The Who ataca a religião em seu
novo disco. Mas é difícil acreditar
na pregação de Pete Townshend

Daltrey e Townshend: 24 anos sem lançar um disco de inéditas
Nascido em 1964, o grupo inglês The Who é o progenitor de todos os "desajustados" que empunharam um microfone ou uma guitarra nos últimos quarenta anos. Nem sorridentes como os beatles, nem manhosos como os rolling stones, seus integrantes eram agressivos e esquisitões. Faziam um som barulhento e inventaram rituais roqueiros como a quebra de instrumentos no fim do show. Quando berravam a plenos pulmões "espero morrer antes de ficar velho", sua rebeldia tinha um toque amargo. Esse toque se devia sobretudo ao compositor Pete Townshend, letrista acima da média e dono, desde cedo, de uma visão de mundo desencantada. Pois bem. Passados 24 anos desde o lançamento do seu último disco de estúdio, o Who está de volta com o CD Endless Wire. O grupo se resume agora ao cantor Roger Daltrey e ao próprio Townshend. A religião é o tema central do disco e o veredicto é negativo: igrejas e livros sagrados são mais fonte de discórdia do que de esperança. Uma idéia provocadora, como seria de esperar. O problema é que o tempo não foi gentil com o Who. A música envelheceu. E Townshend tornou-se muito menos capaz de despertar simpatia do que nos primórdios da banda.
A rachadura na imagem de Townshend decorre de sua prisão em 2004 por acessar sites de pedofilia na internet. O cantor afirmou que os acessava para "fazer uma pesquisa" sobre a exploração sexual de crianças e que o interesse nesse tema decorria do fato de ter sofrido abuso na infância. As desculpas nunca soaram totalmente satisfatórias. "Se queria pesquisar, por que não entrevistou crianças que foram vítimas dessa monstruosidade em vez de olhar essas fotos humilhantes às escondidas?", perguntou o indignado guitarrista mexicano Carlos Santana. É uma boa pergunta. De repente, o velho Townshend, que fustigava toda espécie de hipocrisia, pareceu ter uma face desagradavelmente cínica – ou, mais que isso, perversa. Mas nunca se comprovou que ele tivesse envolvimento direto com os sites (pagando a eles, por exemplo), e o caso foi arquivado pela Justiça.
Endless Wire tem dezenove faixas. Nove são "independentes" e as demais se combinam numa "miniópera". O tema religioso aparece ao longo de todo o disco. Man in a Purple Dress, por exemplo, põe em questão a autoridade dos líderes religiosos, enquanto Two Thousand Years é uma espécie de oração indignada dirigida a Jesus. A segunda parte do CD se intitula Wire & Glass e teve origem numa novela que Townshend mantém em seu blog. Ela narra a história de uma banda formada pelo cristão Gabriel, o judeu Josh e a muçulmana Leila. O final é trágico: Josh mata Gabriel. Não é, obviamente, a primeira ópera-rock criada pelo The Who. Sob a tutela de Townshend, que sempre quis fazer obras ambiciosas amarradas por um "conceito", eles inventaram o gênero pomposo com Tommy, de 1968, e depois se exercitaram nele mais algumas vezes. Como acontece com a maioria das óperas tradicionais, as óperas-rock também costumam ter um ou dois bons momentos cercados por muita chatice. Em Wire & Glass o bom momento é We Got a Hit. O resto é resto.
O Who foi uma banda formada por músicos talentosos. Townshend é um bom guitarrista e Daltrey é um vocalista versátil, capaz de incorporar personagens quando canta. Mas os mais habilidosos eram o baterista Keith Moon e o baixista John Entwistle. Moon era tão selvagem diante da bateria quanto na vida pessoal. Acompanhá-lo era um desafio e ele nunca deixou herdeiros musicais. Morreu em 1978, depois de misturar remédios para depressão com bebidas alcoólicas. Entwistle ganhou o apelido de "boi" porque parecia ruminar em meio à pancadaria sonora do Who. Foi um inovador no uso do baixo elétrico. Morreu em 2002, numa festa com uísque, Viagra e garotas de programa. Entwistle compunha e nunca se submeteu totalmente à liderança de Townshend. Nas entrevistas de divulgação de Endless Wire, este último disse que a morte do baixista foi um "presente" – que o ajudou a centrar o foco nas composições para o novo disco do Who.
"George Bush é um bom presidente"
Pete Townshend, guitarrista e líder da banda The Who, falou a VEJA sobre música – e suas muitas polêmicas.
O senhor nega qualquer acusação de pedofilia. Como se explica, então, que a polícia inglesa tenha encontrado material pornográfico com crianças em seu computador?
Entrei em sites de pedofilia na internet apenas para fazer pesquisas. Fui inocentado pela Justiça inglesa. Sou contra qualquer tipo de abuso e me considero solidário a toda pessoa que tenha passado por essa experiência.
O senhor já declarou que era bissexual, mas voltou atrás. Por quê?
Tive experiências homossexuais na década de 70, mas não acho que isso faça de mim um típico homossexual. Sou casado, tenho filhos, gosto muito de mulheres. E detesto rótulos.
O Who é famoso pela relação belicosa entre seus integrantes. Como anda sua convivência com o vocalista Roger Daltrey?
Somos mais do que amigos. Somos irmãos. Mas prefiro que a gente mantenha uma certa distância. Aliás, nem faço questão de que ele apareça na minha casa.
O baixista John Entwistle morreu há quatro anos, depois de misturar cocaína, uísque e Viagra. Morrer de overdose faz parte do livro de regras do rock?
É uma estupidez morrer dessa maneira. Todo mundo tem o direito de morrer de modo digno, inclusive os roqueiros.
Muitas letras do Who são inspiradas em suas experiências pessoais. Alguma delas foi dolorosa no momento da composição?
Nunca usei minhas músicas para confessar pecados ou expressar minha dor. Minhas letras são pessoais, mas eu não quero que elas digam respeito só a mim. Considero um trabalho perfeito quando alguém se identifica com o que falo numa canção.
O senhor não cedeu a canção We Won’t Get Fooled Again (Não Seremos Enganados de Novo) para um documentário de Michael Moore, mas liberou três músicas para as séries de televisão CSI. Qual o critério que o senhor utiliza nesses casos?
Michael Moore queria usar minha música para ilustrar uma cena com o presidente americano George W. Bush. Bush se esforça para dar uma vida digna ao povo dos Estados Unidos, e não tenho o direito de dizer como ele deve dirigir o país. Quanto a CSI, eu gosto das séries e principalmente do dinheiro que recebi para liberar as músicas.