As Lições de Ludwig von Mises aos Constituintes de 1988
“Será a história um dia reescrita? Se o for, e quando o for, os heróis da Constituinte de 88 parecerão bandidos anti-sociais, fabricantes de pobreza e fraudadores do desenvolvimento. A única coisa que não se lhes pode negar é terem tido boas intenções. Mas na história, as boas intenções são notas de rodapé; só os ‘resultados’ entretecem a trama principal”.
Roberto Campos.
A inadequação da Constituição Federal de 1988 às realidades e necessidades do país são hoje patentes. Tantos foram os problemas a nós legados pelos constituintes que, na tentativa de remediá-los, foram necessárias nada menos que 43 emendas ao seu texto original, terminando por totalizar 250 artigos, com 94 disposições transitórias. A título de comparação, a Constituição dos Estados Unidos da América, ratificada duzentos anos antes da brasileira, possui apenas 7 artigos, aos quais foram acrescidas 26 emendas constitucionais, pouco mais da metade do número brasileiro.
É provável, no entanto, que a multiplicação dos artigos tenha sido um dos menores males. De fato, a quantidade desses artigos colabora menos para a perpetuação de nossos infortúnios do que o conteúdo expresso em alguns deles.
Em verdade, olhando retrospectivamente, é possível dizer que a Constituição nasceu em um momento inoportuno; foi redigida antes do annus mirabilis de 1989 e de todas as transformações dele decorrentes no Leste Europeu. Estávamos, ainda, influenciados em excesso por idéias ineficazes, que já haviam se provado errôneas no passado, mas nas quais insistíamos com uma teimosia tenaz.
O resultado não poderia ser outro. Tão logo promulgada, a Constituição já precisava de emendas. Uma após outra, reformas pontuais foram, ao longo de toda a década de 1990, corrigindo algumas das sandices patrocinadas pelo bom-mocismo demagógico de nossos constituintes. A fatura da farra de “direitos sociais” chegou tão logo foi posto em vigência o texto; e o declínio do estatismo em todo o mundo mostrava que, na verdade, o país havia feito, em 88, a opção pelo atraso.
É sintomático, portanto, que hoje uma das mais ferrenhas defensoras dos termos e desígnios constitucionais seja justamente a esquerda radical do país, que tanto os vilipendiou de início. Tal qual “o sujeito forçado a casar com mulher feia, pela qual depois se apaixonou ao descobrir-lhe insuspeitas virtuosidades na cama”1, como costumava dizer Roberto Campos.
Os erros dos liderados de Ulysses Guimarães foram muitos e alguns deles serão objeto de análise neste ensaio. Mas se resumidos em apenas um tópico, talvez pudessem assim ser sintetizados: acharam por bem, os constituintes, à moda dos “liberals” americanos, incorporar à Carta Magna a ilusão de que é possível separar liberdade econômica das demais liberdades. O próprio Ulysses, na cerimônia de promulgação do texto, explicitava seu “ódio” pela ditadura e pelo autoritarismo, sem perceber que, paradoxal e concomitantemente, estava a ratificar o autoritarismo econômico e o estado de servidão dos cidadãos brasileiros perante o Estado. A mesma contradição foi assim tratada por Mises, em seu “As Seis Lições”2:
The so-called liberals of today have the very popular idea that freedom of speech, of thought of the press, freedom of religion, freedom from imprisonment without trial—that all these freedoms can be preserved in the absence of what is called economic freedom. They do not realize that, in a system where there is no market, where the government directs everything, all those other freedoms are illusory, even if they are made into laws and written up in constitutions3.
Desnecessário dizer que Ludwig von Mises não era leitura freqüente – ou mesmo esporádica – da maioria dos representantes do povo na Assembléia Constituinte. Resultou dela, portanto, a manutenção de uma visão tão intolerante quanto ignorante a respeito das idiossincrasias da economia, a qual espero poder comentar mais detalhadamente nas páginas seguintes.
“Direitos Sociais” e Desequilíbrio Fiscal
Do ponto de vista da liberdade individual e do pensamento liberal, poderia-se discutir a pertinência de quase todas as atribuições que o texto constitucional confere ao Estado. Poderia-se, por exemplo, questionar o grau de liberdade de que goza um indivíduo obrigado a transferir ao Estado uma parcela considerável de sua renda para que este aplique em seguridade social. Seria também possível debater, sob o prisma liberal, a validade de tornar compulsória aos cidadãos brasileiros o financiamento da educação superior de terceiros, por meio das universidades estatais.
No entanto, por mais pertinentes que sejam esses assuntos, além de não serem objeto de análise em “As Seis Lições”, provavelmente mereceriam mais espaço do que o disponível neste ensaio. Melhor, portanto, é analisar os resultados que esses “direitos sociais” trouxeram às contas públicas e à situação fiscal do país, notadamente o inchaço das despesas obrigatórias e o conseqüente desequilíbrio fiscal.
Nos termos constitucionais, foram definidos como “direitos sociais”, “a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Foram os constituintes tão generosos e perdulários em “direitos sociais” e atribuições da União quanto avarentos e restritivos na hora de determinar suas receitas. Foi obra deles, por exemplo, a transferência de inúmeros funcionários públicos do regime celetista (contratos regidos pela CLT) para o regime jurídico único, o que provocou enormes despesas extras, além de uma série de inconvenientes ligados à natureza do contrato que restringiam ainda mais a capacidade do poder público de sanear suas contas; também deve ser a eles creditada a irresponsabilidade fiscal que deu origem ao déficit previdenciário que se tornou o maior obstáculo ao equilíbrio das contas públicas.
É lícito concluir, pois, que a aceitação quase generalizada da farra perdulária dos constituintes demonstra o quanto somos lenientes com o Estado, permitindo que ele e que aqueles que agem em seu nome continuem a nos impor taxações cada vez mais altas, sem atacar as verdadeiras origens dos déficits, conforme explicou Mises:
The government can run at a deficit, because it has the power to tax people. And if the taxpayers are prepared to pay higher taxes in order to make it possible for the government to operate an enterprise at a loss—that is, in a less efficient way than it would be done by a private institution—and if the public will accept this loss, then of course the enterprise will continue.4
Deram, portanto, um grande incentivo ao Estado para que recorresse à inflação para custear parte de seus gastos. Diante desta situação, é lógico que tenhamos atingido em poucos anos um quadro de hiperinflação.
Em verdade, o texto constitucional ignorou, em uma clara afronta à aritmética, princípios básicos de responsabilidade fiscal. Os constituintes, ansiosos por agradares suas bases eleitorais, transferiram a Estados e Municípios receitas que antes eram destinadas à União, sem que houvesse, no entanto, uma proporcional transferência de atribuições. E mais: tornaram obrigatórias um sem-número de despesas, virtualmente impossibilitando um ajuste fiscal profundo, que modificasse a estrutura dos gastos públicos. Um grande volume de receitas passou a ser vinculado a despesas específicas, dificultando ainda mais qualquer tentativa de ajuste fiscal.
A título de ilustração, segundo dados do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no ano de 1988 as receitas desvinculadas representavam 55,5% do total; cinco anos de vigência da nova Constituição reduziram essa participação, em 1993, para 22,9% e em 2003 para algo em torno de 19,7%.
Tem-se mantido, portanto, desde o fim da década de 1980 e início dos anos 90, um nível médio de receitas vinculadas em torno de 75% do total arrecadado. E a maior parte desse montante é direcionada ao financiamento e custeio dos “direitos sociais” criados pelos constituintes. Uma destas vinculações, por exemplo, determina que o Governo Federal deve obrigatoriamente direcionar no mínimo 18% dos recursos arrecadados à Educação (Art. 212); outra canaliza as receitas provenientes das contribuições sociais descritas no Art. 195 para o financiamento da seguridade social. Além dessas duas, há ainda um outro conjunto de vinculações de receitas que diz respeito a transferências automáticas de recursos para Estados e Municípios5.
Criou-se, portanto, deliberadamente, um problema de financiamento para o Estado brasileiro, que dificultou sobremaneira a implementação de um necessário ajuste fiscal profundo. A despeito das heterodoxias constituintes, Mises, acertadamente, ensinava que não havia soluções mágicas:
There can be no secret way to the solution of the financial problems of a government; if it needs money, it has to obtain the money by taxing its citizens (or, under special conditions, by borrowing it from people who have the money). But many governments, we can even say most governments, think there is another method for getting the needed money; simply to print it.6
Não é sem motivo, portanto, que convivemos durante a década de 90 tanto com a hiperinflação quanto com a alta carga tributária e o elevado endividamento público. Os constituintes de 1988 transformaram os gastos públicos elevados em um preceito constitucional, contra o qual tornou-se complicado manejar a economia.
Mesmo assim poderia ter sido pior, caso tivesse sido posto em prática o absurdo tabelamento de juros que incluíram no texto. A medida era determinada pelo artigo 192, em seu parágrafo terceiro, que limitava os juros reais a 12% ao ano, uma impropriedade medieval que instituía o crime de usura para cobranças de taxas maiores e que, como lembrou Maílson da Nóbrega, expôs o Brasil ao ridículo “de ser o primeiro país a incluir em sua Carta Magna uma idéia abandonada há mais de trezentos anos no mundo ocidental”7.
Para sorte do país, este dispositivo, ao contrário de muitos outros impropérios constituintes, nunca chegou a ser implementado, graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal decidindo que a matéria precisaria de regulamentação em lei.
Investimento Estrangeiro e Relações de Trabalho
A visão que deu origem ao tratamento paternalista dispensado aos trabalhadores no texto constitucional é, em essência, a mesma que discriminou o capital estrangeiro e o pôs, na prática, em uma categoria de “capital de segunda classe”; é mesma visão tão conhecida e disseminada em países subdesenvolvidos, segundo a qual o capital (principalmente o estrangeiro) é intrinsecamente predador, e o trabalhador é essencialmente uma vítima. De acordo com esta crença, este último é sempre o elo mais fraco da cadeia produtiva, comandada inexoravelmente pelo capital. Caberia, portanto, ao Estado balancear as relações de poder na cadeia, protegendo a parte mais fraca e solapando a força do lado mais forte.
Foi esta maneira distorcida de ver a realidade econômica, aliada às vitórias de diversos grupos de pressão (sindicatos, associações de classe, grupos empresariais), que incrustou no texto da Carta Magna os privilégios e vantagens competitivas de que gozam trabalhadores e determinados setores empresariais, sempre em detrimento, ressalte-se, dos consumidores.
Na contramão dos princípios defendidos por Mises, os constituintes preferiram fazer pela via legal o que caberia, em uma economia livre, ao mercado. No que concerne especificamente os trabalhadores, o artigo 7º é o que versa sobre seus “direitos sociais”. Ele assegura diversas garantias, como proteção contra “despedida arbitrária ou sem justa causa”8, seguro-desemprego9, piso salarial “proporcional à extensão e à complexidade do trabalho”10, décimo terceiro salário “com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria”11, etc. Quanto ao salário mínimo do trabalhador, a lei determina que ele deve ser “capaz de atender às suas necessidades vitais e às de sua família com moradia, alimentação, educação, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”12.
Do artigo 7º, entretanto, nenhum item consegue superar, em ridículo e comicidade, os incisos XXVII, que garante ao trabalhador “proteção em face da automação, na forma da lei”, e XXXII, que proíbe “distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos”. A comicidade, porém, existe apenas por não terem efeitos práticos os artigos. Pois se o tivessem, é provável que trouxessem impactos desastrosos ao desenvolvimento do país e à renda do próprio trabalhador.
São decerto indiscutíveis, como bem disse Roberto Campos, as boas intenções dos constituintes que fixaram como “direitos sociais” todos os benefícios acima citados. No entanto, não são as intenções o que se deve questionar, mas os efeitos nocivos e a aplicabilidade prática de normas salariais que não consideram a produtividade do trabalhador como uma variável válida. Nos termos de Mises:
“A businessman cannot pay a worker more than the amount added by the work of this employee to the value of the product. He cannot pay him more than the customers are prepared to pay for the additional work of this individual worker. If he pays him more, he will not recover his expenditures from the customers. He incurs losses and (…) a businessman who suffers losses must change his methods of business, or go bankrupt”.13
Ou seja, como bem disse o próprio Mises, os salários são determinados pela “produtividade marginal do trabalho”. Não é por acaso, portanto, que o operador de uma colheitadeira ganha muito mais que um cortador de cana bóia-fria, assim como o supervisor de uma linha de montagem robotizada tem uma renda muito superior à de um metalúrgico pouco capacitado. A chave, então, para aumentar o salário de um trabalhador não passa pela severidade da legislação ou pelo rigor da fiscalização estatal, mas simplesmente pelo aumento de sua produtividade, pelo acréscimo do valor que ele, o trabalhador, adiciona à produção. Foi esta a fórmula que transformou o perfil da agricultura brasileira, colocando-a, graças às inovações tecnológicas e aos ganhos de produtividade trazidos pelo agronegócio, entre as mais competitivas do mundo.
Assim sendo, os benefícios garantidos aos trabalhadores pelo texto constitucional terminam por prejudicar a todos os agentes do sistema econômico, à exceção do trabalhador empregado. No entanto, mesmo esta exceção desaparece quando se considera que o trabalhador é, ele próprio, como bem lembra Mises, também um consumidor. Ele, como todos os demais consumidores, também sofrerá as conseqüências do aumento nos preços dos produtos em decorrência da necessidade de financiamento de todos esses benefícios. Boa parte dos empresários se verá impedida de contratar e, aqueles que o fizerem, contratarão apenas uma parcela do número de trabalhadores que contratariam caso não fossem obrigados a arcar com tantas obrigações trabalhistas.
São óbvios, então, os malefícios que uma legislação como a nossa trazem aos desempregados, talvez os maiores prejudicados. As tais normas que garantem os “direitos sociais” dos empregados terminam por funcionar como um impeditivo concreto à contratação. E em algumas situações, terminam por gerar o efeito oposto ao pretendido, como é o caso das restrições legais à demissão que, na verdade, restringem apenas as contratações.
O motivo de todas estas inconveniências está diretamente relacionado ao desprezo dos constituintes pelos mecanismos de mercado. Poderiam, seguindo os conselhos de Mises, ter flexibilizado as relações de trabalho, delegando maior poder aos termos dos contratos firmados entre cidadãos livres. Devolveria-se, assim, o poder de fixação dos níveis salariais às mãos dos consumidores. Aos empresários, como em qualquer economia de mercado, caberia apenas a tarefa de captar, interpretar e pôr em prática as ordens dos consumidores.
Outros artigos constitucionais também trouxeram conseqüências nefastas à economia e ao emprego brasileiros, em virtude da mesma aversão ao mercado. Os dispositivos constitucionais que tratam do investimento estrangeiro no país, por exemplo, impediram consideráveis ganhos de produtividade para as empresas e acréscimos na renda para o trabalhador. Isto ocorreu porque, como enfatiza Mises, tais resultados só podem vir a ocorrer se houver investimento – doméstico ou externo. A capacidade brasileira de investimento interno, no entanto, manteve-se nas últimas décadas – e mantém-se ainda nos dias de hoje, diga-se de passagem – bastante comprometida em virtude do baixo nível de poupança interna. Restaria, como saída, a poupança externa, que poderia desempenhar, se dadas as condições necessárias para tal, o mesmo papel que teve no desenvolvimento de inúmeros outros países. Infelizmente, não foi o que aconteceu, em virtude dos motivos que aponta Mises, nesta descrição que se encaixa perfeitamente à realidade da economia do país, principalmente nos idos de 1988:
[…] in many other countries the problem is very critical. There is no—or not sufficient—domestic saving, and capital investment from abroad is seriously reduced by the fact that these countries are openly hostile to foreign investment. How can they talk about industrialization, about the necessity to develop new plants, to improve conditions, to raise the standard of living, to have higher wage rates, better means of transportation, if they are doing things that will have precisely the opposite effect? What their policies actually accomplish is to prevent or to slow down the accumulation of domestic capital and to put obstacles in the way of foreign capital14.
Esta era – e continua a ser – a grande dificuldade do Brasil em acelerar seu desenvolvimento econômico. Ao mesmo tempo em que carecíamos de poupança interna, éramos hostis à poupança externa. Ressalte-se, porém, que ao longo da década de 1990 diminuíram os entraves e a hostilidade do Estado brasileiro em relação aos capitais estrangeiros graças algumas reformas liberalizantes que modificaram, inclusive, diversos artigos da Constituição Federal, por meio de emendas.
Uma dessas emendas constitucionais em particular, a que suprimiu do texto constitucional o artigo 171, em 1995, foi de vital importância para a reversão da imagem externa do Brasil e diminuição do risco inerente às operações estrangeiras no país. Este artigo era a síntese da má-vontade e da xenofobia dos constituintes em relação ao capital estrangeiro. Ele determinava, em seu parágrafo primeiro, que era permitido à lei conceder à empresa brasileira de capital nacional “proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis para o desenvolvimento do País”. E mais: estabelecia também que, sempre que um setor industrial fosse considerado “imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional”, poder-se-ia exigir, como pré-requisito necessário à exploração daquela atividade, que o controle da empresa estivesse em mãos nacionais. Era possível, também, estabelecer percentuais mínimos para a participação de “pessoas domiciliadas e residentes no país ou entidades de direito público interno” no capital da empresa. Por fim, o parágrafo segundo determinava que “na aquisição de bens e serviços, o poder público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional”. Se ainda houvesse qualquer esperança de sensatez econômica por parte dos nossos constituintes, esvaiu-se com esse artigo.
Em resumo, o que o artigo 171 da Constituição estabelecia era um tratamento de segunda classe ao capital estrangeiro; determinava que investidores externos estavam automaticamente excluídos de atividades que concernissem setores especiais aos olhos da burocracia. Sob este argumento, então, proibiram-se contratos de risco no setor petrolífero, foram expulsas companhias estrangeiras que se dedicavam à pesquisa mineral e abriu-se espaço para o estabelecimento de um sistema de proteção à empresa dita “nacional”. Tudo isso em prejuízo não apenas do investimento externo, mas principalmente dos trabalhadores e consumidores brasileiros, uma vez que o capital estrangeiro daqui afugentado certamente haveria de encontrar uma guarida mais hospitaleira e lá criar empregos e prosperidade, ao passo que os consumidores brasileiros continuariam a fazer parte de um sistema econômico não-concorrencial e cada vez mais distante do pleno emprego.
A Verdadeira “defesa do consumidor” e a livre-concorrência
Provavelmente o mais irônico de todo o anacronismo resultante da Assembléia Constituinte é que a pavimentação do inferno veio sempre acompanhada da promessa do céu. A “defesa do consumidor” era um dos princípios gerais escolhidos pelos constituintes para nortear a atividade econômica no país. Tal defesa, no entanto, estava alicerçada em paradigmas bem diferentes dos propostos por Mises, para quem:
(…) all the measures of interventionism by the government are directed toward restricting the supremacy of consumers. The government wants to arrogate to itself the power, or at least a part of the power, which, in the free market economy, is in the hands of the consumers15.
Parte-se, aqui, do pressuposto básico de que os consumidores são “os verdadeiros chefes” e que os empresários, em uma economia de mercado, mantêm-se por meio da satisfação dos anseios dos consumidores. É a eles, aos consumidores, que obedecem os empresários, quando participantes de um sistema de livre-concorrência. Portanto, quando o Estado interfere na maneira através da qual os empresários servem aos consumidores, quando o Estado busca modificar a forma de atuar dos empresários em um sistema de livre-concorrência, ele age de encontro à “supremacia dos consumidores”.
Para os constituintes, entretanto, os consumidores eram apenas mais uma categoria que precisava ser protegida pelo Estado dos “abusos do poder econômico”. Não foi outro o pensamento que também criou, para os trabalhadores empregados e empresas nacionais, condições especiais e proteção contra agentes econômicos considerados potencialmente danosos.
Assim sendo, a Constituição escolheu o caminho da coerção legal para “defender” os consumidores, por meio de recursos como o parágrafo 4º do artigo 173. Ele define que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. É este o item que deu as bases para a “modernização” da legislação antitruste brasileira, norteado os princípios que criaram a lei 8884/94. Foi esta a lei que, entre outras coisas, instituiu o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que instrumentalizou a ação legal contra a dominação de mercados e prejuízos à livre-concorrência.
Há, no entanto, um claro contraste entre a estratégia prescrita pela Constituição e adotada pelo CADE e aquela recomendada por Mises que, em diversas passagens de seu “As Seis Lições”, demonstra a falsidade da argumentação que considera que outros agentes econômicos são mais fortes que o consumidor. Ele lembra que, em sistema econômico de livre-concorrência, é o consumidor sempre o mais forte, o mais livre. Em uma dessas passagens, diz:
People believe that there are in the market economy bosses who are independent of the good will and support of other people. They believe that the captains of industry, the businessmen, the entrepreneurs are the real bosses in the economic system. But this is an illusion. The real bosses in the economic system are the consumers. And if the consumers stop patronizing a branch of business, these businessmen are either forced to abandon their eminent position in the economic system or to adjust their actions to the wishes and to the orders of the consumers16.
Se conhecessem e respeitassem os ensinamentos do economista austríaco, é provável que os constituintes de 1988 tivessem optado por um caminho diverso, mais parecido aquele aconselhado por Mário Henrique Simonsen, quando da publicação desta mesma lei que criava o CADE. Segundo Simonsen, “o grande antídoto contra os abusos de preços não são mais as leis antitrustes, mas a globalização dos mercados. Um fornecedor, ainda que domine 100% do mercado de um país, não tem como impor preços abusivos se os compradores dispuserem da alternativa de importarem produtos similares com tarifas aduaneiras reduzidas”17.
Em outras palavras, melhor que criar mais estruturas burocráticas e emaranhados legais para impedir abusos que dificultem a livre-concorrência seria abrir o mercado brasileiro à concorrência externa, eliminando os entraves à importação que tiram a competitividade dos produtos estrangeiros. Não é por acaso que ainda nos dias de hoje legislações antitrustes sejam um grande empecilho à criação de áreas de livre comércio como a ALCA.
No entanto, entre sacrificar os consumidores – tão carentes de representações formais quanto os pagadores de impostos – e satisfazer os bem representados e barulhentos grupos de pressão empresarial, os constituintes ficaram com a segunda opção.
Conclusão
O saudoso Roberto Campos disse uma vez que o texto aprovado pela Assembléia Constituinte de 1988 era “a culminância de uma década de erros. E talvez outra década fosse perdida para corrigi-los”18. E eis que se passou mais de uma década e meia, e ainda estamos longe de neutralizar todos os males originados ou amplificados pelos constituintes. É lícito hoje dizer que os continuados e veementes alertas de economistas liberais como Mário Henrique Simonsen e o próprio Campos estavam mais do que certos. O tempo provou que o anacronismo do texto não trouxe nem pode trazer nada além dos malogros do passado.
Os erros colossais dos constituintes, além de inchar as atribuições e tamanho da burocracia estatal brasileira, recomendando e determinando intervenções abundantes no sistema econômico ao mesmo tempo em que solapava por completo a liberdade individual em diversos âmbitos da esfera privada, também desviaram o Estado de sua atribuição natural, a única de todas que, para Mises, constitui sua “função legítima”: a “produção da segurança”.
Deste modo, não seria de todo despropositado atribuir também à Constituição de 1988 uma parcela considerável da responsabilidade pelo crescimento do banditismo e do crime organizado que têm feito os cidadãos de bem deste país – e em particular os do Rio de Janeiro – sentirem medo de desempenharem as mais cotidianas tarefas. Se algo a mais que déficits, atraso e demagogia ela nos legou, foram os Fernandinhos Beira-Mar e Elias Malucos da vida.
A reversão deste quadro e dos erros da Carta Magna passa também pelos ensinamentos de Mises. Ele já alertava, 30 anos antes da promulgação da Constituição de 1988, para o poder de que idéias, boas e más, dispunham. Dizia ele:
Everything that happens in the social world in our time is the result of ideas. Good things and bad things. What is needed is to fight bad ideas. We must fight all that we dislike in public life. We must substitute better ideas for wrong ideas. We must refute the doctrines that promote union violence. We must oppose the confiscation of property, the control of prices, inflation, and all those evils from which we suffer19.
De fato, o caso da Constituinte de 1988 é uma prova cabal do poder das idéias. Neste caso em particular, das más idéias. É um caso que mostra os prejuízos da opção pelo obscurantismo, pelo voluntarismo e pela demagogia; enfim, a opção pelo preconceito em relação a qualquer limitação científica e racional à vontade imediata e às aspirações de bem-estar da sociedade.
O problema não foi à época, como também não é agora, a falta de idéias. Boas idéias existem, há muito tempo. A obra de Mises é apenas uma das boas fontes. O que falta ao Brasil, no entanto, são mais pregadores e mais seguidores das boas idéias. Não é o credo liberal que está em crise, mas seus crentes, reduzidos em número e carentes de força política. É preciso, como recomenda Mises, substituir as idéias erradas por melhores. O que não podemos, é continuar a exercitar e estimular a incapacidade tipicamente brasileira de aprender com experiências passadas e escolher os bons pregadores.
Tivéssemos à época escutado os ensinamentos de um Mises, de um Hayek, de um Friedman, de um Bástiat, ou mesmo um Roberto Campos, um Simonsen, um Merquior ou um Meira Penna, certamente estaríamos em outra situação que não esta de inflação de emendas constitucionais a tentar remediar vícios de origem, injetando doses homeopáticas de racionalidade em um doente condenado a conviver com o mal crônico-degenerativo da demagogia populista.
Fonte:
Instituto Liberal