteava,
E acendendo um cigarro, a passos lentos
Dirigiu-se ao teatro onde assistiu
Um drama de Feuillet -, quase dormindo.

Por fim de contas, uma noite bela,
Depois de ter ceado entre dois padres,
Em casa da morena Cidalisa,
Pegou numa pistola e entre as fumaças
De saboroso havana, à eternidade
Foi ver se divertia-se um momento.

São Paulo, 1861.

Fagundes Varela

Enviado: 06 Dez 2006, 15:33
por Apocaliptica
Led Zeppelin escreveu:Também gosto muito de poesia, essa particularmente não conhecia, e gostei muito.

Uma das minhas favoritas senão a mais:

Arquétipo

Ele era belo; na espaçosa fronte
O dedo do Senhor gravado havia
O sigilo do gênio; em seu caminho
O hino da manhã soava ainda,
E os pássaros da selva gorjeando
Saudavam-lhe a passagem neste mundo.

Sim, era uma criança, e no entanto
Friez de morte lhe coava n'alma!
O seu riso era triste como o inverno,
E dos olhos cansados, nem um raio
Nem um clarão, nem pálido lampejo
Da mocidade o fogo revelavam!

Era-lhe a vida uma comédia insípida,
Estúpida e sem graça, - ele a passava
Com a fria indiferença do marujo
Que fuma o seu cachimbo reclinado
Na proa do navio olhando as vagas,
- Vivia por viver... porque vivia.

Em nada acreditava; há muito tempo
Que a idéia de Deus soprara d'alma
Como das botas a poeira incômoda.
O evangelho era um livro de anedotas.
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
A poesia provocava o sono.

Muita donzela suspirou por ele,
Muita beleza lhe dormiu nos braços,
Mas frio como o gênio da descrença,
Após uma hora de gozar maldito
Saciado, as deixou, como o conviva
A mesa do festim, - farto e cansado.

Era mais caprichoso, - mais bizarro
Do que um filho de Albion, mais volúvel
Que um profundo político; uma tarde
Após haver jantado, recordou-se
Que ainda era solteiro; Pelo Papa!

- É preciso tentar, disse consigo.
Quatro dias depois tinha casado.
Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês - um livro in-fólio,
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu bocejando ao sacerdote.

Como tudo na vida, o matrimônio
Bem cedo o aborreceu; após três meses
Disse adeus à mulher que pranteava,
E acendendo um cigarro, a passos lentos
Dirigiu-se ao teatro onde assistiu
Um drama de Feuillet -, quase dormindo.

Por fim de contas, uma noite bela,
Depois de ter ceado entre dois padres,
Em casa da morena Cidalisa,
Pegou numa pistola e entre as fumaças
De saboroso havana, à eternidade
Foi ver se divertia-se um momento.

São Paulo, 1861.

Fagundes Varela


Envolta na palavra do "senhor" também...é como eu falei...o homem é fraco sem a proteção divina. :emoticon18:

Re: Quando a arte se revela entregue aos desígnios divinos..

Enviado: 06 Dez 2006, 15:36
por Hrrr
Apocaliptica escreveu:Quando penso em ti, minha cabeça dói; como fosses
sair de lá, por acreditar-me afim a Zeus: mas
que vão apelo à Natureza. Revelo-me miserável!

O amor de Prometeu, o amor de Dioniso, o amor de Zeus,
que mais posso desejar-te como signo fatal?


neo-neo-classicismo?