Quadrilogia Tupi

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Acauan
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Quadrilogia Tupi

Mensagem por Acauan »

Quadrilogia Tupi
Compilado originalmente em 28/9/2005 14:07:00
Por Acauan

I - O Gavião que Caminha

Postado originalmente em 3/1/2005 17:10:50

Acauan criança caminha pela trilha na mata, aberta por seus ancestrais.

Nascido e criado na cidade dos brancos, o pequeno Tupi se maravilha com a beleza dos imponentes bambuzais que margeiam a trilha, plantados por seu pai, abaetê e cacique.

À margem do riacho, Acauan avista três gaviões pousados no topo de um bambuzal.

Acauan olha os gaviões.

Os gaviões, altivos, ignoram Acauan.

Acauan não sabe por quanto tempo ficou olhando os gaviões.
Nem sabe que os caminhos da vida o levarão para muito além da trilha dos Tupis.

Mas de uma coisa Acauan sabe.

Os gaviões o acompanhariam por toda a vida.

Acauan caminha.



II - Elegia em prosa a um cacique
Postado originalmente em 30/7/2004 22:17:14

Quando eu tinha dez anos, visitei as terras ancestrais de meu pai e de meu povo.

Não era a primeira vez. Na anterior eu havia conhecido o gavião que me dera nome e título, mas esta é uma outra história.

Esta começa a beira de um rio caudaloso, de forte correnteza, onde um menino montado num cavalo recebe as instruções de dois membros do clã sobre como atravessá-lo.
Alertam-me que a correnteza provoca tonturas e me orientam para que eu fixe o ponto de saída na outra margem e conduza firmemente o animal sempre naquela direção.

Cheio de temor e empolgação iniciei a travessia, exultante ante a idéia de vencer tal desafio sozinho, mesmo acreditando que se caísse do cavalo certamente morreria afogado, dadas a profundidade e a correnteza do rio.

O tempo do percurso deve ter sido de pouco minutos, mas para mim pareceu infinitamente maior, tal era a tensão com que manobrava as rédeas, temendo cometer um erro potencialmente fatal.

Não sei quantos de vocês já passaram por experiência semelhante.
O burburinho do rio lhes enche os ouvidos de tal forma que não se consegue ouvir outra coisa, enquanto a correnteza produz a ilusão de que a margem de destino desliza móvel ante seus olhos, como a plataforma da estação passa diante dos que ocupam o vagão de um trem que parte.

Medo e vontade de vencer o desafio se alternavam em mim.

Quando cheguei exultante à outra margem, meus dois acompanhantes se limitaram a me olhar satisfeitos e dizer:

- Seu pai cruzava este rio a nado.

Depois daquele evento, notei que todas as vezes que me apresentavam a alguém, diziam não mais apenas este é Acauan, como sempre fizeram. Passaram a dizer este é Acauan, filho de ..., e diziam o nome de abaetê meu Pai.

Anos depois, passei a lembrar daquele dia com estranheza.
Como adultos responsáveis deixaram uma criança correr risco de vida naquela travessia?

Foi preciso mais algum tempo para que eu soubesse o que de fato ocorrera.
O cavalo que eu montava era habituado a cruzar o rio naquele ponto e o atravessaria com segurança, quer eu o conduzisse corretamente ou não.
Os dois acompanhantes se posicionaram em cada um dos meus lados, atentos a me socorrer ao primeiro pedido de socorro ou a se lançarem a água caso eu caísse.

Eu estava absolutamente seguro.

Sem saber, passara por um ritual de coragem, reservado aos filhos homens dos abaetês caciques.

Muito se havia perdido.
Nossa língua morreu.
Nossa identidade guerreira morreu.
Nossa cultura ancestral morreu.

Ou quase.

Algo sobreviveu.

A idéia de que o filho de um grande cacique devia ter sua coragem testada, para se fazer digno de ser quem era.

Naquele dia nasceu ACAUAN DOS TUPIS.

Honra e glória à memória de abaetê meu Pai. Valoroso guerreiro, cacique dos Tupis.



III - ABAETÊ
Postado originalmente em Janeiro 2003

No último rito anual que fiz com meus filhos na mata, quando rememoramos nossas tradições ancestrais, eu falei a eles sobre meu pai, falecido antes que nascessem.

Disse-lhes que ele foi um valoroso guerreiro, um grande abaetê (homem honrado) e um sábio cacique.

Meu filho mais velho, de oito anos, ouviu a história com atenção enquanto eu notava que a tristeza tomava o seu semblante.

- O que foi, meu filho? Perguntei.

- Por que todo mundo tem que morrer? Disse ele, me dando por resposta a mais solene das perguntas.

O olhar do curumim buscou os meus olhos, certo de que no pai encontraria todas as respostas. Naquele momento, eu não poderia falhar.

- A natureza é feita de tempos filho. Disse ao curumim.

- Como assim?

- O tempo de meu pai é passado, um dia será passado o meu e ao seu tempo sucederá o do seu filho. Respondi

Minha explicação não tirara de seus olhos a expressão triste. Então prossegui.

- Meu pai vive em meu coração. Agora que lhe falei sobre ele, um dia, meu pai e eu viveremos no teu. Fale de nós ao teu filho, e um dia, nós três, seu avô, eu e você, viveremos no coração dele.

Meu filho olhou para mim, seus olhos brilharam numa lágrima. Ele havia entendido.
O pequeno curumim um dia será um valoroso guerreiro, um grande abaetê e um sábio cacique.

E eu viverei no coração dele.



IV - A Alvorada de Um Guerreiro
Postado originalmente em Janeiro de 2004

Noite.
Caminho com meu filho por uma trilha na mata.
A certa altura o curumim se interessa por uma grande e velha árvore que avista trilha adentro, parcialmente oculta na escuridão.

- Vamos até lá? Pergunta ele.

- Por que não vai sozinho. Eu te espero aqui.

- Eu não. Responde o menino, surpreso com minha proposta.

- Por que não?

- É noite..., está escuro.., é longe.

- Então ande até o mais próximo que quiser da árvore e volte. Estarei aqui olhando.

Meu filho avançou trilha adentro até mais ou menos um terço da distância que nos separava da árvore e voltou. Olhou para mim, recebeu um sorriso de aprovação e retornamos.

Nas noites seguintes repetimos o feito, sendo que a cada vez ele avançava mais mata adentro, se aproximava um pouco mais de seu objetivo e voltava orgulhoso do novo trecho conquistado.

E então, na última noite ele caminhou sozinho até a velha árvore pela trilha escura e voltou, excitante por tem vencido o desafio ao qual se propôs.

Pouso minha mão no ombro dele e pergunto:

- Você antes tinha medo de caminhar até a árvore. Agora não tem mais. Por quê?

- Não sei...

Então eu lhe falei dos antigos Tupis e de como prezavam a coragem. E de um rio que cruzei a cavalo quando tinha a idade dele.
Nós, Índios.

Acauan Guajajara
ACAUAN DOS TUPIS, o gavião que caminha
Lutar com bravura, morrer com honra.

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Apocaliptica

Mensagem por Apocaliptica »

Lindas mensagens de Natal para mim que sou atéia. Chorei aqui e vi que minha filha está se aproximando também cada vez mais da árvore.
Um dia aprenderei eu a ir até a árvore sozinha. Será que consigo?

Obrigada, Acauan.

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Will
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Re.: Quadrilogia Tupi

Mensagem por Will »

Muito bom, mesmo... Também me peguei me emocionado!!! :emoticon13:
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Rennan
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Mensagem por Rennan »

Linda mensagem Acauan.

Parabéns grande guerreiro!!!

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Anna
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Mensagem por Anna »

Crescer e vencer os obstaculos pessoais sempre eh dificil. Penso que eh eternamente dificil. Adoro a forma como os ritos ajudam marcando fases, reunindo forca e ensinamento,marcando inicio e fim de estagios, ritos de passagem. As passagens. Passagens que nao temos como evitar e se deixamos de seguir caminhos que apontam perdemos o significado do grande misterio, perdendo a passagem.
Caminhar na beleza.
Cérebro é uma coisa maravilhosa. Todos deveriam ter um.

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Acauan
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Mensagem por Acauan »

Apocaliptica escreveu: Lindas mensagens de Natal para mim que sou atéia.


Mesmo assim, desejo um Feliz Natal a você e a todos do fórum.

Apocaliptica escreveu:Chorei aqui e vi que minha filha está se aproximando também cada vez mais da árvore.
Um dia aprenderei eu a ir até a árvore sozinha. Será que consigo?


Consegue.
Um passo de cada vez.
Nós, Índios.

Acauan Guajajara
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O ENCOSTO
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Mensagem por O ENCOSTO »

Ei Acauan, você ainda tem aquele texto sobre mulheres? Não lembro se era texto ou poema.

Poderia postar novamente?
O ENCOSTO


http://www.manualdochurrasco.com.br/
http://www.midiasemmascara.org/
Onde houver fé, levarei a dúvida.

"Ora, a fé é o firme fundamento das coisas infundadas, e a certeza da existência das coisas que não existem.”

Trancado