[center]A obra-prima involuntária[/center]
30.10.2005 | Saiu uma obra-prima de Jorge Amado. Póstuma, foi publicada agora, quatro anos depois de sua morte. Conta a história do tempo em que ele, cardíaco, meio cego e deprimido, não conseguia mais escrever, a não ser pela meia dúzia de dedicatórias lacônicas que, numa trégua da doença, rabiscou no papel em branco em garranchos ilegíveis.
Está na página 79 de “Vacina de Sapo e outras histórias”, de Zélia Gattai. A viúva do escritor conta ali como foi a década em que o marido octogenário resvalou lentamente para dentro de si mesmo. Desde o dia em que atendeu o telefonema de um jornalista baiano, ligando para conferir com a família a notícia de que ele estava morto. “Não morri, não, meu filho, estou bem vivo e comendo melão”, disse Jorge Amado do outro lado da linha, em Paris.
Era o primeiro passo na ladeira. Dali para baixo, sua existência foi um mergulho sem fundo num roteiro de milagres frustrados, enquanto médicos, babalorixás e pajés foram tomando conta da vida do escritor que antes tomava conta de vidas mais ou menos fictícias. Doente, Jorge Amado passou de autor a personagem de seus personagens.
Foi essa procissão que levou à casa do Rio Vermelho o cacique Raoni, o chefe caiapó, dono do botoque mais vistoso do planeta. Ele tinha sido levado à fama anos antes pela emboscada em que morreram 30 invasores de sua aldeia. A guerra no fim do mundo acabou cantada em versos do compositor Zeh Rocha. “Bate tambor tupi, cabeça de branco peão rola pelo chão”. “Tupi” rimava com o último verso: “Raoni, Raoni, Raoni”.
Dali ao estrelato internacional foi um pulo. O documentarista Jean Pierre Dutilleux consagrou-o num filme – chamado “Raoni”, evidentemente – em que a voz do narrador era de Marlon Brando. O roqueiro Sting levou-o para uma turnê na Europa, onde arrecadou US$ 1,5 milhão para a causa caiapó. Raoni tinha a força. Fama por fama, no encontro do cacique com o escritor cada um tinha a sua.
Mas, como nem todo mundo é capaz de chegar à página 79 de um livro sobre morte e doença, mesmo quando a morte é de um homem famoso, a visita de Raoni a Jorge Amado será narrada daqui para a frente em todos os seus maravilhosos detalhes. De preferência, nas palavras de Zélia Gattai, a partir do momento em que ela viu o caiapó se aboletar ao lado de seu marido e puxar uma interminável conversa paralela, em que ele falava sem parar e o anfitrião ouvia calado, de olhos fechados e cabeça baixa.
Era uma história de caçada: “Então, o caititu correu pro mato... eu corri atrás do caititu, mas eu não vi para onde o caititu foi...” Etc. Etc. Etc. E tal. Mas “o pobre animal” não morria. Ela tratou de interromper o monólogo, alegando que Jorge Amado precisava de repouso. Raoni insistiu: “Se ele quer escrever esta história, ele tem que ouvir ela inteira”. E mal havia chegado à metade.
O jeito foi avisar que o escritor estava doente. O que despertou no cacique o terapeuta de celebridades desenganadas, que nos anos 80 transformou em solenidade pública uma pajelança no Parque da Cidade, para livrar da cirrose terminal o ambientalista Augusto Ruschi. O paciente tinha o fígado devastado por incontáveis surtos de malária e muitos anos de bebida.
Raoni diagnosticou um caso agudo de envenenamento por sapos da Amazônia. Tratou Ruschi com rezas e baforadas de ervas. Deu no que deu. Mas o cacique estava pronto para outra. Anunciou que, se era doença, daria um jeito no escritor ali mesmo. E foram os três para o jardim. “Lá no terraço”, conta Zélia Gattai, “o cacique pediu-me que tirasse a camisa de Jorge. A camisa foi retirada. Pediu-me uma bacia com água. A bacia veio. De uma sacola ele tirou uns canudos e, na maior rapidez, encaixando um no outro, armou um cachimbo de tubo longuíssimo, colocou o fumo e acendeu”.
Raoni fez tudo como manda o figurino. Tragou, soprou fumaça no nariz de Jorge Amado, cuspiu na bacia – “e nada!” O escritor não abria a boca. Esgotados os recursos da medicina tradicional, o curandeiro viu pela primeira vez um calombo latejando no peito no doente. E não teve dúvidas: “Olha! Descobri! Ele tem um tumor...” Queria arrancá-lo “com uma chupada”.
“Não é um tumor, não, meu amigo, isso é um marca-passo”, disse Zélia Gattai. Raoni não aceitou o palpite de uma leiga: “Isso é um tumor e vou arrancar ele fora”. E estava pronto para a cirurgia quando aconteceu o milagre. Jorge Amado levantou a cabeça, abriu os olhos e falou pela primeira vez em muitos dias: “Zélia, leve esse índio daqui”. Raoni considerou a pajelança um sucesso. Cobrou 50 reais pelo pedido. Pensando bem, saiu barato.
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Lulose infecta território Ianomâmi
Re.: Lulose infecta território Ianomâmi
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