Você pode não ter percebido, mas os filhotes da nanotecnologia já entraram em sua vida e prometem mudanças radicais
Cristiane Segatto
Ilustrações e infográficos:
Marco Vergotti
A Terra é 10 milhões de vezes maior que o homem
O homem é 10 milhões de vezes maior que a molécula
de DNA
UNIVERSO MOLECULAR
É nessa escala que acontece uma revolução invisível. Um nanômetro equivale a um bilionésimo do metro. No diâmetro de um fio de cabelo cabem 100 mil nanomáquinas, como as que estão transformando a Medicina, a agricultura e até o consumo
de luxo
Qual das duas definições abaixo mais combina com a imagem que você faz da nanotecnologia?
1) Ocupação de um bando de nerds amarrotados que ganha a vida inventando bizarrices incompatíveis com o mundo real.
2) Ciência que brinca de Lego com as moléculas e promete alterar para sempre nosso estilo de vida, no bom e no mau sentido.
Quem aposta na segunda opção está mais preparado para encarar as transformações que a nanociência (estudo da natureza na escala atômica) e a nanotecnologia (criação de técnicas e produtos com esse conhecimento) devem trazer nas próximas décadas. Governos e empresas de todo o mundo investem US$ 10 bilhões por ano no desenvolvimento dessa área. A mudança já começou, e promete enorme impacto social e econômico. É difícil passar um dia ao menos sem topar com produtos da nanotecnologia. Mas a escala em que ocorre essa revolução é tão inconcebível que a maioria das pessoas ainda não se deu conta dela. Um nanômetro equivale a um bilionésimo do metro. No diâmetro de um fio de cabelo cabem 100 mil desses nanômetros, o território no qual os cientistas pintam e bordam. Eles reorganizam as moléculas como quem encaixa bloquinhos de madeira e criam funções para materiais conhecidos.
Do laboratório para a cozinha
A tecnologia dos nanicos aumenta a eficiência dos eletrodomésticos.
Confira como ela funciona
-Extermínio: quando o ar circula dentro da geladeira, as nanopartículas penetram nas células dos microrganismos e eles morrem
-Estratégia: os refrigeradores Silver Nano, da marca Samsung, criam um ambiente protegido contra bactérias e fungos
-Vantagem: a qualidade dos alimentos é preservada com mais eficiência. As verduras, por e xemplo, ficam intactas por mais tempo. Os odores desagradáveis também são evitados
-Inovação: as paredes internas e as portas são revestidas de nanopartículas de prata
- Tempo de ação: a tecnologia acaba com 80% das bactérias em uma hora. Em 24 horas, o índice de eliminação é de 99,9%. O preço sugerido é de R$ 15 mil
'É um mundo diferente do nosso mundo clássico. As propriedades dos elementos químicos mudam na escala nano', explica o professor Henrique Toma, autor do livro O Mundo Nanométrico: a Dimensão do Novo Século. Um exemplo é o alumínio, metal que pode ser moldado facilmente em objetos na escala do metro. No mundo nano, porém, ele se torna explosivo, porque perde a película que o mantém quimicamente estável.
A escolha e a montagem dos bloquinhos, portanto, precisam ser muito cuidadosas, e consomem anos de pesquisa. A equipe de Toma, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, criou um vidro capaz de converter a luz do Sol em eletricidade. O protótipo tem poucos centímetros, mas em breve será lançado no mercado. Quem não gostaria de ligar o laptop no vidro do carro ou acionar os eletrodomésticos na janela da cozinha?
A indústria têxtil também prepara invenções para facilitar a vida. Depois do tecido que não amassa e resiste à sujeira, vem aí a camiseta que não cheira mal mesmo depois de um longo e suarento dia de trabalho. A Santista Têxtil já tem um tecido de algodão recoberto com nanopartículas de prata, que matam os micróbios e combatem o cheiro de suor. 'Para testar a camiseta, jogo tênis com ela vários dias sem lavar. É incrível como não cheira', confessa Manoel Areias Neto, gerente corporativo de Inovação. O produto ainda não foi lançado porque a empresa estuda formas de reduzir o custo. Por enquanto, essa tecnologia dobra o preço do tecido. Na indústria de luxo, em que o preço não é barreira, vários ternos do italiano Ermenegildo Zegna vêm com nanoproteção contra manchas.
MEDICINA
As perspectivas de aplicação da nanotecnologia são ainda mais impressionantes na Medicina. Nas próximas quatro décadas, a Ciência deverá se aproximar cada vez mais da vida, diz Toma. Ao esmiuçar o comportamento das moléculas, os pesquisadores poderão criar sistemas altamente inovadores. Os vírus, que se comportam como nanomáquinas naturais que enganam o sistema imunológico, são a grande fonte de inspiração. A empresa americana C Sixty, baseada em Houston, está desenvolvendo um sistema molecular inteligente que navega pela corrente sanguínea e reconhece proteínas específicas liberadas pelo vírus da Aids. Quando localiza o HIV, os nanorrobôs (feitos de material orgânico, e não de metal) interferem na capacidade de reprodução do vírus. Ainda não se sabe quando o projeto deixará a categoria das idéias geniais para virar produto, mas os analistas acreditam que ele poderá mudar a forma como se encara o HIV atualmente.
O combate ao câncer também vem ganhando reforços nanobiológicos. Uma equipe do Massachusetts Institute of Technology (MIT) desenvolveu uma nanocélula que localiza e ataca apenas os tumores, preservando as estruturas saudáveis.Esse cavalo-de-tróia é formado por um balão dentro de outro balão. A membrana externa carrega um medicamento que destrói vasos sanguíneos que alimentam o câncer. A membrana interna transporta drogas quimioterápicas. Por ser tão pequena, a nanocélula entra pelos vasos sanguíneos do tumor, mas não atravessa os poros dos vasos saudáveis. Ainvenção já se mostrou mais eficaz que o tratamento convencional em ratos com melanoma e câncer de pulmão. Se os bons resultados forem comprovados em humanos, ela poderá entrar na prática clínica na próxima década.
Outra grande promessa é a criação de nanopartículas para reparar neurônios danificados por traumas, derrames ou doenças neurodegenerativas, como o mal de Parkinson. Pela primeira vez, cientistas da University at Buffalo utilizaram essas nanopartículas em experiências bem-sucedidas de terapia gênica. Feitas de sílica e material orgânico, elas transportam genes que 'acordam' células-tronco localizadas no cérebro e induzem a formação de novos neurônios.
'Como toda inovação, existe o risco de graves efeitos colaterais. Estamos investigando o que acontece com as nanopartículas no organismo. Como são biodegradáveis, esperamos que sejam expulsas sem causar danos', disse a ÉPOCA Paras N. Prasad, líder das pesquisas na instituição. Otimista com os resultados obtidos em camundongos, ele testará a técnica em animais maiores nos próximos cinco anos.
Realizações palpáveis começam a surgir na indústria farmacêutica. Ela investe no desenvolvimento de nanocápsulas que garantem a liberação controlada de fármacos. As nanocápsulas são chamadas de lipossomas porque são feitas de lipídios (gordura) absorvíveis pelo organismo. Como são muito pequenas, liberam o princípio ativo apenas nos alvos para os quais foram projetadas. Com isso, os remédios tornam-se mais eficientes e produzem menos efeitos colaterais.
'Estamos trabalhando com duas empresas brasileiras, e esperamos ter produtos prontos para comercialização nos próximos cinco anos', diz a professora Maria Helena Andrade Santana, da Faculdade de Engenharia Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Grandes transformações estão acontecendo também no setor da alimentação. A Embrapa desenvolve um plástico - acredite se quiser - comestível, para embalagem de frutas e castanhas. Ele é feito de partículas nanicas de proteínas que formam um filme protetor sobre as frutas. A película não compromete o sabor, e os produtos duram mais tempo. Já estão no mercado aditivos sintéticos produzidos na escala nano para aumentar o valor nutricional de sucos e margarinas.
OS NOVOSTRANSGÊNICOS Mais de 500 produtos que contém nanopartículas já são comercializados, segundo levantamento do ETC Group. AONG, que se chamava Rafi nos anos 90, combatia ferozmente o plantio de alimentos transgênicos. A nova bandeira da entidade é a luta contra os produtos da nanotecnologia, que não estão sujeitos a nenhuma rotulagem ou regulamentação. Assim como o príncipe Charles, que no ano passado declarou que a nanotecnologia poderá produzir um desastre como o da talidomida, muita gente tem medo dessas invenções. Tudo mostra que a resistência à nanotecnologia cresça nos próximos anos até atingir o mesmo tom de histeria verificado durante a aprovação dos primeiros produtos transgênicos. Alguns temores - como o de que criaturas auto-replicantes dominem o mundo - são claramente fantasiosos. Outros exigem reflexões. Várias experiências envolvem a criação de elementos híbridos (um misto de organismos vivos e material inorgânico). Ninguém sabe qual será o impacto dessas aberrações sobre a saúde e o ambiente.
Surgem também muitas preocupações de cunho social. 'Segundo o governo americano, nos próximos 20 anos a convergência tecnológica na escala nano (biotecnologia, tecnologia da informação e neurociência juntas) vai melhorar a performance humana no trabalho, nos esportes e nos campos de batalha. Essas coisas vão aprofundar a disparidade social entre os que têm acesso à inovação e os que não têm', argumenta Pat Mooney, diretor-executivo do ETC Group.
As mudanças econômicas derivadas da nanotecnologia podem ser extremas. Um exemplo: a Nasa investe US$ 11 milhões no desenvolvimento de linhas feitas de nanotubos de carbono para substituir os tradicionais fios de cobre. Os cientistas acreditam que essa invenção vai modificar totalmente o mercado da produção do metal. O que acontecerá aos trabalhadores e à economia do Chile, atualmente responsável por 40% da produção mundial de cobre? Alguns analistas enxergam uma nova Revolução Industrial, tão importante quanto a ocorrida na Inglaterra do século XVIII. 'No Brasil, o principal dilema ético será o do desemprego', acredita Fernando Galembeck, do Instituto de Química da Unicamp. 'Nos anos 70, um ferramenteiro do ABC era bem pago. Hoje, uma injetora de plástico trabalha muito mais que ele e não pára para ir ao banheiro. O mesmo tipo de substituição de mão-de-obra acontecerá com a nanotecnologia', aposta.
A onda da geração de novos materiais é irreversível. 'Se o Brasil não quiser ficar importando tudo, vai ter de entender os materiais em sua intimidade e produzi-los', diz José Antônio Brum, diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncroton, o único da América Latina que permite o estudo de materiais no tamanho de átomos. O Ministério da Ciência e Tecnologia criou um plano para estimular o desenvolvimento de ciência básica com foco em aplicações práticas. O preço do desenvolvimento deve ser o da destruição da saúde, dos empregos e do ambiente? 'Somos grandes e gordos. Qualquer produto feito em escala para atender 6 bilhões de habitantes da Terra causará prejuízos ao ambiente', comenta Brum. O jogo da próxima década será o de decifrar até que ponto os benefícios compensam os riscos.
Cabeleireiro: as escovas profissionais Vertix têm cerdas de náilon enriquecidas com íons de prata. Além de mais resistente, o produto tem ação antibactericida
Óculos: as lentes Crizal, da Essilor, contêm nanopartículas de óxido de zircone, que evitam arranhões e reflexos. Na foto, apenas a lente da esquerda possui anti-reflexo
Televisão: a TV SlimFit, da Samsung, é um terço mais fina que os outros televisores de tela plana. Nanopigmentos de cores aumentam a quantidade de pontos nas extremidades da tela. A tecnologia melhora as relações de cor e contraste
Alimentos: um filme plástico ultrafino (e comestível!) está sendo desenvolvido pela Embrapa para revestir frutas, legumes e castanhas para exportação
Moda: a grife infantil Green é uma das que aderiram ao novo tecido da empresa Invista. Nanopartículas formam uma barreira química que dificulta a fixação de sujeira, como barro ou tinta
Cosméticos: a Lancôme foi a primeira a lançar cosméticos com nanocápsulas, em 1995. por meio delas, os ingredientes penetram mais profundamente na pele
Especialista fala sobre os dilemas da nanotecnologia
Cristiane Segatto
Razão e emoção
Divulgação
Mão na massa A garotada vira cientista
A missão do Centro de Bioética da Universidade de Toronto, no Canadá, é prever o impacto social de novas tecnologias. O mexicano Fabio Salamanca-Buentello é o pesquisador da instituição que mais se dedica à nanotecnologia. A seguir, a entrevista que concedeu a ÉPOCA.
ÉPOCA - Devemos ter medo da nanotecnologia?
Fabio Salamanca-Buentello - Não. Sempre que surge uma nova tecnologia a reação das pessoas oscila entre curiosidade e medo. No entanto, a resposta a uma tecnologia tão transformadora como essa precisa ser o mais racional possível.
ÉPOCA - Quais riscos e dilemas éticos essa inovação deverá desencadear?
Salamanca-Buentello - O surgimento de nanobiossensores para monitorar o comportamento das pessoas em lugares públicos ou no trabalho certamente trará dilemas éticos. Além disso, há a questão dos nanomateriais que podem ser absorvidos e incorporados por tecidos vivos. Se isso acontecer, os nanomateriais poderão entrar na cadeia alimentar e causar acumulação de substâncias potencialmente perigosas na comida. O efeito dos nanomateriais sobre o ambiente também é desconhecido.
ÉPOCA - Como o mau uso da nanotecnologia pode ser evitado?
Salamanca-Buentello - As três medidas necessárias são: pesquisas que avaliem em profundidade os riscos e benefícios, regulamentação internacional e educação do público. Quando a sociedade é mal informada, como no caso dos transgênicos, e forma um conceito negativo sobre determinada tecnologia, é muito difícil mudá-lo.