A CRUZ E A SUÁSTICA
O lançamento, em 1999, do polêmico livro de John Cornwell, “Hitler's Pope” (O Papa de Hitler), que suscitou debates acalorados (inclusive através da Internet), reabriu uma questão delicada que envolve o relacionamento de Pio XII com os regimes nazi-fascistas europeus, nos anos 30 e 40, e a responsabilidade da Igreja Romana na onda de anti-semitismo que varreu o mundo naquele período.
N�o foi a primeira vez que o tema foi trazido à baila. Antes de Cornwell, outros autores já haviam tratado desse assunto, quer de uma forma ampla (como Paul Johnson, em sua “História do Cristianismo”), quer de uma forma episódica (como Robert Katz, em seu “Massacre em Roma”). Mas nenhum foi tão contundente quanto Cornwell, talvez por não disporem do acervo documental que esse escritor inglês pode utilizar. Na condição de pesquisador católico do Jesus College, de Cambridge, e gozando de prestígio junto à alta cúpula da Igreja, ele teve acesso a uma fonte valiosíssima de informações: os arquivos do Vaticano.
Cornwell confessa que decidira escrever um livro sobre Pio XII com o propósito de desfazer, de uma vez por todas, as dúvidas que pairavam sobre o papel do Papado na História do S�culo XX. Mas o resultado de seu trabalho acabou sendo exatamente o oposto: “(...) quase ao fim de minha pesquisa, descobri-me num estado que só pode ser descrito como choque moral. O material que eu recolhera, (...) não servia para inocentá-lo [ao papa Pio XII]; em vez disso, consolidava as acusações”.
Mas ainda que a memória daquele papa possa estar irremediavelmente maculada, essa questão, além de controvertida, tem uma dimensão bem mais ampla, pois não se trata de avaliar apenas o papel desempenhado pela Igreja Católica, mas sim de todas as igrejas cristãs, diante do hitlerismo.
Se examinarmos o que aconteceu na Alemanha durante o período de ascensão e consolidação do nazismo, veremos que os protestantes foram, pelo menos nos primeiros anos, mais receptivos ao nacional-socialismo do que os católicos, especialmente no tocante à doutrina anti-semita, teorizada por Alfred Rosemberg.
Já em meados dos anos 20, um grupo de luteranos havia formado a “Federação por uma Igreja Alemã”, com o propósito declarado de “extirpar a base judaica do Cristianismo”. Segundo eles, o próprio Lutero teria feito declarações anti-judaicas, à época em que deflagrou a Reforma (século XVI). Outro grupo luterano, ainda mais extremado, auto-intitulado “Cristãos Alemães da Turingia”, chegou a aclamar Hitler como “enviado de Deus”, enquanto o “Movimento Cristão Alemão”, também protestante, foi o primeiro a aceitar a presença de unidades nazistas uniformizadas no interior de suas igrejas.
No verão de 1933, o anseio de muitos protestantes alemães em se enquadrar à ordem nazista levou a Igreja Evangélica Prussiana a propor seu alinhamento direto (ou seja, sua subordinação) ao partido de Hitler. Mas o füher rejeitou a oferta. Ele não gostava dos cristãos, mesmo daqueles que rastejavam aos seus pés.
Dentre os não-católicos da Alemanha, os únicos que proclamaram, desde o princípio, sua oposição doutrinária ao nazismo, foram as “Testemunhas de Jeová”, cuja coragem chegou a despertar a admiração do próprio Heinrich Himmler (o sinistro guardião da segurança do regime). Obviamente, pagaram um pesado preço por isso: mais de um terço dos membros dessa igreja foi exterminado.
Quanto aos católicos, é preciso reconhecer que, inicialmente, alguns bispos alemães foram hostis a Hitler. Houve mesmo quem proibisse os fiéis de votarem nos nazistas, por causa da política racial do partido. Isso aconteceu, por exemplo, na arquidiocese de Mainz, em 1930.
Mas também é forçoso dizer que esses bispos eram minoritários. A maioria adotava uma postura conciliatória, sendo de conivência, mesmo que alguns deles repudiassem, por exemplo, a política cultural do partido que, em nome do germanismo, resgatava antigos rituais pagãos. Na verdade, eles seguiam a orientaçao do Vaticano, que já advertira que o papa Pio XI não daria apoio a nenhuma política de oposição oficial da Igreja Católica Alemã em relação ao Estado Nazista. Por isso, quando o dr. Erich Klausener, secretário-geral da “Açao Católica”, Adalbert Probst, diretor da “Organização Desportiva Católica” e o padre Bernard Stempfle, editor de um jornal anti-semita da Baviera, foram assassinados na “Noite das Longas Facas” (30/06/34), os bispos alemães ficaram calados. Aliás, os protestantes, que também tiveram alguns líderes mortos naquele episódio, fizeram o mesmo.
As razões que levaram o Vaticano a adotar essa conduta são complexas e remetem a tempos mais remotos. Herdeira da tradição imperial romana, a Igreja Católica sempre foi aristocrática e autoritária, opondo-se a “modernidades” políticas, notadamente as decorrentes da Revolução Francesa (1789), dentre elas a Democracia, o Liberalismo e (mais acentuadamente) o Socialismo. Desde o Concílio Vaticano I (1870), ela vivia um processo de (ainda maior) centralização hierárquica, acentuando a autocracia papal. Esse processo, sistematizado no Código de Direito Canônico (1917), encontrava-se em seu apogeu à época da ascensão do nazi-fascismo, e tinha no Monsenhor Eugenio Pacelli (o futuro Pio XII), de reconhecidas habilidades diplomáticas, um eficiente arquiteto.
Quando, após o triunfo bolchevique na Rússia (1917), a ameaça revolucionária pairou sobre a Europa, a Igreja passou a namorar o fascismo nascente e o papa Pio XI chegou a saudar Mussolini como o “enviado da Providência que salvou a Itália do perigo vermelho”, assinando com ele o Tratado de Latrão (1929), que pôs fim à velha "Questão Romana" e criou o Estado do Vaticano.
Em relação à Alemanha, foi também o declarado anti-comunismo de Hitler que orientou a política papal. Em troca da manutenção de alguns privilégios católicos no país, foi assinada uma Concordata (negociada por Pacelli) com o füher (1933), que desarmou os poucos bispos ainda dispostos a resistir à barbárie nazista e levou o Partido do Centro (católico) a se auto-dissolver, não sem antes votar o Ato de Autorização, através do qual Hitler recebeu do Reichstag poderes discricionários..
Hitler desprezava os cristãos quase tanto quanto odiava os judeus: “Por que deveria me preocupar com a reação dos cristãos?”, disse ele certa vez. “Eles engolirão qualquer coisa para manter suas vantagens materiais!”.
Pacelli já era o papa quando Hitler destruiu a Checoslováquia (1939). Mas apesar dos sofrimentos que se abateram sobre o povo desse país, de longa tradiçao católica, ele preferiu considerar aquela tragédia como sendo um “processo histórico no qual, do ponto de vista político, a Igreja não se encontra interessada”.
Durante a guerra, a atitude das igrejas cristãs alemães tornou-se ainda mais servil. Apesar do confisco de propriedades religiosas e da ostensiva propaganda anti-cristã dentro das forças armadas, elas continuaram a soar seus sinos para comemorar as vitórias nazistas, até que estes também lhes foram tomados para alimentarem a indústria armamentista.
Ao iniciar a perseguição aos judeus, Hitler sabia que podia contar com o apoio, ou pelo menos com a omissão, dos cristãos alemães: “Estou simplesmente dando prosseguimento à mesma pol�tica adotada pela Igreja nos últimos mil e quinhentos anos”, disse ele ao bispo de Osnabrück, em abril de 1933.
Em sua “História do Cristianismo”, Paul Johnson comenta: “Os católicos que participaram do extermínio de judeus, nunca ouviram o seu clero declarar especificamente que o que eles estavam fazendo era errado (...). O máximo que pode ser dito em favor deles [dos bispos] é que não receberam ajuda alguma por parte do papa”.
Realmente, vários exemplos atestam o comportamento no mínimo omisso do Vaticano, diante da política anti-semita do nazismo. É época em que os judeus italianos tiveram seus bens sequestrados e passaram a ser transferidos para campos de concentração, o papa limitou-se a qualificar tais medidas como “demasiado rigorosas”. E quando os cardeais e arcebispos franceses tentaram se opor aos Estatutos Judaicos de Pétain, em junho de 1941, o Vaticano recusou-se a criticar essa legislação espúria, por não considerá-la “em conflito com os ensinamentos católicos”.
Quando Mussolini já havia caído e os exércitos anglo-americanos avançavam pelo sul da Itália, a grande preocupação de Pio XII era que a administração militar alemã ruísse antes que os Aliados viessem a substituí-la, pois isso criaria um vácuo de poder que poderia ser ocupado pelos comunistas, o mais organizado grupo da resistência anti-fascista. Provavelmente, esse foi o motivo que o levou a lavar as mãos diante do fuzilamento de 330 civis romanos, ordenado por Hitler em represália a um ataque dos partisanos contra policiais-SS, em Roma (1944). Esse episódio, conhecido como O Massacre das Grutas Ardeatinas, foi tema do livro de Robert Katz e do filme italiano “Rappresaglia” (1973), que custou aos seus produtores um processo judicial de difamação, movido pela famélia de Eugenio Pacelli.
Tudo indica que o “pastor angélico” (como Pio XII gostava de ser chamado) não tinha reservas apenas contra comunistas e judeus. No momento em que os aliados se preparavam para ocupar Roma, ele solicitou ao alto-comando americano que não incluísse soldados negros entre as tropas de ocupação, pois temia que as mulheres romanas pudessem ser vítimas de estupros.
Certamente não se pode dizer que Pio XII jamais criticou severamente o Nazismo. Ele o fez em junho de 1945, perante o Colégio dos Cardeais, quando disse que os nazistas eram “um espectro satânico” e “a destruiçao da liberdade e da dignidade humanas”.
Só que, a essa Época, a Alemanha já havia se rendido e Hitler estava morto.
http://br.geocities.com/kaderno2004/mat ... astica.htm