Uma agenda para o caos aéreo
A inanição tem sido a marca do governo em meio à crise da aviação. Loteamento de cargos, corrupção e incompetência atravancam uma reforma do sistema. O que é preciso fazer para recuperá-lo?
A primeira providência tomada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na noite da terça-feira 17, logo após o acidente com o vôo 3054, foi formar um gabinete de crise no Palácio do Planalto. Lula queria saber por que a reforma do aeroporto de Congonhas tinha dado prioridade a obras no terminal de passageiros – que custaram R$ 130 milhões –, e não à ampliação e melhoria das condições de segurança e operação das pistas de vôo – ao custo de R$ 40 milhões.
Na reunião, pediu a palavra o ministro da Defesa, Waldir Pires, a quem está subordinada a Infraero, estatal responsável pela administração dos aeroportos e pela reforma de Congonhas. Na crise dos controladores do tráfego aéreo, deflagrada pelo acidente com o vôo 1907 da Gol, há dez meses, uma das desculpas preferidas de Pires era não ter pleno conhecimento do que se passava no Comando da Aeronáutica, que, em tese, comandava os controladores e, também em tese, deveria responder a ele, Pires.
Desta vez, o ministro culpou a Agência Nacional da Aviação Civil (Anac) pelo atraso na reforma da pista de Congonhas. Segundo a Infraero, em setembro do ano passado Denise Abreu, diretora da Anac, encaminhou um ofício em que recomendava o adiamento da reforma da pista, programada para o fim de 2006. O motivo oficial da Anac para tal pedido foi a possibilidade de transtorno nos aeroportos brasileiros durante as férias escolares. Só a investigação dirá se o atraso na obra da pista de Congonhas foi determinante para a tragédia do vôo 3054. O jogo em que um órgão do governo transfere responsabilidades ao outro – tão bem jogado pelo ministro Waldir Pires na crise dos controladores e na reunião no Planalto – mostra a que ponto chegou a inépcia das autoridades para resolver o virtual colapso do sistema de aviação civil no Brasil, causador de mais de 300 mortes num intervalo inferior a um ano.
A troca de acusações entre Ministério da Defesa, Infraero e Anac, nos bastidores do governo, torna evidente também uma das principais causas dessa inépcia. Há hoje uma profusão de siglas na administração do setor aéreo do Brasil. O Comando da Aeronáutica cuida da segurança e do controle dos vôos; a Infraero, dos aeroportos; a Anac, da fiscalização do setor. O ministro da Defesa, em princípio, deveria ser o responsável pela coordenação. Mas seu ministério tem agido como um mero órgão decorativo. Ninguém se entende com ninguém e, na hora das crises, todos procuram se eximir de responsabilidades. Um dia depois do acidente com o vôo 3054, o Palácio do Planalto tentou escalar uma autoridade para dar declarações em nome do governo federal sobre o acidente com o avião da TAM. Ocorreu, então, um apagão. Recusaram a tarefa o ministro Waldir Pires, o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, e os presidentes da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, e da Anac, Milton Zuanazzi. Apenas depois de muita pressão do Planalto cada órgão indicou um representante de segundo escalão para uma entrevista coletiva. “No caso do acidente da Gol, quem dava as informações era o presidente da Infraero, em vez do comando da Aeronáutica, responsável por investigações de acidentes aéreos”, diz Respício Espírito Santo, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Estratégicos e de Políticas Públicas em Transporte Aéreo. “Agora que há um caso de acidente na área do aeroporto, ele não aparece para falar.”
O próprio presidente Lula preferiu se submeter a uma cirurgia para a retirada de um terçol a comparecer em Congonhas, numa atitude bem diferente da tomada por mandatários de outros países em circunstâncias igualmente trágicas. Nos Estados Unidos, em março deste ano, depois da chacina de 32 pessoas por um atirador louco no campus de uma universidade na Virgínia, o presidente George W. Bush fez um pronunciamento à nação pela televisão e, em menos de 24 horas, realizou uma visita ao local do massacre.
À descoordenação dos órgãos que administram o setor aéreo somam-se outros problemas graves, como a falta de profissionalismo e competência na gestão, distribuição de cargos técnicos de acordo com interesses políticos e corrupção. A criação da Anac, em março de 2006, em substituição ao Departamento de Aviação Civil (DAC), atendeu à necessidade de desmilitarizar a aviação, mas significou a perda de quadros técnicos importantes, que não foram repostos. “A transição de DAC para Anac foi muito malfeita”, diz Jorge Eduardo Leal Medeiros, professor do Departamento de Transportes da Escola Politécnica da USP. Entre os atuais cinco diretores da Anac, só um tem no currículo experiência e conhecimento técnico em aviação. O diretor-presidente, Milton Zuanazzi, é engenheiro mecânico, com pós-graduação em Sociologia e atuação na área de turismo. A principal credencial do diretor Leur Lomanto foi ter sido relator do projeto que criou a agência quando era deputado federal pelo PFL e, depois, pelo PMDB da Bahia. Foi para a Anac depois de não conseguir se reeleger. A diretora Denise Abreu fez carreira como consultora para assuntos jurídicos e chegou ao cargo graças a seus vínculos com o ex-ministro José Dirceu, a quem assessorou na Casa Civil da Presidência. “Quando a aviação era controlada pelos militares, ninguém questionava a capacidade deles”, diz o cientista político Sérgio Abranches. “Com a Anac, a história é outra. Fizeram o aparelhamento político do setor aéreo.”
Com a perda dos quadros técnicos, imiscuiram-se, além dos interesses políticos, os empresariais. Na visão de muitos especialistas em aviação, a Anac, além de funcionar mal como órgão de regulação do Estado, age para preservar os interesses do duopólio formado por TAM e Gol, hoje dominante no mercado. Uma reunião de integrantes da CPI do Apagão Aéreo da Câmara dos Deputados com o comando da Aeronáutica, da Infraero e da Anac, ocorrida há duas semanas, mostra como a Anac atua em defesa das conveniências comerciais das companhias aéreas que estão por trás do inchaço de Congonhas. Na reunião, os deputados propuseram a redução do número de pousos e decolagens de Congonhas, de 48 para 44 por hora. O aeroporto hoje recebe mais de 600 vôos por dia. O presidente da Infraero, José Carlos Pereira, se disse favorável à medida porque o aeroporto está operando no limite. Foi atropelado pela diretora da Anac, Denise Abreu, que considerou a proposta uma bobagem. Segundo ela, o melhor seria aumentar para 50 os pousos e as decolagens por hora. “As discussões foram ríspidas, e a reunião mostrou a total desorganização e desarticulação entre os órgãos do governo”, afirma o relator da CPI, deputado Marco Maia (PT-RS).
O aparelhamento político fez estragos também na Infraero, que comanda um orçamento de R$ 2,2 bilhões. Depois que o deputado Carlos Wilson (PT-PE) assumiu a presidência do órgão, em 2003, ocorreu um festival de nomeações políticas – inclusive para cargos técnicos. Coordenador nacional de combate às irregularidades trabalhistas na administração pública, o procurador do Trabalho Fábio Leal investiga a indicação de mais de 400 apadrinhados políticos para a Infraero. “Há excesso de cargos de confiança na empresa”, diz Leal. “E muitos estão ocupando postos que, por lei, deveriam ser preenchidos por meio de concursos públicos.”
No comando da Infraero, alguns são considerados intocáveis, como a diretora de Engenharia, Eleuza Therezinha Lores. Em conversas reservadas, o presidente da estatal já se queixou disso. A indicação de Eleuza para o cargo é atribuída ao ex-tesoureiro nacional do PT Delúbio Soares. Segundo técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU), Eleuza teve participação decisiva em várias licitações investigadas por suspeita de superfaturamento – entre elas, a reforma de Congonhas. Desde 2004, o Ministério Público e uma auditoria especial do TCU estão fazendo uma devassa no contrato assinado pela Infraero com o consórcio formado pelas empreiteiras Queiroz Galvão, OAS e Camargo Corrêa para a reforma. Segundo técnicos do TCU, a obra, orçada em R$ 170 milhões, poderia ter sido realizada pela metade do preço.
O TCU abriu também processos para investigar fortes indícios de superfaturamento em obras nos aeroportos de Viracopos, em Campinas, e Cumbica, em Guarulhos. Ao analisar o edital lançado pela Infraero em 2005 para expansão e reforma do Aeroporto Internacional de Guarulhos, com a construção de um terceiro terminal de passageiros, o TCU encontrou irregularidades e suspendeu a concorrência de R$ 1,8 bilhão. Segundo técnicos do tribunal, num dos itens do projeto o preço superfaturado era de R$ 100 milhões. “Boa parte das obras tem indícios de cobranças excessivas, e a falha mais freqüente é a alteração de projetos”, diz Cláudio Sarian, analista do TCU.
Diante dos problemas que se arrastam de forma crônica desde o acidente da Gol, o governo, imobilizado e confuso, age como se estivesse sob o efeito de palavras recentemente proferidas pelo presidente Lula: “Em determinados cargos, se a gente não pode, a gente deixa como está para ver como é que fica”. Como a crise do setor ganhou proporções trágicas, as soluções não são simples. Alguns nós, porém, podem ser desatados – se houver também disposição política para resolver os problemas. “Os problemas e as soluções são visíveis para quem trabalha na área”, afirma Adyr Silva, ex-presidente da Infraero e especialista em Aviação Civil da Universidade de Brasília. “Falta somente iniciativa do governo.” A seguir, algumas das medidas recomendadas por quem estuda o assunto.
REPROFISSIONALIZAR A GESTÃO
ESSa é a medida mais urgente. “O loteamento político de cargos é o câncer do setor”, diz Cláudio Candiota Filho, presidente da Associação Nacional em Defesa dos Direitos dos Passageiros do Transporte Aéreo. “O caos só será resolvido quando profissionais voltarem a administrar o setor aéreo no Brasil. Enquanto amadores continuarem no comando, gente vai continuar morrendo.” Os profissionais envolvidos devem ter treinamento especializado e experiência internacional no sistema aéreo. O sistema de controle aéreo da França poderia ser tomado como exemplo pelo Brasil. O próprio sistema se encarrega de formar profissionais, bem remunerados, para todos os níveis, desde o controlador de vôo até o engenheiro construtor das pistas.
PLANEJAR AS AÇÕES
O tráfego de passageiros no setor aéreo tem crescido anualmente 10% e pode triplicar de tamanho até 2025. Não há no Brasil um plano estratégico para lidar com esse crescimento. Na Europa, o setor trabalha com um plano de ação para os próximos 20 anos. Se não fizer o mesmo, o Brasil só assistirá ao aumento do caos.
REDUZIR A BUROCRACIA
O comando dividido gera ineficiência. Como há muitas leis sobre assuntos muito parecidos, há confusão nas atribuições de cada órgão. Cabe à Anac, segundo a lei, “conceder ou autorizar a exploração da infra-estrutura aeroportuária”. Mas essa também é uma atribuição da Infraero. Tornar mais simples a regulação do setor é um caminho para que companhias aéreas e aeroportos comecem a prestar um serviço melhor ao passageiro. É preciso investir também na coordenação dos órgãos. “O problema não é o modelo tripartite, mas a dificuldade das três instâncias em se comunicar”, afirma Cláudio Jorge Pinto Alves, professor titular do Departamento de Transporte Aéreo do ITA.
ABRIR O MERCADO PARA EMPRESAS ESTRANGEIRAS A liberação acirraria a competição no setor, e isso levaria ao aumento da oferta de vôos. O modelo atual, com o mercado dominado por poucas companhias brasileiras, é uma das razões para o caos recente. “Que as companhias aéreas sejam contra, a gente até entende, porque elas estão defendendo seus interesses. Mas por que o governo brasileiro, que deveria cuidar do interesse da sociedade, é contra?”, diz Respício Espírito Santo, da UFRJ. O discurso recorrente é que se trata de área estratégica. Respício considera esse argumento “falacioso”, pois o país não impôs a mesma exigência a setores como energia e telecomunicações.
FAZER PARCERIAS COM A INICIATIVA PRIVADA
Ao transferir à iniciativa privada a administração de aeroportos, o governo reduziria a atuação da Infraero, preparando-a para se tornar uma empresa mais ágil, com capital aberto e até a participação de investidores estrangeiros. Hoje, o brasileiro paga uma das tarifas de embarque internacional mais altas do mundo: US$ 36, ou R$ 67. O preço alto não garante um serviço decente. A privatização ou a implantação de parcerias público-privadas também tornaria possível investir na modernização do sistema de segurança dos aeroportos, como aconteceu com rodovias. Na Via Dutra, por exemplo, caiu o número de acidentes desde que a rodovia foi privatizada.
SER MAIS TRANSPARENTE
Dados relacionados à aviação no Brasil são sempre escondidos. Não são públicos os números de incidentes aéreos – os quase-acidentes – ocorridos no país. Nos EUA, as autoridades publicam todo ano dados minuciosos sobre incidentes. Por meio deles é possível saber se há problemas no controle de vôo, na estrutura de aeroportos ou nas empresas.
COORDENAR AS AÇÕES DO GOVERNO COM ESTADOS E MUNICÍPIOS
Para tornar os aeroportos de Cumbica e Viracopos opções no lugar de Congonhas, é preciso investir para levar transporte público de massa e rápido até lá, como trens ligando São Paulo a Guarulhos e Campinas. De Heathrow, em Londres, o passageiro pode pegar trem ou metrô para qualquer parte da Inglaterra. O mesmo ocorre em grandes aeroportos nos EUA e na França. Essa solução não é apenas federal. Requer coordenação com Estados, prefeituras e investidores privados.
Reportagem completa:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/E ... -2,00.html
Uma agenda para o caos aéreo
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Re.: Uma agenda para o caos aéreo
Fabi,
Perdi 2 amigos e vários conhecidos...tenho observado tuas postagens aqui, Fabi. Estou me sentindo exatamente como tu. Mas parece que aqui no RV as negativas são várias e piores das que algumas "Martas" são capazes de emitir...
Perdi 2 amigos e vários conhecidos...tenho observado tuas postagens aqui, Fabi. Estou me sentindo exatamente como tu. Mas parece que aqui no RV as negativas são várias e piores das que algumas "Martas" são capazes de emitir...
