"O Islão tem sido vítima de interpretações erradas"

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Pug
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"O Islão tem sido vítima de interpretações erradas"

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"O Islão tem sido vítima de interpretações erradas"

"Jornal de Leiria"/LeiriaNet

Nascido em Moçambique, veio para Portugal há 45 anos. É banqueiro, português, europeu, ocidental e muçulmano. Não vê aí nenhuma contradição. Afirma que o Islão tem sido vítima de muitas interpretações erradas e que a culpa também recai sobre muçulmanos mal informados. A sua religião é simples e feita para o homem.

JORNAL DE LEIRIA (JL): Em entrevista a um jornal semanário nacional afirmava ser "português, europeu, ocidental e muçulmano". É necessário falar em articulação, ou estas condições ajustam-se naturalmente? Por outras palavras, como é ser muçulmano em Portugal?

Abdool Vakil (AV) - O que quero sempre enfatizar, com mais razão após o infeliz 11 de Setembro, é que há uma ideia errada que o muçulmano não pode ser ocidental, que há algo de incompatível entre o muçulmano e a vida ocidental. Sempre tenho combatido esta ideia. Agora uma coisa é o Islão, outra é o que o muçulmano, ou outras pessoas, dizem que o Islão é. O Islão tem sido vítima de muitas interpretações erradas e há também muçulmanos mal informados que ajudam a esta confusão. Islamismo, ou Islão, é uma religião simples, feita para o homem, para ser praticada no dia-a-dia de qualquer pessoa, não há nada que o iniba. A religião não foi feita só para o Oriente, onde nasceu. Aliás todas as religiões nasceram no Oriente. Fala-se em Igreja de Roma, mas Jesus Cristo nunca veio a Roma! Como alguém disse, se Jesus Cristo viesse agora ao Mundo, falava inglês com sotaque do Médio Oriente. Estou em Portugal há 45 anos, e nunca tive nenhum problema em praticar a minha religião e o meu jejum. As pessoas não são hostis, embora em todas as nacionalidades exista quem não goste do outro.

JL - O 11 de Setembro e a sua mediatização vão prejudicar o convívio entre católicos e muçulmanos?

AV - Acho que não. Lembro que houve um interregno de séculos em que o Islão e o catolicismo em Portugal estiveram muito divorciados. Quando vim de Moçambique para Portugal, em 1956, ouvia falar no passado islâmico e procurei vestígios. Lembro-me da minha estupefacção quando olhei para a praça de Toiros do Campo Pequeno e pensei que aquilo era qualquer coisa, mas não era nada, era estilo mourisco, não tem nada a ver. Procurava vestígios, mas não encontrei nada. Não havia, nem houve, a preocupação, como fizeram os espanhóis que destacam e mostram mais o passado árabe de Espanha. Em Portugal hoje há historiadores que começaram a desenterrar o passado islâmico, que é parte integrante da nossa história e não se pode apagar. Há oito séculos de convivência na Península Ibérica, que fazem parte da história e são uma herança da nossa Nação. Houve de facto um apagar da história, lembro-me de na quarta classe o professor dizer "E varremos os sarracenos..." e os meus colegas ficarem todos a olhar para mim.

JL - O próprio ensino da História evoluiu nessa matéria...

AV - Sim, embora critique os manuais escolares, não só em Portugal, mas pela Europa fora, que ainda têm esta coisa do outro, que não é compreendido quando é muçulmano. Hoje professores como Borges Coelho, Cláudio Torres, Santiago Macias, entre outros, estudam e estão a desenterrar o nosso passado. A história tem que ser reescrita, porque há uma lacuna grave daquele período que não é conhecido, mas que deve sê-lo a partir dos bancos da escola.

JL -Começou por referir que era necessário fazer perceber que Islão e Ocidente não são incompatíveis. Não deixa de ser estranho ter que fazer essa afirmação, quando qualquer ocidental, no sentido católico do termo, acha que também não é incompatível o contrário. Ser-se católico e paquistanês, por exemplo?

AV - Falou em católico paquistanês, mas não se esqueça do árabe cristão. Quando me falam no meu Deus, pergunto o que é isso de "meu Deus"? e respondem-me "Allah". Mas Allah é Deus. Tanto que Allah é igual a Deus que os árabes cristãos não têm outra palavra senão Allah. A missa cristã, católica ou ortodoxa é em árabe e quando aparece a palavra Deus dizem Allah. O receio de alguns muçulmanos quando preferem dizer Allah é que - e esta é a minha interpretação - Deus seja interpretado ao abrigo da Trindade. Já tive conversas com colegas da direcção da Comunidade, porque escrevi num documento "Deus", e eles diziam-me que devia escrever " Allah". Para mim Deus é Deus. Por esse andar, não dizia Alcorão, não dizia mesquita, mas sim as respectivas palavras em árabe.

JL - A reacção do português comum em relação aos muçulmanos alterou-se após o 11 de Setembro?

AV- Não estava cá a 11 de Setembro, mas no Dubai. E é no deserto, porque tenho a mania de deixar o telefone ligado, que a minha secretária me dá a notícia do que se estava a passar. Nunca pensei que uma coisa dessas podia acontecer, nem queria acreditar no que ela me estava a dizer. Nos filmes é que estas coisas acontecem, agora na realidade...Quando caí em mim e digo ao motorista do jipe para ligar o rádio, então ouvimos que a América estava a ser atacada. Quando mais tarde pensei a frio nestas coisas, não há dúvida que tive receios. Na sexta-feira dessa semana fui à mesquita, à oração, quando houve a ameaça de bomba. Felizmente não era nada, apenas uma brincadeira de mau gosto. Aparte disso, houve alguém que apedrejou a mesquita, provavelmente um miúdo, que partiu uns vidros. Agora é perigoso extrapolar. O que é que tem havido mais? Uma ou outra pessoa que me diz que foi objecto de palavras obscenas ou insultos em sítios públicos, há sempre pessoas que podem ser más, mas não posso generalizar. O Imã David Munir tem espalhado a mensagem que quando há uma provocação, o responder ou ripostar é pior. Porque as pessoas, às vezes, são ignorantes, não sabem o que é o muçulmano e tiram conclusões erradas. É claro que dói, mas não podemos generalizar.

JL - O Imã David Munir revelou-se um pouco desconsolado dizendo que o Estado português devia ter tido uma palavra para a comunidade islâmica em Portugal. Como comenta esta afirmação?

AV - Falei com Sheikh Munir, que terá feito essa afirmação numa altura em que estava desanimado, mas acho que não há razão para isso. Se um muçulmano é português como outro qualquer, porque é que tem de ter um tratamento especial? Quando muito, deseja não ser discriminado. Nós já fomos alvo de visitas de dois presidentes da República à mesquita, o dr. Mário Soares e dr. Jorge Sampaio. Tem havido outras visitas de membros do Governo, por razões que se justificam. As circunstâncias portuguesas são diferentes, a posição do presidente Bush surgiu porque está no país onde isso aconteceu.

JL - Surpreendeu-o a forma como o presidente Bush reagiu?

AV - Bush foi ao centro islâmico de Washington por estar no sítio onde a tragédia aconteceu e em que podia haver alguma reacção contra muçulmanos e árabes. Foi bom ele dizer que há árabes e muçulmanos que são concidadãos e sentem o mesmo que todos sentimos pelo que aconteceu. A reacção a quente foi a da vingança, fazer a guerra. Mas depois amadureceu e tem tido a preocupação de dizer que não há a ideia de guerra contra o Islão, mas sim contra os terroristas. Como o fez também Tony Blair. Existem dois milhões de muçulmanos em Inglaterra, é natural que Blair tenha tido essa preocupação de fazer declarações de que a guerra não é contra o islamismo ou Islão.

JL - A intervenção no Afeganistão tem sido conduzida correctamente?

AV - É difícil para mim comentar a política e a guerra. Para fazer uma luta contra o terrorista, e não é contra o Afeganistão, mas no Afeganistão, é difícil evitar os tais efeitos colaterais, a tal infelicidade de atingir civis. O ideal era uma guerra cirúrgica, resolver aquele mal e deixar o resto intacto, ou não haver nenhuma acção bélica. Mas como é que se consegue controlar e acabar com esse mal, sem recurso ao meio bélico?

JL - Em Portugal as comunidades muçulmana e judaica convivem de forma pacífica e os seus responsáveis até se relacionam. Porque é que isso acontece?

AV - Vários políticos me têm dito isso. O dr. João Soares, por exemplo, refere muitas vezes que talvez seja a única capital do mundo onde isso acontece, onde as três religiões se sentam à mesma mesa e convivem pacificamente. Convivo com a comunidade judaica desde 1961. Vim de Moçambique em 1956, e quando a minha mãe veio, cinco anos depois, tornámo-nos na primeira família muçulmana indiana a viver cá. A minha mãe veio para conhecer a minha noiva, porque escolhi casar com alguém que não era da comunidade. Porque não tínhamos cá mesquita, tive que ir a Paris para me casar, porque era a mesquita mais próxima. Mais tarde casei outras pessoas, enquanto não havia mesquitas cá. Com a instalação da minha família, começámos a comprar a carne no talho judaico e isso criou uma grande proximidade entre nós. E mantemos contactos, recebi uma mensagem muito simpática do rabi Shlomo Haim Vaknim a propósito do Ramadão. E telefonei-lhe na véspera do Yom Kippur, ele até menciona isso na entrevista na revista Grande Reportagem. Como o faço com os presidentes de outras comunidades. O Conselho Pontíficio manda todos os anos, pelo Ramadão, uma mensagem para os muçulmanos de todo o mundo. São mensagens bonitas, sensibilizantes. Há uma aproximação e não é de há muitos anos, tudo mudou com João XXIII. E com este Papa. Hoje há uma grande aproximação. Há dez anos fui convidado para ir à Capela do Rato, com o Dr. Joshua Ruah, pelo Dr. Oliveira Martins. Lembro-me do Dr. Joshua dizer: "Ao fim e ao cabo estamos a falar da primeira, segunda e terceira edição do mesmo livro". Nunca me esqueço destas palavras. Falámos sobre aquilo que nos aproximava e houve alguém que disse: "Mas se vocês estão aqui tão bem, porque é que há essas guerras todas" Ora bem, essa é a pergunta sacramental. Aqueles que genuinamente acreditam na sua religião não podem ver senão pontes, porque as religiões convergem.

JL - O que é ser líder da comunidade islâmica?

AV - A comunidade islâmica a que presido chama-se Comunidade Islâmica de Lisboa. Porque a primeira presença institucionalizada do Islão começou em Lisboa. A Comunidade de Lisboa tem uma delegação em Coimbra. A do Porto é independente e chama-se Centro Cultural e Islâmico do Porto. Há ainda, outras delegações de Lisboa. A Comunidade tem a forma legal de associação. Hoje, com a Lei da Liberdade Religiosa, não teria que se organizar desta maneira. Naturalmente que a sua razão de existir é o Islamismo e fazer com que se promova e se defendam os interesses dos seus associados. Aqui há outro aspecto importante: a Comunidade Islâmica de Lisboa é dona da mesquita, mas esta não funciona como sendo um clube, em que só deixa entrar sócios. Muitos milhares vão à mesquita orar e não há ninguém que tenha um tratamento especial por ser sócio. Nem temos, ao contrário de algumas religiões, alguém excomungado, porque a relação entre o crente e Deus é directa. Desde que vá à Mesquita ordeiramente fazer as suas orações, pode ser o pior muçulmano que ninguém lhe vai barrar a entrada.

JL -O filho de um muçulmano consegue ver hoje respeitados os seus valores na escola oficial?

AV- Uma coisa é a lei, a outra é a prática. A lei diz que se houver um mínimo de 15 alunos daquela religião, a escola é obrigada a ter as condições para isso. Mas como os muçulmanos estão espalhados, torna-se difícil juntar alunos. Hoje a cadeira que substitui a antiga de Religião e Moral pode deixar ainda muito a desejar, mas dá uma espécie de banho cultural do que são as várias religiões. E nesse contexto, algumas escolas fazem visitas de estudo à nossa mesquita. Não estamos à espera que os nossos filhos aprendam na escola oficial sobre a nossa religião. Mas até é bom que saibam sobre as outras religiões. Temos o equivalente à catequese, na mesquita, e outras pessoas terão alguém que contratam particularmente para ir a casa dar lições aos seus filhos.

JL - Como vê a poligamia no mundo islâmico e a relaciona com um país onde essa situação não é permitida por lei?

AV - Lei é lei. A poligamia não é invenção islâmica e há países islâmicos que também não consentem a poligamia. Na Arábia pré-islâmica, a mulher era um objecto: desde enterrarem as meninas à nascença, até maltratar a mulher como um objecto. A questão de ter mais do que uma mulher surgiu numa altura em que havia necessidade de limitar e regulamentar esse direito. E aconteceu como necessidade, durante as guerras, e houve muitas, porque a religião islâmica também foi perseguida, originando muitas viúvas. Carecidas de apoio, com filhos pequenos, houve uma directiva moralizante para que as pessoas que davam guarida a essas mulheres as tornassem suas esposas. E foi o que aconteceu. O espírito da religião, do Alcorão, é monogâmico, porque diz que tem que manter a igualdade entre as mulheres, não só a financeira, mas em todos os sentidos. Se não se consegue ter igualdade entre elas, então é preferível ter só uma.

JL - A interpretação feita varia de país para país?

AV- Há o Islão e há o muçulmano. Há muitas tropelias que o muçulmano faz e isso não quer dizer que o Islão o permita. Há uma situação que se diz ser muito vulgar, para deixar uma mulher basta dizer três vezes "eu repudio-te!" e está feito o divórcio. Nada disto. A religião diz que das coisas permitidas, o divórcio é a mais abominante perante Deus. Se for necessário, usa o divórcio. Mas é a ultima coisa que deves fazer. Deus não gosta do divórcio. Então uma das coisas que diz é que tem que haver três sessões entre o casal e o juiz: numa primeira reunião ver se consegue conciliar, e à terceira para decidir se não há outro remédio. Mas há quem faça da outra forma, por ignorância, e depois transparece isso para fora. Outra coisa que alguns muçulmanos nem sabem é que a mulher, quando casa, pode pôr no seu contrato nupcial uma cláusula em que o marido não poderá gozar a prerrogativa da poligamia. Quais os casos em que se pode usar a poligamia? Os casos de sucessão, como foi o Xá do Irão. Outro caso, a lei civil dizia que um homem se pode divorciar de uma mulher com uma doença incurável. Mas aqui é provável que mais ninguém queira casar com ela, portanto é imoral abandoná-la. Nessa altura, pode manter a primeira e casar com a segunda, dando-lhe um estatuto igual. Mas não defendo a poligamia.

JL - Em estudante foi colega de Cavaco Silva. Como avalia o seu desempenho enquanto primeiro-ministro?

AV - Nós estudávamos juntos, na mesma aula, depois ele foi para Africa, para a tropa. Mais tarde fomos colegas no Banco de Portugal. Como primeiro-ministro, foram dez anos de grande progresso e de mão firme na governação

JL - Como banqueiro, está optimista quanto à situação actual de Portugal e ao que se perspectiva para os próximos anos?

AV- Tenho algumas apreensões, que resultam também da conjuntura internacional, que vieram agravar a nossa situação. Em dez anos muitas infra-estruturas foram feitas e que eram necessárias ao país. Não podemos chorar sobre o passado, temos de trabalhar no sentido de aproveitar outras oportunidades que ainda se apresentam. Há também o fenómeno de Portugal ter muitos imigrantes. Nós, portugueses, fomos emigrantes noutros países, hoje em dia somos o país anfitrião, o que está a criar alguns problemas. Os nossos tradicionais imigrantes eram de África, e hoje os de Leste fazem-lhes concorrência, mais preparados nalgumas áreas, e a um preço muito competitivo.

JL - Que mensagem pretende levar a Leiria?

VK - Numa conferência destas não posso levar outra senão uma mensagem de convergência entre as três religiões, da ponte que nos une e não que nos separe. O professor Dimas disse que devíamos olhar mais àquilo que nos separa do que aquilo que nos une. Aquilo que nos une já nos une, temos é que encontrar aquilo que nos separa. Não concordo, penso que devemos encontrar as pontes, e não nos fixarmos muito naquilo que nos separa.

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Percurso

Abdool Vakil nasceu em Moçambique há 62 anos. Português, de ascendência indiana, aos 17 anos vem de Moçambique estudar para a Metrópole, para o Instituto Comercial de Lisboa. Aqui conheceu aquela que viria a ser sua mulher, Rosária, que se converteu ao islamismo adoptando o nome de Jamila. Porque na época não existia mesquita em Lisboa, vão casar à mais próxima, em Paris. Na faculdade, foi colega de Cavaco Silva, com quem chegou a estudar algumas vezes e com quem se voltou a encontrar mais tarde, no Banco de Portugal. Cosmopolita, viveu em Moçambique e Londres. Banqueiro (é um dos accionistas do Banco Efisa, banco de investimentos) é um dos homens de referência no mundo da alta finança. Foi um dos fundadores da Comunidade Islâmica de Lisboa, que hoje lidera, a forma legal encontrada, em 1968, por ele e um grupo de muçulmanos para a promoção e defesa do islamismo.

Arnaldo Sapinho / Paula Carvalho / Jornal Leiria

http://www.leirianet.pt/leiria/noticia. ... d=798%3Cbr
"Nunca te justifiques. Os amigos não precisam e os inimigos não acreditam" - Desconhecido

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Pug!
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Re.: "O Islão tem sido vítima de interpretações erradas

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Alenônimo
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Re.: "O Islão tem sido vítima de interpretações erradas

Mensagem por Alenônimo »

Bela piada…

Trancado