A alienação do trabalho e o espírito anti-capitalista

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user f.k.a. Cabeção
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A alienação do trabalho e o espírito anti-capitalista

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A alienação do trabalho e o espírito anti-capitalista

por user f.k.a. Cabeção






Max Weber foi um importante cientista social do final do século XIX e início do século XX, quando publicou sua obra mais conhecida: "A ética protestante e o espírito do capitalismo". Nesse trabalho ele atribuía as doutrinas religiosas decorrentes da Reforma Protestante um importante papel na consolidação de uma mentalidade de poupança, trabalho e investimento, essenciais ao capitalismo.

Algumas décadas mais tarde, Ludwig von Mises, um dos maiores economistas do século passado, escreveu um pequeno livro, "A mentalidade anti-capitalista", no qual ele aborda quais seriam as razões para que houvesse a proliferação de doutrinas tais como o socialismo (tanto o comunista como o nazista) e o intervencionismo ( presente em maior ou menor medida em todas as nações do mundo livre), e o seu sucesso em convencer as pessoas a despeito de seus desastrosos resultados.

Dentre diversos fatores importantes apontados por Mises, tais como a frustração gerada pelas cobranças de sucesso num ambiente meritocrático de mercado e o ressentimento dos intelectuais. Mas acho que ele peca ao esquecer de um fator crucial: a alienação causada pela divisão do trabalho.

Apesar de soar um tanto marxista, essa idéia precede a Marx, e a encontramos primeiramente em Adam Smith e melhor desenvolvida em Frédéric Bastiat.

Adam Smith, ao tratar da divisão do trabalho, no seu monumental "Uma investigação sobre a natureza e causa da Riqueza das Nações", faz um breve comentário a respeito de um efeito negativo da mesma, que seria o de "embrutecer" os operários.

Podemos entender isso fazendo uso do exemplo que ele mesmo nos confere. Ele trata de um artesão de alfinetes. Trabalhando sozinho ele pode, caso seja bastante industrioso, fabricar em um dia, pouco mais de uma dezena de alfinetes. Isso porque todos os passos do processo devem ser desempenhados por ele, seja o de adquirir a matéria prima (metal e ferramentas), seja o de desempenhar cada passo na confecção de um alfinete, como derreter o ferro, moldá-lo, confeccionar a cabeça, resfriá-lo e acabá-lo; e precisa também, finalmente, vendê-lo. Além disso, como ele trabalha sozinho, ou no máximo com um aprendiz, é ele quem precisa avaliar o mercado de alfinetes e tomar as decisões quanto aos custos de produção, e as medidas que o fariam satisfazer a demanda, sem incorrer em excessos e desperdícios.

Ou seja, o simples trabalho de um artesão de alfinetes envolve uma série de considerações e etapas produtivas, além da necessidade de lidar com fornecedores e clientes. E todas essas tarefas, e os intervalos e pausas entre elas, fazia com que o resultado do artesão fosse tão baixo, se comparado com a pequena manufatura de alfinetes.

Nessa manufatura, havia um encarregado de comprar material e negociar com fornecedores, além de vender o produto acabado para o mercado, um encarregado de transportá-los, um encarregado de derreter o ferro, outro de colocá-lo na forma, outro de moldá-lo, outro de colocar a cabeça, outro de acabá-lo, etc. Essa pequena linha de montagem incumbia cada um de uma tarefa específica na qual ele se especializaria, desempenhando-a com cada vez maior eficiência e menor desperdício, além de não precisar efetuar pausas no seu tempo produtivo trocando de tarefas ou lidando com terceiros problemas. Nessa manufatura, a produção por trabalhador dia saia dos dois dígitos para entrar nos quatro e até cinco dígitos. Um ganho significativo, principalmente considerando as tecnologias empregadas sendo pouco diferentes.

Esse ganho permitiu não só a queda do lucro em cima de um alfinete, que antes deveria pagar em torno de um décimo da diária de um artesão, e agora só precisa pagar um milésimo tanto do salário do artesão quanto dos lucros do seu empregador, mas também um aumento no próprio mercado das manufaturas de alfinetes, e a conseqüente extinção dos antigos artesãos.

Esse seria, assim por dizer, o aspecto "positivo" da divisão do trabalho. Coloco positivo entre aspas, por usar em contraste ao aspecto "negativo", comentado por Smith, que seria aquele que condena cada operário a uma simples tarefa repetitiva, atrofiando seu intelecto, o embrutecendo.

Smith não continuou nessa linha, até porque não era a proposta de sua obra, cujo escopo era determinar as causas do enriquecimento das nações.

Quem tomaria essa perspectiva de forma brilhante seria o economista clássico e político francês de meados do século XIX, Frédéric Bastiat.

A idéia principal de Bastiat é a de que os fenômenos e processos em uma economia com divisão de trabalho são complexos e intrincados, de tal modo que as relações entre causas e efeitos às vezes ficam pouco claras, criando-se então uma distinção entre "aquilo que se vê" e "aquilo que não se vê".

"Aquilo que se vê" seriam os efeitos imediatos de uma ação ou medida. Por exemplo, quando o governo estabelece que determinado produto estrangeiro deve ser taxado, a aumento de seu preço no mercado faz com que os produtos nacionais correspondentes não sejam afetados pela sua concorrência, elevando seus preços e favorecendo aquela indústria. "Aquilo que não se vê" seriam suas conseqüências secundárias, que embora menos visíveis, são tão importantes quanto. No caso do protecionismo, o que não se vê é que o consumidor é afetado por essa medida de forma a ter que pagar por preços mais altos do que pagaria num mercado desobstruído. Dessa forma, o dinheiro que ele pouparia para gastar em outras indústrias ou em investimentos e poupança acaba indo parar em uma indústria nacional pouco competitiva, porém, protegida pelo Estado. Analisando esse efeito secundário, chega-se a conclusão que o protecionismo não é de fato uma medida interessante para a indústria nacional, como se poderia concluir tomando apenas "aquilo que se vê".

Para Bastiat, uma das principais conseqüências da alienação do trabalho é o pensamento errôneo de que o trabalho é um fim em si, e que o objetivo de uma política econômica deva ser incentivar o trabalho, e não a produção.

Mas se o trabalho fosse o verdadeiro objetivo para enriquecer a nação, seria muito fácil então atingir o pleno emprego: bastaria colocar todos os desempregados para cavarem de manhã, e taparem os buracos a tarde. O resultado final seria nada, mas todos estariam empregados.

Como o trabalhador obtém seus rendimentos de seu trabalho, sem perceber que ele desempenha uma função dentro de toda uma estrutura que produz bens ou serviços valorosos, e portanto agrega valor e gera riqueza, ele passa a considerar que o simples ato de trabalhar é que gera seus rendimentos, magicamente. Passa-se então a cobrar do governo que se incentive o trabalho, para que todos possam usufruir de seus benefícios.

As idéias de Bastiat são muito mais extensas, e não se poderia tratá-las num texto só, mas até aqui podemos fazer um apanhado. O desenvolvimento capitalista gera riqueza que trás as pessoas do campo para a cidade, onde as condições para viverem são substancialmente melhores. Contudo, essas pessoas ignoram que sua melhoria se deveu a uma organização capitalista orientada para a otimização da produção, atribuindo esse aumento da riqueza unicamente ao fato de trabalharem. Os desempregados passam então a cobrar medidas governamentais no sentido de ampliar os níveis de emprego, e os empregados passam a cobrar por melhores salários. Os produtores por sua vez cobram por menos competição dos estrangeiros.

É nesse cenário que emergem os expoentes do anti-capitalismo. Eles não propõem um estudo das verdadeiras causas geradoras da riqueza, isso Adam Smith e os liberais clássicos haviam conseguido fazer, o que eles querem é promover a ignorância gerada por um efeito colateral da divisão do trabalho e se aproveitar dela. Eles propõem coisas como "valor-trabalho", "mais valia", "exploração do capital", e também a formação de sindicatos, a intervenção nos preços e salários, as políticas sociais, os bloqueios a produtos estrangeiros, a "criação" de empregos, a rebelião contra as máquinas.

Eles se aproveitam da limitada visão do apertador de parafusos, para tentar-lhe mostrar que os donos do capital estão explorando sua condição. Não estão preocupados se isso é verdade ou se é falso, mas sim com o fato de que o apertador de parafuso estará muito mais propenso a entender o que eles dizem, por se limitar ao que se vê, do que aquilo que a Ciência Econômica diz, que se estende por aquilo que não se vê.

O resultado da ação desses "teóricos" só poderia ser um. O agravamento da miséria, com a retração da produção e do crescimento econômico decorrente da hostilização do capital e da supervalorização do trabalho. Daí ao aparecimento de regimes autoritários e violentos, que precisam usar de seu poder de coerção para estimular a produção, não tardou. A medida do acerto desses pensadores é dada em crânios.

Bastiat pode não ter visto o surgimento do socialismo, sua luta foi travada contra os protecionistas franceses (que sairiam vitoriosos), mas ele conseguiu identificar sua matéria prima, que na verdade é a mesma dos protecionistas a quem combatia: a ignorância daquilo que não se vê. E tanto maior será aquilo que não se vê, quanto mais alienado for o apertador de parafusos.

Mas não vejo razão para se manter pessimista.

Atualmente, uma nova tendência divisão do trabalho, com a transferência para o "terceiro mundo" e para automatização os empregos de maior grau de alienação, está deixando para o primeiro mundo basicamente o capital intelectual. Os empregos agora não são mais em asfixiantes linhas de montagem, mas em ambientes de criação, tanto de tecnologias como de estratégias de mercado, e essa modificação no panorama pode estar processando uma mudança de ponto de vista. A era da informação trouxe consigo ferramentas que democratizaram o acesso aos fatos e as idéias. Ainda existe uma tendência reacionária da parte dos anti-capitalistas, manifestada pelos ataques irracionais à "globalização", e a maior parte do material publicado ainda pode ser de conteúdo anti-capitalista, mas essa sempre foi a regra, não a exceção.

O fato é que essas transformações podem ser cruciais para diminuir a alienação decorrente da divisão do trabalho, e dessa forma causar a morte por inanição da "intelectualidade" anti-capitalista, processo fundamental para progredirmos rumo a uma sociedade mais aberta. Talvez essa seja uma nova "reforma protestante", que como a primeira, quebra as amarras de uma visão de mundo limitada e opressiva e permite o (res)surgimento de uma sociedade mais livre.

"Let 'em all go to hell, except cave 76" ~ Cave 76's national anthem

Trancado