meio extenso mais lá vai
POR QUE EU ESCREVO
George Orwell(1947)
[Tradução: Eva Paulino Bueno]
[Revisão: Alexander Martins Vianna]*
Desde a mais tenra idade, talvez desde os cinco ou seis anos, eu sabia que, quando crescesse, seria um escritor. Entre os dezessete e os vinte e quatro anos, tentei abandonar esta idéia, mas fiz com a consciência de que estava atacando a minha verdadeira natureza e que, mais cedo ou mais tarde, teria que me acomodar e escrever livros. Eu era o filho do meio numa família com três filhos, mas havia uma distância de cinco anos de cada lado – e raramente vi meu pai até completar os oito anos. Por esta e outras razões, eu era bastante solitário – e logo desenvolvi os maneirismos desagradáveis que me tornaram impopular durante meus dias de estudante. Eu tinha o hábito – de criança solitária – de inventar histórias e ter conversas com pessoas imaginárias – e acho que, desde o começo, minhas ambições literárias estavam misturadas com o sentimento de ser isolado e desvalorizado. Eu sabia que tinha facilidade com as palavras e o poder de encarar fatos desagradáveis – e sentia que isto criava uma espécie de mundo privado no qual eu podia me recompensar pelas faltas na vida diária. Entretanto, o volume de escritas sérias – quer dizer, que tinham intenção séria – que produzi na minha infância não chegaram a meia dúzia de páginas. Escrevi meu primeiro poema aos quatro ou cinco anos, ditado à minha mãe, que o transcreveu. Não me lembro nada sobre este poema a não ser que era sobre um tigre que tinha "dentes como cadeiras" – uma frase bastante boa, mas acho que o poema era um plágio do poema "Tiger, Tiger..." de Blake[1]. Aos onze anos, quando a guerra de 1914-18 começou, escrevi um poema patriótico que foi impresso em jornal local; o mesmo se passou dois anos mais tarde, na ocasião da morte de Kitchener[2]. Ocasionalmente, quando era mais velho, escrevia e, geralmente, nem terminava uns "poemas naturalistas" ruins em estilo georgiano. Também tentei escrever um conto, mas foi uma derrota completa. E esta foi a soma total do meu trabalho sério durante todos aqueles anos.
No entanto, durante todo esse tempo, estive envolvido em atividades literárias. De início, havia o trabalho escolar, que eu produzia rapidamente, facilmente e sem nenhum prazer pessoal. Além do trabalho de escola, escrevia versos para ocasiões especiais (vers d'occasion), poemas semicômicos que, ao que me parece agora, eu produzia em uma velocidade espantosa. Aos quatorze anos, escrevi em uma semana uma peça rimada – em imitação a Aristófanes[3]– e ajudei a editar revistas da escola, tanto impressas quanto manuscritas. Estas revistas eram as coisas burlescas mais tolas que vocês poderiam imaginar – e tive menos problemas com elas do que teria agora com o jornalismo mais barato. Mas ao lado disso tudo, por quinze anos ou mais, eu estava fazendo um exercício literário de um tipo diferente: a invenção de uma contínua "história" sobre mim mesmo, um tipo de diário que existia somente na minha cabeça. Eu acho que este é um hábito comum a adolescentes e crianças. Quando eu era bem pequeno, costumava imaginar ser, digamos, Robin Hood, e colocava-me como o herói de emocionantes aventuras.
No entanto, logo a minha "história" deixaria de ser narcisista de uma maneira crua e tornar-se-ia cada vez mais uma mera descrição do que eu estava fazendo e das coisas que observava. Por vários minutos um tipo de coisa assim se passava em minha cabeça: "Ele empurrou a porta e entrou no quarto. Uma réstia de luz do sol filtrado através das cortinas de musselina atingia a mesa, onde uma caixa de fósforos meio aberta estava ao lado do tinteiro. Com sua mão direita no bolso, ele se moveu em direção à janela. Na rua lá embaixo, um gato marrom perseguia uma folha morta..."etc, etc. Tal hábito continuou até os meus vinte e cinco anos, atravessando todos os meus anos não literários. Embora eu tivesse que procurar, e procurava, as palavras certas, eu parecia estar fazendo estes esforços descritivos quase contra minha vontade, sob uma espécie de compulsão vinda de fora. Eu suponho que minha "história" deve ter refletido os estilos dos vários escritores que admirei em diferentes épocas, mas agora o que me lembro é que ela sempre tinha a mesma qualidade meticulosamente descritiva.
Quando tinha mais ou menos dezesseis anos, descobri repentinamente a alegria de meras palavras, isto é, dos sons e associações das palavras, como nas linhas de Paraíso Perdido[4]
Então, ele com dificuldade e árduo labor
continuou com dificuldade e árduo labor ele
(So hee with difficulty and labour hard
Moved on: with difficulty and labour hee)
Que agora não me parecem tão maravilhosas, mas naquele tempo causavam-me arrepios – e a escrita de "hee" por "he" (ele) era um prazer adicional. Quanto à necessidade de descrever coisas, eu já sabia tudo sobre ela. Então, é claro que tipo de livros eu queria escrever – se, pelo menos, pudermos dizer que eu queria escrever livros naquele tempo. Eu pretendia escrever enormes romances naturalistas com finais infelizes, cheios de detalhadas descrições e sorrisos encantadores, e também cheios de ornamentos retóricos em que as palavras fossem usadas parcialmente pelo prazer de usar a palavra. E de fato, meu primeiro romance completo, Burmese Days (Dias na Birmânia), que escrevi quando tinha 30 anos, mas que tinha projetado muito antes, é este tipo de livro.
Estou dando toda esta informação de fundo porque não acho que alguém pode penetrar nos motivos de um escritor sem saber alguma coisa do seu desenvolvimento anterior. Este assunto será determinado pela época em que ele vive – ou, pelo menos, isto é verdade nos tempos tumultuosos e revolucionários de épocas como a nossa. No entanto, antes que o escritor comece a escrever, já terá adquirido uma atitude emocional da qual nunca escapará totalmente. É seu trabalho, sem dúvida, disciplinar seu temperamento e evitar ficar estagnado em algum estágio imaturo, em algum temperamento perverso; porém, se ele escapa completamente de todas as suas influências iniciais, terá matado o impulso de escrever. Colocando de lado a necessidade de ganhar a vida, penso que haja quatro motivos para escrever, ou pelo menos para escrever prosa. Os motivos existem em diferentes graus em cada escritor e as suas proporções variam de tempo em tempo, de acordo com a atmosfera em que ele está vivendo. Tais motivos são:
(1) Completo Egoísmo, o desejo de parecer esperto, de ser comentado, de ser lembrado depois da morte, de se desforrar dos adultos que os esnobaram na infância, etc., etc. Os escritores compartem esta característica com cientistas, artistas, políticos, advogados, soldados, negociantes bem sucedidos – em suma, com toda a camada superior da humanidade. A grande massa dos seres humanos não é agudamente egoísta. Depois dos trinta anos, eles quase abandonam completamente o sentido de serem pessoas individuais – vivem principalmente para os outros, ou são sufocados embaixo de trabalhos enfadonhos. No entanto, há uma minoria de pessoas talentosas, voluntariosas, que estão determinadas a viverem suas próprias vidas até o fim – e os escritores estão nesta classe. Os escritores sérios, eu tenho que admitir, são ainda mais vaidosos e egocêntricos que os jornalistas, embora sejam menos interessados em dinheiro.
(2) Entusiasmo Estético, a percepção da beleza no mundo exterior ou, por outro lado, nas palavras e no seu arranjo correto. O prazer do impacto de um som no outro, na firmeza da boa prosa e do ritmo de uma boa história. O desejo de compartir uma experiência que se sente que é valiosa e não deveria ser perdida. O motivo estético é muito fraco em uma porção de escritores, mas mesmo um escritor de panfletos ou um escritor de livros escolares tem palavras e frases preferidas que lhe apelam por razões não utilitárias; ou talvez tenha sentimentos fortes sobre tipografia, largura das margens, etc. Além do nível de um guia de horário de trens, nenhum livro está livre de considerações estéticas.
(3) Impulso Histórico, o desejo de ver as coisas como elas são, de descobrir os fatos verdadeiros, de guardá-los para a posteridade.
(4) Propósito Político, usando a palavra "político" no sentido mais amplo possível. O desejo de levar uma palavra em uma certa direção, de alterar a idéia de outras pessoas sobre o tipo de sociedade pela qual devem aspirar. Mais uma vez, nenhum livro é genuinamente livre de preconceito político. A percepção de que a arte não deveria ter nada a ver com a política é, em si mesma, uma atitude política.
Pode-se pensar como estes vários impulsos lutam uns com os outros e como variam de pessoa a pessoa, de um tempo a outro. Por natureza – considerando "natureza" o estado em que se atinge quando se torna adulto –, sou uma pessoa na qual os três primeiros motivos seriam mais fortes que o quarto. Em uma época de paz, eu talvez tivesse escrito livros ornamentais e meramente descritivos – e teria permanecido quase descuidado de minhas lealdades políticas. No entanto, o caso foi que me vi forçado a me tornar uma espécie de escritor de panfletos.
Inicialmente, passei cinco anos em uma profissão inadequada (a Polícia Imperial Indiana, em Burma) e, posteriormente, passei por pobreza e um sentimento de derrota. Isto aumentou o meu ódio natural por autoridade e me tornou pela primeira vez completamente consciente da existência das classes trabalhadoras. O trabalho em Burma me deu algum entendimento da natureza do imperialismo, mas tais experiências não foram suficientes para me darem uma orientação política bem delineada. Então vieram Hitler, a Guerra Civil Espanhola, etc. No final de 1935, eu não tinha ainda alcançado uma decisão firme. Eu me lembro de um pequeno poema que escrevi naquela ocasião, expressando meu dilema:
Um vigário feliz eu poderia ter sido
há duzentos anos atrás
a pregar a condenação eterna
e assistir crescerem às minhas nogueiras.
Mas nascido, ai de mim, num tempo ruim,
perdi aquele abrigo feliz,
pois os pêlos cresceram sobre meus lábios,
e os clérigos são todos barbeados.
E mais tarde, quando havia tempos bons,
ficávamos felizes tão facilmente,
púnhamos nossos problemas a repousar
nas cascas das árvores.
Completamente inocentes, ter ousamos
as alegrias que agora ignoramos.
No ramo da macieira, o canarinho
deixava meus inimigos em desalinho.
Ventres femininos e damascos,
carpa num córrego nebuloso,
cavalos, patos na madrugada em vôo...
Tudo isso era um sonho!...
É proibido sonhar de novo...
Mutilamos nossas alegrias ou as ocultamos.
Cavalos são feitos de aço cromado
e porcos devem cavalgá-los.
Sou a larva interrompida,
o eunuco sem um harém,
entre o padre e o comissário,
caminho como Eugene Aram[5].
E o comissário está lendo minha sorte
enquanto o rádio fala.
Mas o padre prometeu um Austin Seven[6]
porque Duggie sempre paga.
Sonhei que em salas de mármore morava
e acordei para descobrir que era verdade:
Não nasci para uma época como esta...
E Smith? E Jones? E você, nasceu?...
A guerra espanhola e outros eventos em 1936-37 pesaram na balança e, depois desta época, eu sabia quais eram minhas opiniões. Cada linha de trabalho sério que eu escrevi desde 1936 foi feita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, como eu o entendo. Parece-me uma grande tolice, num tempo como o nosso, imaginar que uma pessoa possa evitar escrever sobre tais assuntos. Todo mundo escreve sobre eles de uma forma ou de outra. É simplesmente uma questão de que lado você se coloca e qual enfoque você segue. E quanto mais a pessoa está consciente de suas atitudes políticas, mais a pessoa tem a chance de agir politicamente sem sacrificar sua integridade estética e intelectual.
O que eu mais quis fazer nos últimos dez anos foi transformar a escrita política em arte. O meu ponto de partida é sempre um sentimento de engajamento político, um senso de injustiça. Quando me sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo "eu vou produzir uma obra de arte". Eu o escrevo porque há alguma mentira que quero expor, algum fato para o qual eu quero chamar a atenção – e a minha preocupação inicial é ser ouvido. Mas eu não teria o trabalho de escrever um livro, ou mesmo um artigo longo para uma revista, se isso não fosse também uma experiência estética. Qualquer um que tome o tempo de analisar meu trabalho verá que, mesmo quando é pura propaganda, contém mais do que um político profissional consideraria relevante. Não sou capaz, e nem quero, abandonar completamente a visão de mundo que adquiri na infância. Enquanto continuar bem vivendo, terei sempre fortes sentimentos sobre estilo de prosa, amarei a superfície da Terra e terei prazer em objetos sólidos e em retalhos de informação inútil. Não adianta tentar suprimir esse lado de minha personalidade. O trabalho consiste em reconciliar o que gosto e o que não gosto com o essencialmente público – atividades não individuais que esta época joga em cima de todos nós. Isso não é fácil, pois levanta problemas de construção e de linguagem – e traz de volta, de uma maneira nova, o problema da verdade. Quero dar um exemplo bem cru do tipo de dificuldade que isso traz.
Meu livro sobre a guerra civil espanhola, “Homenagem à Catalunha”, é claramente um livro político, mas de maneira geral está escrito com um certo distanciamento e cuidado com a forma. Eu tentei nesse livro contar toda a verdade sem violentar meus instintos literários. Porém, entre outras coisas, o livro contém um capítulo longo, cheio de citações de jornais e tais coisas, defendendo os trotskistas, que foram acusados de estar envolvidos com Franco. Claramente, tal capítulo, que depois de um ou dois anos perderia seu interesse para qualquer leitor comum, deve arruinar o livro. Um crítico que respeito me passou um sermão sobre este capítulo: "Porque você colocou todas estas coisas aqui?", ele disse, "Você transformou o que poderia ter sido um bom livro em mero jornalismo". O que ele disse era verdade, mas eu não poderia ter feito o livro de outra forma. O que aconteceu é que eu sabia o que muito poucas pessoas na Inglaterra sabiam: homens inocentes estavam sendo falsamente acusados. Se eu não estivesse com tanta raiva deste fato, eu não teria escrito o livro. De uma forma ou de outra, tal problema sempre volta.
O problema da língua é mais sutil e tomaria mais tempo para discutir. Eu apenas direi que, nos últimos anos, tenho tentando escrever com menos floreios e com mais exatidão. De qualquer forma, acabo descobrindo que, no momento em que se aperfeiçoa um estilo de escrita, já se o ultrapassou. O livro “Revolução dos Bichos” (Animal Farm) foi o primeiro em que tentei, com total consciência do que estava fazendo, fundir o propósito político e o propósito artístico. Há sete anos não escrevo nenhum romance, mas espero escrever outro logo. Este estará fadado ao fracasso – todo livro é um fracasso –, mas já sei com alguma certeza que tipo de livro quero escrever.
Relendo as últimas duas páginas, vejo que fiz parecer que os meus motivos para escrever eram todos de espírito completamente público, para o bem comum. Mas eu não quero que esta seja a impressão final. Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos – e há um mistério no fundo dos seus motivos. Escrever um livro é uma luta horrível e cansativa, e o processo se parece com uma batalha contra uma doença longa e dolorosa. Ninguém embarcaria em tal jornada se não fosse impulsionado por algum demônio que ele não pode resistir nem entender. Pelo que sabemos, aquele demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz com que o bebê chore para conseguir atenção. E também é verdade que qualquer um escreveria ainda coisas ilegíveis, a não ser que lute constantemente para ocultar a sua própria personalidade. A boa prosa é como uma janela. Não posso dizer com certeza quais dos meus motivos são os mais fortes, mas sei quais deles merecem ser seguidos. E, olhando para o trabalho que já fiz, vejo que é invariavelmente onde eu não tinha um propósito político que escrevi livros sem vida e fui tragado por passagens excessivamente ornamentadas, sentenças sem significado, adjetivos decorativos e, de maneira geral, tolices.
*As revisões e notas à tradução são da inteira responsabilidade de Alexander Martins Vianna, professor de história moderna e contemporânea do Departamento de História da Fundação Educacional Duque de Caxias (FEUDUC-RJ)
[1] Refere-se a William Blake(1757-1827), poeta e pintor inglês.
[2] (1850-1916). Orwell refere-se ao marechal britânico que conquistou e administrou Sudão.
[3] (450-388 a.C.). Orwell refere-se ao autor de comédias de Atenas do período clássico.
[4] Orwell refere-se ao livro de John Milton(1608-1674), concluído em 1665 e publicado pela primeira vez em 1667.
[5] Orwell refer-se à novela “The Dream of Eugene Aram, the Murderer”, de Thomas Hood (1799-1845), publicada inicialmente em 1832, que se baseava numa história real: aquela do professor e filologista inglês Eugene Aram (1704-1759), que assassinara o comerciante Daniel Clark por suspeitar de suas relações com sua esposa. Ele enterrara o corpo de Clark em Knaresborough, que seria descoberto somente em fevereiro de 1758 devido a denúncias de sua esposa, levando até este momento uma vida de aparente normalidade. Aram morreria em 6 de agosto de 1759, sem concluir um trabalho original de filologia comparada entre inglês, latim, grego, hebreu e línguas célticas.
[6] Modelo de carro criado pela Austin Motor Company.