"O Globo" 07/09/08
O direito como metáfora
Paulo Coelho
Sou uma pessoa que crê no sistema judiciário. Apesar de todos os percalços, vemos — por exemplo — a Suprema Corte dos Estados Unidos desqualificando a tortura como método de interrogatório, mesmo que o presidente da República e seu vice tenham, através de artimanhas legais, tentado justificá-la.
Entretanto, minha crença não é compartilhada por muita gente. Um amigo advogado disse-me que “o direito não foi feito para resolver problemas, mas para prolongá-los indefinidamente”.
Apenas como exercício de imaginação, resolvi usar sua tese analisando o Gênesis, primeiro livro da Bíblia.
Se Deus vivesse hoje, nós todos ainda estaríamos no Paraíso, enquanto Ele estaria ainda respondendo a recursos, apelos, rogatórias, precatórias, mandados de segurança, liminares.
E teria que explicar em inúmeras audiências sua decisão de expulsar Adão e Eva do Paraíso, apenas por transgredir uma lei arbitrária, sem nenhum fundamento jurídico: não comer o fruto do Bem e do Mal.
Se Ele não queria que isso acontecesse, por que colocou a tal árvore no meio do jardim — e não fora dos muros do Paraíso? Se fosse chamado para defender o casal, um advogado experiente podia argumentar a tese de “omissão administrativa”: além de colocar a árvore em lugar errado, não a cercou com avisos ou barreiras, deixando de adotar os mínimos requisitos de segurança e expondo todos que passavam ao perigo.
Outro advogado o acusaria de “indução ao crime”: chamou a atenção de Adão e Eva para o exato local onde se encontrava. Se não tivesse dito nada, gerações e gerações passariam pela Terra sem que ninguém se interessasse pelo fruto proibido — já que devia estar numa floresta cheia de árvores iguais, e, portanto, sem nenhum valor específico.
Mas o Gênesis aconteceu antes do sistema judiciário e, portanto, permitiu que Deus tivesse completa liberdade de ação. Escreveu uma única lei e encontrou uma maneira de convencer alguém a transgredi-la, só para poder inventar o Castigo. Sabia que Adão e Eva terminariam entediados com tanta coisa perfeita e — mais cedo ou mais tarde — iriam testar Sua paciência. Ficou ali esperando, porque também Ele — Deus Todo-Poderoso — estava entediado com as coisas funcionando perfeitamente: se Eva não tivesse comido a maçã, o que teria acontecido de interessante nesses bilhões de anos? Nada.
Quando a lei foi violada, Deus — o Juiz Todo-Poderoso — ainda simulou uma perseguição, como se não conhecesse todos os esconderijos possíveis.
Com os anjos olhando e divertindose com a brincadeira (a vida para eles também devia ser muito aborrecida, desde que Lúcifer deixara o Céu), Ele encontra Adão.
“Onde estás?”, perguntara Deus, que já sabia a resposta. Não o alertou para as conseqüências dela. Não disse a famosa frase que tanto ouvimos nos filmes: “Tudo o que disser pode ser usado contra você.” “Ouvi seu passo no jardim, tive medo e me escondi, porque estou nu”, respondera Adão, sem saber que, a partir dessa afirmação, passava a ser réu confesso de um crime.
Pronto. Através de um simples truque, em que aparentava não saber onde Adão estava, nem o motivo de sua fuga, Deus conseguira o que desejava.
Expulsou o casal, seus filhos terminaram pagando também pelo crime (como acontece até hoje com os filhos de criminosos) e o sistema judiciário fora inventado: lei, transgressão da lei, julgamento e castigo.