Contrastes na televisão
Enviado: 26 Dez 2006, 15:02
Publicado em 21|12 pelo(a) wiki repórter Melina Guterres, Santa Maria-RS
Não achei em nenhum dicionário o significado das frases “vai tomar no cú” e “vai pra porra”, ideais para expressar um “ar” de revolta quanto aos que fazem certos programas serem exibidos em canais de televisão. Só o Dicionário de Carioquês me falou que “porra” é um advérbio de intensidade, mas nem mesmo a palavra carioquês está regulamentada. No entanto, elas são ouvidas no dia-dia e também ditas em diversos programas na TV. Acho que nem preciso ficar explicando o que tais expressões pretendem dizer. É importante apenas que todos as compreendam.
Dias atrás, pela tarde, vi um programa na MTV que acompanhava uma guria no seu cotidiano prestes a dar uma festa de aniversário nos seus 18 anos, e na qual gastou 300 mil dólares! O pior era ouvir o que a aniversariante dizia: “Eu quero que todo mundo veja o quanto eu sou rica”. Durante o programa a moça ganhou um carro de 92 mil dólares do pai. Ela ainda se “gabava” em dizer que já tinha ganho concursos de beleza nos quais destacava o do “mais belo sorriso”.
Para sua festa, fechou uma boate local, com DJs famosos e uma banda cujo nome não lembro porque mudei de canal. Mas enfim, a guria fez um megaevento para um monte de gente que ela nem conhecia. Entrou vestida de Cleópatra, em uma espécie de carruagem carregada por alguns homens musculosos e com uma cobra enrolada no braço (porque ela tinha visto num vídeoclipe a Britney Spears fazendo o mesmo). Ao aparecer no palco, todos chamavam seu nome como se ela fosse uma pop star. Mas todos quem? E ela era pop do que mesmo?
No mesmo horário, num outro canal, o People&Arts, o programa Reconstrução Total em que arquitetos reconstroem em 7 dias uma casa, já tinha começado. A escolhida da vez era uma senhora de um bairro muito pobre, que parecia esquecido por todos, exceto os próprios moradores. O local havia sofrido há poucos dias uma enchente, e todos os que lá viviam passavam dificuldades. A mulher idosa escolhida era uma pessoa muito querida por ajudar a todos do seu bairro.
Buenas... Mas qual a relação entre os dois programas, ou melhor qual a diferença entre eles e seus personagens?
No People&Arts, na hora da reconstrução, as crianças do bairro se reuniram e queriam colaborar com as obras; na MTV, o pai da guria pagou todo trabalho da festa, nem um “amigo” precisou ajudar na arrumação.
No People&Arts, os amigos da igreja próxima se reuniram para cantar em coro na chegada da família; na MTV o nome da guria era “gritado” por uma galera que só queria era estar naquela festa.
No People&Arts, o programa, além de reformar aquele lar, reformou também a quadra de esportes do bairro, comprou computadores para o local em que a senhora “instruía” os demais, além de ter distribuído colchões e reformado os jardins dos moradores do bairro. Na MTV, o programa mostrava o quanto a guria tinha medo de cobra, e como seria difícil para ela usar uma em seu braço como desejava, tentando parecer alguém que ela só conhecia pela televisão.
No People&Arts, da família escorriam lágrimas e abraços, assim como as frases “Oh, my God!”. Na MTV, a guria distribuía sorrisos, provavelmente iguais aos que usava para posar nas fotos quando foi Miss Smile.
No People&Arts, a senhora estava emocionada mais pelo que foi feito aos seus vizinhos e ao bairro do que a si mesma; na MTV, a guria descia de sua carruagem com a ajuda e proteção dos seus “súditos”.
No People&Arts, a senhora estava cercada por muitos amigos; na MTV, a guria era rodeada por muitos estranhos.
Será que se ela estivesse na situação da família do outro canal alguém daquela festa a teria inscrito no programa de reconstrução?
De longe se percebia que mais “rica” era aquela a família com a reconstrução do que a guria com a sua festa; de longe percebia-se que os amigos daquela família eram verdadeiros; de longe se percebia que embora a guria estivesse rodeada de pessoas, ela só podia chamar um de amigo, o seu pai.
O People&Arts mostrou sorrisos que jamais se classificariam em um concurso de beleza, no entanto são incomparavelmente melhores do que qualquer um que se inscrevesse neles.
A MTV mostrou o quanto uma pessoa pode gastar para simplesmente ter o status que buscava na “sociedade”, status que programas como estes criam, status que a mídia vende diariamente para qualquer um consumir. A MTV mostrou a guria de sorriso bonito, mas vazio.
O People&Arts surpreendeu e mudou a vida de muitas pessoas. A MTV conseguiu cumprir o desejo da guria, mostrar para todo mundo o quanto ela era rica.
Mas o que a MTV pretendia em exibir a ostentação de uma adolescente americana rica num país como o Brasil? Humilhar? Afinal de contas, toda a juventude brasileira tem 300 mil dólares para gastar em uma festa, não é? ...Ou será que eles queriam dar uma de Tarantino, que usa do ridículo para ridicularizar? Sinceramente, prefiro que seja a segunda opção.
E se nesse mundo mídia, tudo é marketing, então fico com o People&Arts, que teve uma sacada que não “fere”, pelo contrário, beneficia. E que, neste caso, esteve bem mais próximo da realidade brasileira ao mostrar um bairro de negros que ninguém lembra que existe.
Vale lembrar que em 2004, a 4º Cúpula Mundial de Mídia para Criança e o Adolescente, realizada no Rio de Janeiro, concluiu que os jovens não estão satisfeitos com o que vêem e ouvem pelo mundo. O recado deixado pela juventude na solenidade de encerramento do evento, que durante cinco dias reuniu cerca de 2 mil participantes com jovens de 60 países foi:
“Permitam-nos a oportunidade de praticar o nosso direito. Sabemos que precisamos de orientação e apoio, mas queremos trabalhar em conjunto com os adultos. Trabalhem conosco, não para nós”.
Algo que a “senhora da vez” já mostrou que faz quando as crianças se ofereceram para reconstruir a sua casa.
Agora e a mídia???? Será que esta não tem nenhuma responsabilidade para com seu público, além do entretenimento? Será que sendo ela um instrumento capaz de influenciar milhões de pessoas, não se questiona além dos valore$$$ comerciais? Esses dias ouvi falar que a MTV não exibirá mais vídeosclipes no ano que vêm porque eles não rendem lucros. Se é verdade ou não, só esperando para saber. E se o realmente fizer, pelo visto, não será nada surpreendente.
São tantos os programas na TV que valem um “palavrão”, e é uma pena que existam, e uma alegria que existam os que não o mereçam... Cabe aos telespectadores definir que o palavrão ou elogio se dariam por apreciarem ou desprezarem o que vêem na TV. Aí vale até um clichê: o futuro é feito de escolhas.
Blog da autora:
* http://www.porque.blog-se.com.br *
Não achei em nenhum dicionário o significado das frases “vai tomar no cú” e “vai pra porra”, ideais para expressar um “ar” de revolta quanto aos que fazem certos programas serem exibidos em canais de televisão. Só o Dicionário de Carioquês me falou que “porra” é um advérbio de intensidade, mas nem mesmo a palavra carioquês está regulamentada. No entanto, elas são ouvidas no dia-dia e também ditas em diversos programas na TV. Acho que nem preciso ficar explicando o que tais expressões pretendem dizer. É importante apenas que todos as compreendam.
Dias atrás, pela tarde, vi um programa na MTV que acompanhava uma guria no seu cotidiano prestes a dar uma festa de aniversário nos seus 18 anos, e na qual gastou 300 mil dólares! O pior era ouvir o que a aniversariante dizia: “Eu quero que todo mundo veja o quanto eu sou rica”. Durante o programa a moça ganhou um carro de 92 mil dólares do pai. Ela ainda se “gabava” em dizer que já tinha ganho concursos de beleza nos quais destacava o do “mais belo sorriso”.
Para sua festa, fechou uma boate local, com DJs famosos e uma banda cujo nome não lembro porque mudei de canal. Mas enfim, a guria fez um megaevento para um monte de gente que ela nem conhecia. Entrou vestida de Cleópatra, em uma espécie de carruagem carregada por alguns homens musculosos e com uma cobra enrolada no braço (porque ela tinha visto num vídeoclipe a Britney Spears fazendo o mesmo). Ao aparecer no palco, todos chamavam seu nome como se ela fosse uma pop star. Mas todos quem? E ela era pop do que mesmo?
No mesmo horário, num outro canal, o People&Arts, o programa Reconstrução Total em que arquitetos reconstroem em 7 dias uma casa, já tinha começado. A escolhida da vez era uma senhora de um bairro muito pobre, que parecia esquecido por todos, exceto os próprios moradores. O local havia sofrido há poucos dias uma enchente, e todos os que lá viviam passavam dificuldades. A mulher idosa escolhida era uma pessoa muito querida por ajudar a todos do seu bairro.
Buenas... Mas qual a relação entre os dois programas, ou melhor qual a diferença entre eles e seus personagens?
No People&Arts, na hora da reconstrução, as crianças do bairro se reuniram e queriam colaborar com as obras; na MTV, o pai da guria pagou todo trabalho da festa, nem um “amigo” precisou ajudar na arrumação.
No People&Arts, os amigos da igreja próxima se reuniram para cantar em coro na chegada da família; na MTV o nome da guria era “gritado” por uma galera que só queria era estar naquela festa.
No People&Arts, o programa, além de reformar aquele lar, reformou também a quadra de esportes do bairro, comprou computadores para o local em que a senhora “instruía” os demais, além de ter distribuído colchões e reformado os jardins dos moradores do bairro. Na MTV, o programa mostrava o quanto a guria tinha medo de cobra, e como seria difícil para ela usar uma em seu braço como desejava, tentando parecer alguém que ela só conhecia pela televisão.
No People&Arts, da família escorriam lágrimas e abraços, assim como as frases “Oh, my God!”. Na MTV, a guria distribuía sorrisos, provavelmente iguais aos que usava para posar nas fotos quando foi Miss Smile.
No People&Arts, a senhora estava emocionada mais pelo que foi feito aos seus vizinhos e ao bairro do que a si mesma; na MTV, a guria descia de sua carruagem com a ajuda e proteção dos seus “súditos”.
No People&Arts, a senhora estava cercada por muitos amigos; na MTV, a guria era rodeada por muitos estranhos.
Será que se ela estivesse na situação da família do outro canal alguém daquela festa a teria inscrito no programa de reconstrução?
De longe se percebia que mais “rica” era aquela a família com a reconstrução do que a guria com a sua festa; de longe percebia-se que os amigos daquela família eram verdadeiros; de longe se percebia que embora a guria estivesse rodeada de pessoas, ela só podia chamar um de amigo, o seu pai.
O People&Arts mostrou sorrisos que jamais se classificariam em um concurso de beleza, no entanto são incomparavelmente melhores do que qualquer um que se inscrevesse neles.
A MTV mostrou o quanto uma pessoa pode gastar para simplesmente ter o status que buscava na “sociedade”, status que programas como estes criam, status que a mídia vende diariamente para qualquer um consumir. A MTV mostrou a guria de sorriso bonito, mas vazio.
O People&Arts surpreendeu e mudou a vida de muitas pessoas. A MTV conseguiu cumprir o desejo da guria, mostrar para todo mundo o quanto ela era rica.
Mas o que a MTV pretendia em exibir a ostentação de uma adolescente americana rica num país como o Brasil? Humilhar? Afinal de contas, toda a juventude brasileira tem 300 mil dólares para gastar em uma festa, não é? ...Ou será que eles queriam dar uma de Tarantino, que usa do ridículo para ridicularizar? Sinceramente, prefiro que seja a segunda opção.
E se nesse mundo mídia, tudo é marketing, então fico com o People&Arts, que teve uma sacada que não “fere”, pelo contrário, beneficia. E que, neste caso, esteve bem mais próximo da realidade brasileira ao mostrar um bairro de negros que ninguém lembra que existe.
Vale lembrar que em 2004, a 4º Cúpula Mundial de Mídia para Criança e o Adolescente, realizada no Rio de Janeiro, concluiu que os jovens não estão satisfeitos com o que vêem e ouvem pelo mundo. O recado deixado pela juventude na solenidade de encerramento do evento, que durante cinco dias reuniu cerca de 2 mil participantes com jovens de 60 países foi:
“Permitam-nos a oportunidade de praticar o nosso direito. Sabemos que precisamos de orientação e apoio, mas queremos trabalhar em conjunto com os adultos. Trabalhem conosco, não para nós”.
Algo que a “senhora da vez” já mostrou que faz quando as crianças se ofereceram para reconstruir a sua casa.
Agora e a mídia???? Será que esta não tem nenhuma responsabilidade para com seu público, além do entretenimento? Será que sendo ela um instrumento capaz de influenciar milhões de pessoas, não se questiona além dos valore$$$ comerciais? Esses dias ouvi falar que a MTV não exibirá mais vídeosclipes no ano que vêm porque eles não rendem lucros. Se é verdade ou não, só esperando para saber. E se o realmente fizer, pelo visto, não será nada surpreendente.
São tantos os programas na TV que valem um “palavrão”, e é uma pena que existam, e uma alegria que existam os que não o mereçam... Cabe aos telespectadores definir que o palavrão ou elogio se dariam por apreciarem ou desprezarem o que vêem na TV. Aí vale até um clichê: o futuro é feito de escolhas.
Blog da autora:
* http://www.porque.blog-se.com.br *