Bioquímico afirma: "Fazemos amarração para o amor"

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Suyndara
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Bioquímico afirma: "Fazemos amarração para o amor"

Mensagem por Suyndara »

Numa das cenas mais memoráveis do filme “O Advogado do Diabo”, o personagem vivido por Keanu Reeves está quase cedendo à argumentação do Capeta (na pele de Al Pacino). O plano do Cramulhão é convencer o rapaz a fecundar sua própria meio-irmã e, assim, engendrar o Anticristo. Na última hora, ele hesita. “E quanto ao amor?”, pergunta. “Irrelevante. Quimicamente, o amor não é diferente de comer muito chocolate”, responde o Demo. Num momento em que as bases biológicas do mais idealizado dos sentimentos estão sendo dissecadas, será que é o caso de perguntar se ele tem razão?

Para alguns, de fato, a simples discussão dessa ideia deve parecer demoníaca. Mas, quando a maior revista científica do mundo abre espaço para o debate, é bom ficar atento. Na semana que passou, um artigo opinativo na britânica “Nature”, assinado por Larry Young, da Universidade Emory (EUA), defendeu que não está muito distante a criação de “poções do amor” bioquimicamente eficazes. Em vez do tradicional “Boa Noite, Cinderela”, diz Young, as pessoas vão ter de ficar de olho para que um(a) pretendente não despeje esse tipo de sortilégio na bebida delas, levando-as a se apaixonar na marra. Aproximar-se-ia o dia em que veríamos bancas de camelô com os dizeres: “Bioquímico: Faço amarração para o amor” ou algo do gênero.

Young tem razão ao menos num ponto: os cientistas estão desvendando boa parte do que acontece nos recônditos dos nossos neurônios, envolvendo trocas de mensageiros químicos e hormônios, em situações que estão diretamente ligadas à nossa tendência de iniciar uma paixão e/ou transformá-la num relacionamento de longo prazo. Resta saber se esses dados são ou serão suficientes para orientar a produção em massa de uma poção do amor de ação infalível e permanente.

Monógamos por natureza?
Eu costumo dar um sorrisinho cético toda vez que algum filósofo ou historiador afirma que Shakespeare (ou os trovadores medievais, ou Sócrates, ou os Beatles) “inventou” o amor romântico. De uma coisa podemos estar certos: emoções tão poderosas quanto essa têm raízes muito mais profundas. Talvez seja mais lógico pressupor que os seres humanos são “monógamos” (as aspas são necessárias) por natureza já faz algum tempo.

Se redefinirmos amor como “ligação emocional e sexual duradoura entre macho e fêmea” (não estou discriminando os homossexuais, apenas me concentrando na maioria dos casos), veremos que a nossa espécie é minoritária entre mamíferos e primatas. Isso porque até nossos machos mais canalhas participam ativamente da criação dos bebês e passam a maior parte do tempo com a mãe deles, sua única ou, ao menos, principal parceira. Na verdade, os únicos primatas mais “fiéis” que nós são os gibões, que passam a vida inteira isolados em casais monogâmicos, e não em comunidades com várias famílias reunidas, como os humanos.

Parece haver uma correlação forte entre esse nosso padrão de comportamento e o tamanho relativo de fêmeas e machos. A regra entre mamíferos e primatas parece ser a seguinte: quanto maior o macho é em termos proporcionais, maior a chance de a espécie praticar a poligamia. Elefantes-marinhos e gorilas machos são mais de 50% maiores que suas consortes e, por isso, costumam viver em haréns governados com mão de ferro. Já homens são, em média, apenas 15% maiores que mulheres, o que inviabiliza a capacidade masculina de controlar fisicamente mais de uma parceira. Somos, no máximo, “levemente polígamos” por natureza – o que, na prática, pode-se traduzir por monógamos que pulam a cerca de vez em quando.

A origem dessa característica na nossa linhagem é controversa, mas antropólogos como o americano C. Owen Lovejoy defendem, com base na análise de fósseis, que ela já estava presente entre os Australopithecus afarensis, hominídeos com mais de 3 milhões de anos. Caso você esteja coçando a cabeça e pensando em todas as civilizações “primitivas” em que a poligamia era comum, dos tupinambás aos antigos israelitas, lembre-se de um detalhe importante: são todos grupos em que a agricultura, e portanto a concentração de riqueza e a desigualdade social, já tinham sido inventadas.

Um chefe guerreiro capaz de concentrar bens elimina a quase-igualdade física existente entre machos e fêmeas (e machos e outros machos), ganhando a chance de acumular esposas. Nossa condição original – a de caçadores-coletores em bandos pequenos e igualitários – provavelmente não permitia isso. Mesmo em sociedades mais “avançadas”, como a dos israelitas bíblicos, poligamia é um luxo para relativamente poucos: enquanto o rei David tinha dezenas de esposas, seu general Urias só tinha uma, e essa ainda foi tomada dele por uma artimanha do monarca (leia o Segundo Livro de Samuel, na Bíblia, para mais detalhes da sacanagem davídica).

Reciclagem

Já vimos algumas das bases comportamentais e sociais do que chamamos de amor; é hora de passar às bases bioquímicas do sentimento. Talvez você já tenha ouvido isso várias vezes antes, inclusive nesta coluna, mas é sempre bom repetir: a evolução é mão-de-vaca e adora improvisar e reciclar. Novos comportamentos e adaptações normalmente não são criados do zero, mas reutilizam elementos antigos (o termo técnico é “conservados”) da biologia de uma espécie. Como vimos, o elo emocional duradouro entre fêmea e macho é relativamente raro entre mamíferos. Pense, porém, em outro elo emocional poderosíssimo, que nós também chamamos de amor e que é muito mais comum nas espécies aparentadas à nossa. Ora, é o amor de mãe, claro.

E uma das chaves bioquímicas desse amor parece ser o hormônio oxitocina, liberado em grandes quantidades durante o parto e a amamentação em todos os tipos de mamíferos, inclusive nós. Ele parece controlar o apego instintivo da mãe pelo bebê, e vice-versa, interagindo com o chamado sistema dopaminérgico – a fração do cérebro que reage ao mensageiro químico dopamina. A dopamina é importante para a sensação de recompensa diante de algo prazeroso, estando envolvida em fenômenos como a euforia e o vício em drogas.

É aqui que entra a linha de pesquisa de Young, que estuda os arganazes, pequenos roedores silvestres do hemisfério Norte. O que acontece é que fêmeas de arganazes sob a ação da oxitocina (via uma injeção, por exemplo) criam um elo forte com o macho que estiver mais próximo delas – isso no chamado arganaz-da-pradaria (Microtus ochrogaster), espécie monógama do bicho. Young propõe que o circuito cerebral utilizado para forjar o elo entre mãe e filho foi modificado e cooptado para produzir o “amor” monogâmico entre os roedores.

E entre pessoas também. Afinal de contas, há uma potente liberação de oxitocina durante a estimulação da vagina e dos seios durante as relações sexuais na nossa espécie, o que ajudaria a fortalecer o elo emocional da mulher com seu parceiro. E a coisa também parece funcionar do lado do macho. Os arganazes monogâmicos parecem fortalecer a ligação com suas esposas por meio de um hormônio quimicamente semelhante à oxitocina, a chamada vasopressina, que também potencializa a agressividade contra possíveis rivais e o instinto paternal.

O curioso é que, assim como existem os arganazes-da-pradaria fiéis, também temos os arganazes-da-campina (Microtus pennsylvanicus), espécie cujos machos são promíscuos. Aparentemente, são detalhes diferentes no gene que codifica o receptor da vasopressina – ou seja, a “fechadura química” onde o hormônio vai se encaixar e iniciar sua função – que acabam levando ao comportamento fiel ou promíscuo dos machos de cada espécie de roedor.

Fim da história? Ainda não. Um estudo recente, mostrou que variantes genéticas semelhantes às dos roedores têm correlação com o comportamento marital de homens. Para ser mais específico, os portadores de certa variação do gene têm duas vezes mais probabilidade de não se casarem ou, se casados, de passarem por crises no casamento. Suas esposas também reclamam mais deles do que as mulheres dos que não carregam essa variante.

É difícil imaginar que tais variações na população humana existam à toa. Parece mais provável que elas representem duas estratégias comportamentais distintas que coexistem na nossa espécie, sujeitas à seleção natural e a influências culturais, não necessariamente nessa ordem (nem mesmo separadamente). Em alguns contextos, a promiscuidade desregrada pode representar uma vantagem na produção de descendentes; em outros, a fidelidade “lenta e segura” pode ser uma espécie de caderneta de poupança, modesta, mas lucrativa diante do panorama econômico/reprodutivo geral.

Terapia de casais?

Young não tem medo de pôr na mesa uma proposta herética: conforme esses detalhes forem totalmente elucidados, a terapia de casais pode deixar de ser trabalho para psiquiatras e psicólogos e virar tarefa de farmacêuticos. Em vez de discutir longamente a relação, bastaria o uso judicioso de comprimidos de oxitocina, vasopressina ou outros mensageiros químicos que ainda precisam ser mais estudados.

A tendência de se encolher de horror diante de um futuro desse tipo pode ser grande para muita gente. Mas coloquemos os pingos nos is. Primeiro, não está claro se uma abordagem como essa seria tão diferente assim do uso de medicamentos por parte de alguém com transtorno obsessivo-compulsivo ou esquizofrenia que deseja escapar da tendência “natural” de seu cérebro a funcionar de um jeito que atrapalha a vida dela e a dos outros. Se lhe falta a capacidade neuronal necessária para, sozinha, manter sua união e fidelidade ao parceiro, ao menos ela estará tomando a decisão de fazer o que for necessário para não decepcioná-lo. O que mais se pode pedir de um ser humano?

E no caso do cenário mais sombrio – o “Boa Noite, Cinderela”, ou o uso constante e oculto dessas substâncias para “amarrar” um parceiro? Pois é bom mantermos os nossos detectores de absurdo ligados. Por mais que toda a nossa vida mental possa ser reduzida a eventos bioquímicos no cérebro, isso não significa que somos apenas autômatos à mercê de hormônios e neurotransmissores. Os relacionamentos de longuíssimo prazo que a nossa espécie inventou dependem de tantos fatores complicados – de interesses econômicos, passando por filhos, companheirismo ou até prazer intelectual – que nenhuma dose de oxitocina no café provavelmente vai conseguir mantê-los de pé caso esses outros alicerces tenham sumido. O elixir do amor pode até ajudar; mas, antes, é preciso haver algo que valha a pena amar.


Fonte: Visões da Vida - Blog G1 notícias.
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Re: Bioquímico afirma: "Fazemos amarração para o amor"

Mensagem por Apo »

Já pensou se trocam ecstasy por oxitocina na balada? :emoticon41:
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Suyndara
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Re: Bioquímico afirma: "Fazemos amarração para o amor"

Mensagem por Suyndara »

Apo escreveu:Já pensou se trocam ecstasy por oxitocina na balada? :emoticon41:


:emoticon27:

Num fala isso, meu filho ainda não entrou pra adolescência :emoticon12:
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Re: Bioquímico afirma: "Fazemos amarração para o amor"

Mensagem por Apo »

Suyndara escreveu:
Apo escreveu:Já pensou se trocam ecstasy por oxitocina na balada? :emoticon41:


:emoticon27:

Num fala isso, meu filho ainda não entrou pra adolescência :emoticon12:



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Estou no meio da estrada. :emoticon4:
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