Saddam, sunitas e xiitas
Enviado: 06 Jan 2007, 08:01
Saddam, sunitas e xiitas
Leonídio Paulo Ferreira - Jornalista
Saddam Hussein foi apenas um dos dois mil iraquianos mortos em Dezembro. Mas a execução do ditador de Bagdad assume um significado político único, que vai além do simbolismo do acto. Confirma a ruptura entre as comunidades árabes xiita e sunita, que se percebera logo pela diferente atitude em relação ao invasor americano em 2003 e se tornara notória após a destruição do mausoléu de Samarra há um ano. Se nos bairros xiitas da capital e nas cidades do Sul houve festejos pelo enforcamento do ex-presidente, nas regiões sunitas (em volta da Tikrit de Saddam) o sentimento foi de revolta. Onde uns viram justiça, outros notaram vingança. E a hipótese de a guerra civil larvar se generalizar é imensa.
Saddam foi condenado à morte pela repressão feroz contra uma aldeia xiita. E, no entanto, se houve comunidade perseguida pelo seu regime foi antes a curda, a que pertence o actual Presidente JalalTalabani (foi contra a aldeia curda de Halabja que foram usadas armas químicas, foi a população curda que foi expulsa para o Irão). Historicamente, o regime dominado pelo partido Baas, laicista, perseguiu os religiosos xiitas, mas procurou integrar as populações. Houve mesmo um momento em que uma ligeira maioria dos militantes pertencia a essa corrente do islão. E Saddam, durante a guerra contra o Irão, apelou ao nacionalismo dos xiitas iraquianos e conseguiu afastá-los dos ayatollahs de Teerão. Alguns cargos de poder tiveram até por vezes ocupantes xiitas, em especial a presidência do Parlamento. Foi só após a revolta xiita de 1991, na sequência da expulsão das tropas iraquianas do Koweit, que Saddam reprimiu em vasta escala a comunidade maioritária, cerca de 60% dos 25 milhões de iraquianos. Nesse momento, consumou-se o divórcio entre Baas e xiitas e o partido tornou-se monopólio dos árabes sunitas. O aparelho de Estado já o era.
Houve nesta execução de Saddam vivas a Moqtada al-Sadr, líder das milícias xiitas suspeitas de estarem envolvidas na retaliação assassina contra os sunitas que se seguiu ao ataque bombista a Samarra. E se o ditador de Tikrit pode pertencer já ao passado, a forma como morreu serviu de alerta para muitos árabes sunitas, que serão um quinto da população. Já sabiam, desde a invasão americana e a promessa de Governo da maioria, que o seu poder estava destruído. Agora temem que a própria existência esteja ameaçada.
País nascido após a Primeira Guerra Mundial da fusão das províncias otomanas de Mossul, Bagdad e Baçorá, o artificial Iraque sempre foi tutelado por sunitas - no tempo dos turcos, no tempo da monarquia, no tempo de Saddam. Depois da desbaasificação imposta por George W. Bush, os sunitas pouco contam no novo regime. O curdo Talabani tenta ser uma espécie de árbitro e até diz ser contrário à pena capital, mas o essencial do conflito no Iraque é entre os seus novos senhores xiitas (o primeiro-ministro Nuri al-Maliki e os chefes da aliança governamental) e os deserdados sunitas. Não é por acaso que as fileiras da insurreição se alimentam dos membros dessa comunidade, a começar pelos jihadistas (a Al--Qaeda sempre teve ódio visceral aos xiitas).
A execução vingativa de Saddam ofereceu um mártir a uma minoria que se habituou a governar e que hoje luta pela sobrevivência. Mas sobretudo acentuou um embate entre xiitas e sunitas que pode destruir o Iraque. Os vizinhos assistem preocupados a um choque que arrisca-se a incendiar o Médio Oriente.
Leonídio Paulo Ferreira - Jornalista
Saddam Hussein foi apenas um dos dois mil iraquianos mortos em Dezembro. Mas a execução do ditador de Bagdad assume um significado político único, que vai além do simbolismo do acto. Confirma a ruptura entre as comunidades árabes xiita e sunita, que se percebera logo pela diferente atitude em relação ao invasor americano em 2003 e se tornara notória após a destruição do mausoléu de Samarra há um ano. Se nos bairros xiitas da capital e nas cidades do Sul houve festejos pelo enforcamento do ex-presidente, nas regiões sunitas (em volta da Tikrit de Saddam) o sentimento foi de revolta. Onde uns viram justiça, outros notaram vingança. E a hipótese de a guerra civil larvar se generalizar é imensa.
Saddam foi condenado à morte pela repressão feroz contra uma aldeia xiita. E, no entanto, se houve comunidade perseguida pelo seu regime foi antes a curda, a que pertence o actual Presidente JalalTalabani (foi contra a aldeia curda de Halabja que foram usadas armas químicas, foi a população curda que foi expulsa para o Irão). Historicamente, o regime dominado pelo partido Baas, laicista, perseguiu os religiosos xiitas, mas procurou integrar as populações. Houve mesmo um momento em que uma ligeira maioria dos militantes pertencia a essa corrente do islão. E Saddam, durante a guerra contra o Irão, apelou ao nacionalismo dos xiitas iraquianos e conseguiu afastá-los dos ayatollahs de Teerão. Alguns cargos de poder tiveram até por vezes ocupantes xiitas, em especial a presidência do Parlamento. Foi só após a revolta xiita de 1991, na sequência da expulsão das tropas iraquianas do Koweit, que Saddam reprimiu em vasta escala a comunidade maioritária, cerca de 60% dos 25 milhões de iraquianos. Nesse momento, consumou-se o divórcio entre Baas e xiitas e o partido tornou-se monopólio dos árabes sunitas. O aparelho de Estado já o era.
Houve nesta execução de Saddam vivas a Moqtada al-Sadr, líder das milícias xiitas suspeitas de estarem envolvidas na retaliação assassina contra os sunitas que se seguiu ao ataque bombista a Samarra. E se o ditador de Tikrit pode pertencer já ao passado, a forma como morreu serviu de alerta para muitos árabes sunitas, que serão um quinto da população. Já sabiam, desde a invasão americana e a promessa de Governo da maioria, que o seu poder estava destruído. Agora temem que a própria existência esteja ameaçada.
País nascido após a Primeira Guerra Mundial da fusão das províncias otomanas de Mossul, Bagdad e Baçorá, o artificial Iraque sempre foi tutelado por sunitas - no tempo dos turcos, no tempo da monarquia, no tempo de Saddam. Depois da desbaasificação imposta por George W. Bush, os sunitas pouco contam no novo regime. O curdo Talabani tenta ser uma espécie de árbitro e até diz ser contrário à pena capital, mas o essencial do conflito no Iraque é entre os seus novos senhores xiitas (o primeiro-ministro Nuri al-Maliki e os chefes da aliança governamental) e os deserdados sunitas. Não é por acaso que as fileiras da insurreição se alimentam dos membros dessa comunidade, a começar pelos jihadistas (a Al--Qaeda sempre teve ódio visceral aos xiitas).
A execução vingativa de Saddam ofereceu um mártir a uma minoria que se habituou a governar e que hoje luta pela sobrevivência. Mas sobretudo acentuou um embate entre xiitas e sunitas que pode destruir o Iraque. Os vizinhos assistem preocupados a um choque que arrisca-se a incendiar o Médio Oriente.