Postado originalmente em 27/12/2004 17:35:19
por Acauan
"Chegamos até aqui por nossos próprios meios.
Você não nos ajudou em nada.
Só lhe peço uma coisa,
Não atrapalhe."
Rev. Frank Scott (Gene Hackman), em O Destino do Poseidon
Quase todo mundo que se lembra do filme “O Destino do Poseidon” (The Poseidon Adventure, 1972, direção de Ronald Neame) o cita apenas como a produção mais célebre do gênero que ficou conhecido como disasters movies, gênero este que se alastraria por toda a década de 1970 e foi inaugurado pelo filme "Aeroporto", que teve sequências em 1975, 1977 e 1980, além de outros títulos famosos como "Inferno na Torre" e "Terremoto".
Os disasters movies, em geral, tinham roteiros pobres e personagens sem graça, já que a grande estrela do filme era sempre alguma catástrofe, produzida pelo Estado da Arte da tecnologia de efeitos especiais da época.
Em o Destino do Poseidon, a catástrofe e os efeitos especiais estão lá, já que a história do filme se passa em um grande transatlântico que é emborcado por uma onda gigante na noite de Reveillon.
Os sobreviventes têm de escolher entre contar com a salvação vinda de fora ou embrenhar-se pela embarcação virada de ponta cabeça, em busca de um meio de salvarem-se a si próprios.
Quem viu um pano de fundo teológico no roteiro acertou.
O personagem central da história é o reverendo Frank Scott, interpretado por Gene Hackman, um religioso em crise de fé, que no começo do filme usa a parábola dos talentos (Mateus 25) para ilustrar sua idéia de que Deus aprecia aqueles que lutam contra a adversidade mais do que aqueles que se acomodam esperando por suas bênçãos.
O que o reverendo Scott não diz explicitamente, mas fica claro ao longo do filme, é que ele é assolado pela dúvida sobre de que adianta apelar a um Deus que, ao que tudo indica, quer mais é que você se vire sozinho.
Quando o tsunami deixa o grande navio de pernas pro ar, seguem-se as cenas típicas de pessoas caindo do chão para o teto, louças e vidros se estilhaçando, água entrando pelas escotilhas e passageiros desesperados sem saber o que fazer.
Por falar nisto, há críticos que dizem que o gênero Disaster Movie era justamente a metáfora da falta de rumos e clamor por autoridade e ordem em que se encontraria a America durante e logo após o fiasco da aventura no Vietnã. Acho meio forçado, mas pode até ser.
Em meio ao caos, o personagem de Hackman cresce, manifesta sua liderança sobre o grupo e convence nove pessoas a segui-lo numa ousada peregrinação até o fundo do navio, de onde acreditava teriam mais chances de escapar vivos.
Os demais passageiros e tripulantes preferem não se arriscar e se recusam a seguir o reverendo.
Transformado em uma espécie de Moisés aquático, Frank Scott guia seu povo rumo à Terra Prometida, enfrentando todos os obstáculos que um navio semi-afundado e um filme de catástrofe podem oferecer em mais ou menos duas horas.
A cada etapa vencida o reverendo parece lutar não apenas contra a exaustão física, mas também para conservar o que resta de sua fé, contando que em algum momento Deus o recompensará pelo seu esforço em tentar sobreviver.
Ledo engano.
Como Moisés, ao reverendo Frank Scott seria concedido ver a Terra Prometida além do Jordão, mas não que cruzasse o rio.
Faltando pouco para atingir seu objetivo, o grupo depara-se com um grande vazamento de vapor impedindo sua passagem.
É neste momento que a esperança do reverendo de contar com alguma ajuda divina se esvai. Ele se lança sobre o abismo que o separa da tubulação de vapor, se pendura no volante da válvula e enquanto a fecha, com suas últimas forças, diz as palavras citadas na abertura deste texto:
"Chegamos até aqui por nossos próprios meios.
Você não nos ajudou em nada.
Só lhe peço uma coisa,
Não atrapalhe."
Depois disto, esgotado, Frank Scott solta-se do volante e cai para a morte.
Os remanescentes do grupo conseguem chegar ao ponto almejado, onde são resgatados e ficam sabendo que são os únicos sobreviventes.
Como pregava o reverendo, só aqueles que lutaram pela própria salvação a alcançaram, com a irônica exceção dele próprio, que os guiou e liderou na luta.
Não que o filme tivesse esta pretensão, mas termina por ser uma alegoria da condição humana.