Sobre golfinhos e asnos

[Res Cogitans]

Sobre golfinhos e asnos


SIDARTA RIBEIRO



A inteligência dos cetáceos está sendo questionada com base em teorias ultrapassadas sobre a função da glia. A ciência não está a salvo de erros

Muitas vezes a teoria elaborada para explicar os fatos não faz sentido. Em outras são os próprios fatos que deixam de ser corretamente observados, o que resulta em asneira da grossa. Ainda assim a ciência tolera o dissenso. Seja por opção epistemológica, como preconizou o anarco-filósofo Paul Feyerabend, seja por inevitável proliferação de vozes díspares, pratica-se na ciência uma seleção de teorias que, mesmo ferrenha, raramente elimina por completo os perdedores. Para Feyerabend, a imensidão da nossa ignorância pede que se preservem para a posteridade todas as teorias, pois o erro de hoje pode ser verdade amanhã.

No mundo das idéias ninguém está a salvo do erro. O grande Aristóteles acreditava que a função do cérebro era resfriar o sangue. Um caso mais recente é o argumento de que os cetáceos, por terem em seu enorme cérebro alta proporção de células gliais, teriam baixa capacidade intelectual (Manger, Biol Rev Camb Philos Soc págs. 1-46, 2006). Segundo Manger, o excesso de glia seria uma adaptação termogênica à vida em água fria e redundaria em um aumento cerebral desacoplado da inteligência.

Qualquer pessoa bem informada sabe que os cetáceos são muito inteligentes. Entre várias aptidões, a mais sofisticada é o sistema de vocalização que lhes permite nomear cada indivíduo do grupo de forma única (Janik, Science, vol. 289, págs. 1355-57, 2000). Livres na Natureza, cetáceos se comunicam para realizar uma imensa gama de interações sociais, inclusive trabalho coletivo de pesca de cardumes (Pivari & Rosso, J Acoust Soc Am, vol. 118, págs. 2725-31, 2005). Mesmo assim a ciência publica e discute seriamente a teoria dos golfinhos burros, um curioso retorno, com sinal invertido, à teoria aristotélica do cérebro.

A miopia factual de Manger se apóia na teoria tradicional de que as células gliais, por não transmitirem impulsos elétricos, são irrelevantes para o comportamento do organismo. No entanto, vem crescendo a noção de que essas células fazem mais do que apenas servir de andaime físico e nutricional para a rede neuronal. Secreção de neuromoduladores (Panatier et al., Cell, vol. 125, pág. 775-84, 2006), neurogênese (Doetsch et al., Cell vol. 97, págs. 703-16, 1999) e controle da forma sináptica (Lippman & Dunaevsky, J Neurobiol, vol. 64, págs. 47-57, 2005) são funções parcialmente gliais. Logo, a cognição também é. Examinados por uma visão moderna da glia, os fatos neuroanatômicos elencados por Manger sugerem que a notória inteligência dos cetáceos na verdade reflete a elevada proporção glial do cérebro deles, que teria co-evoluído com propriedades termogenéticas de antepassados comuns da ordem Cetacea.

O episódio ilustra com nitidez uma proposição do filósofo Karl Popper, mestre e rival de Feyerabend: não existem fatos observáveis sem uma teoria a priori que permita apreendê-los. Armado de uma teoria ultrapassada sobre a glia, Manger zurrou que os golfinhos são burros. Se falassem a língua dos homens, eles certamente discordariam sobre quem é o asno - com todo o respeito que esses eqüinos merecem.


SIDARTA RIBEIRO é PH.D. em neurobiologia pela Universidade Rockefeller e pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN). Fez pós-doutorado na Universidade Duke (2000-2005) investigando as bases moleculares e celulares do papel do sono e
dos sonhos no aprendizado.

[Ateu Tímido]

Pensei que fosse mais um tópico sobre glofinhos...

[Dante, the Wicked]

Muito bom o texto!

[Schultz]

Bom artigo. Esse Sidarta Ribeiro escreve para a Viver Mente & Cérebro, não? Apesar de não lê-la a muito tempo, acho que me recordo dele.