Alá, meu bom Alá
Mulheres de São Paulo se revertem ao Islamismo e mergulham na busca por um príncipe das arábias
Por Karla Monteiro
Quando cai a noite, a bodega de Abou Ali, um libanês de cabelos longos e ensebados, transforma-se em ponto de encontro. Misto de restaurante e armazém, o lugar tem o charme da sordidez: ladrilhos encardidos, luz branca intensa e cheiro de shawarma — o churrasco de carneiro dos árabes — no ar. O segredo da birosca de Abou Ali é a localização.
Fica em frente à Liga da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil, mais conhecida como Mesquita do Pari, no bairro do Braz, Zona Leste de São Paulo. Aos sábados, o horário de movimento é por volta das oito da noite, assim que termina a maratona de aulas na mesquita, uma construção suntuosa com um salão de orações capaz de comportar com tranquilidade mais de mil fiéis: religião 1 e 2, árabe básico e intermediário, inglês e recitação do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.
O sotaque que mais se ouve pelas mesas é o paulistano mesmo, embora a capital de São Paulo abrigue seis milhões de sírios-libaneses, número superior à população do Líbano, e o Braz, fundado por italianos, seja hoje um reduto das arábias, com direito a homens fumando narguilés pelas calçadas. E quem chama a atenção são as brasileiras, cobertas da cabeça aos pés e devidamente paramentadas com o hejab, o véu do Islã.
— São Paulo tem 23 mesquitas. É a cidade com a maior concentração de muçulmanos do Brasil. Nossa mesquita tem 820 pessoas registradas.
Desse total, cerca de 200 são mulheres revertidas — diz Rosângela Aparecida Racy, rebatizada Rokkia, uma espécie de secretáriageral da Liga da Juventude Islâmica e apresentadora/fundadora do programa islâmico “Verde e amarelo”, exibido por uma TV online.
— As brasileiras estão em busca de respeito e integridade. E isso você só encontra de verdade no Islã.
No primeiro sábado deste mês, a mulherada revertida, termo usado para designar a adoção do islamismo, amontoouse nas quatro mesas do fundo do restaurante de Abou Ali. Uma delas sacou da bolsa um arsenal de lenços para vender.
Festa, gritaria, puxa daqui, puxa de lá. Da turma, Erika Ossaima Lobianco, agora chamada de Elemen, era a mais quieta. Não tinha nada que ela pudesse comprar. Desde que voltou dos Emirados Árabes, em dezembro, decidiu só usar preto, assim como as esposas do profeta Muhammad, o fundador do islamismo.
E os hejabs que circulavam de mão em mão eram coloridos, bordados, espalhafatosos. A história de Elemen é emblemática naquele cenário. Ela já conquistou o que todas buscam: um muçulmano para chamar de seu. Advogada, 27 anos, articulada e inteligente, Elemen conheceu Salman, um médico saudita radicado em Dubai, pela internet. No dia 25 de novembro último, depois de alguns meses de relacionamento virtual, ele mandou uma procuração para que o sheir da mesquita de Mogi das Cruzes, cidade onde a moça nasceu, realizasse o casamento. Elemen casou-se com um pedaço de papel. Logo depois, embarcou para os Emirados e o casal finalmente se encontrou pela primeira vez. A lua-de-mel durou 13 dias. De volta a São Paulo, agora Elemen espera o reconhecimento do casamento pelo governo saudita para a obtenção do passaporte. Ela é a segunda esposa de Salman.
— Sempre achei as muçulmanas lindas, os véus... Aos 15 anos, comecei a estudar o Islã, e assim que me formei e me tornei independente financeiramente, eu me reverti.
Minha mãe me chamou de terrorista.
Meus amigos se afastaram. Mas eu não ligo.
Estou feliz assim — diz a moça. — Não ligo de ser a segunda esposa. Quando virei muçulmana já sabia do direito dos homens de ter mais de uma mulher. Se o Salman tem condições de sustentar nós duas, como determina o Corão, tudo bem.
O crescimento do islamismo no Brasil é fato. Segundo o último senso do IBGE, de 2000, havia 58 mil muçulmanos no país, mais de 60% concentrados em São Paulo.
Hoje, de acordo com a União Nacional das Entidades Islâmicas, o número saltou para 300 mil. Há dois meses, foi inaugurada em Maringá, no interior do Paraná, uma Academia Islâmica, para formar divulgadores do Islã. Assim como temos os evangelistas, teremos os islamistas. A reversão de mulheres, no entanto, é coisa recente, impulsionada pela proliferação de redes sociais na internet. A maioria delas relata a mesma trajetória: encontraram um muçulmano online, principalmente no Orkut, apaixonaram-se e reverteram-se. Ao contar suas histórias, elas sempre mencionam a busca por uma pureza perdida, por uma união tradicional, por valores que o Islã oferece — ou parece oferecer.
O casamento, uma obrigação para um seguidor do profeta Muhammad, seria o passo seguinte, o que todas esperam, calmamente, cobertas pelo hejab. O homem muçulmano pode somar até quatro esposas, desde que tenha condições financeiras de sustentar todas elas e desde que a primeira mulher concorde. As obrigações delas são mais complexas: não mostrar sequer o cabelo em público, viver para o lar e, em caso de divórcio, abrir mão da guarda dos filhos se quiser casar-se de novo.
No islamismo, não existe namoro. Só noivado, período em que o casal pode conversar para se conhecer, mas não pode se tocar. Um dos muçulmanos mais cobiçados do Braz, o sheir Muhammad, líder espiritual da Mesquita do Pari, um sírio de 30 anos, simpático e doce, declaradamente virgem, diz que um homem comum escolhe uma mulher por uma dessas quatro razões: beleza, dinheiro, tradição familiar ou religião. Um muçulmano privilegia a religião. Então a única forma de fisgar um súdito de Allah é a reversão.
— O Islã pede ao homem para não colocar sobre a mulher o peso do trabalho.
Ela tem que gerar e educar os filhos. As regras do Corão são um manual de vida para a Humanidade. É isso que as brasileiras que vêm aqui andam buscando: tradição, integridade, respeito — diz o sheir. — O casamento é uma obrigação para nós. O profeta nos aconselhou a escolher uma mulher pela religião, porque os outros atributos que atraem um homem acabam. O Islã fica.
Os casos e acasos das brasileiras que adotaram o islamismo parecem coisa de novela. Glória Perez, autora de “O clone” e “Caminho das Índias”, faria uma festa no Braz. Marie Otis, ou Momina, também frequentadora da mesquita do Pari, contou sua saga sentada num café na estação de metrô Santa Cruz, uma das mais movimentadas de São Paulo, coberta pelo hejab, que ela só tira para entrar no escritório onde trabalha como secretária. Aos 47 anos, a moça nasceu no bairro do Ipiranga, numa família católica praticante, e depois enveredou pelos caminhos das religiões evangélicas. Passou por várias denominações diferentes. No amor, ela também já gramou por vários terrenos. Aos 17 anos, casou-se com um sujeito tão possessivo que a impedia até de falar com a própria irmã. Viveu com ele durante nove anos e teve dois filhos. Depois da separação e de muitos namoricos, engatou outro relacionamento e foi abandonada na véspera do casamento, com tudo pronto para a festa.
Em plena desilusão, conheceu pela internet um paquistanês chamado Jahanzeb, de 24 anos. Na primeira vez que se viram pela webcam, ela estava com os cabelos louros soltos, decotão e minissaia. Dois anos depois, Marie só mostra o rosto. O namoro durou até o final do ano, com direito a apresentação virtual das famílias, muitas brigas por ciúme e a reversão da paulistana, que diz ter encontrado no Islã o recolhimento que procurava.
— Nosso namoro era intenso. A gente se falava todos os dias, passava o fim de semana “juntos”, orava um pelo outro, até os jejuns do ramadã eu fazia com ele. Um dia ele disse que os pais decidiram não permitir o nosso casamento. Choramos muito — conta. — O Islã surgiu na hora certa. Em termos de religião, nunca me senti tão completa. A pureza do Jahanzeb me encantou. Agora ando de paquera com outro paquistanês, o Wacas. Ainda não sei se vamos nos casar. Ele diz que quer uma companheira e eu sou uma candidata fortíssima.
Na semana passada, me mostrou para a família dele. Isso é um passo sério.
Vanessa Fernandes Furtado, a Aisha, de 29 anos, faz o tipo muçulmana versão light.
No trajeto entre o bairro Ana Rosa e o Braz, pilotando seu Ford Ka, ela fumou alguns cigarros, um haraam — ou pecado, segundo os preceitos islâmicos — e contou várias histórias divertidas. Estudante de publicidade e funcionária da Assembleia Legislativa, Aisha também entrou no islamismo pela porta virtual. Há quase três anos, ela conheceu um egípcio na inauguração de uma loja em São Paulo. O moço a adicionou na sua comunidade no Orkut.
A partir daí, a moça se viu cercada de muçulmanos por todos os lados. Toda hora aparecia alguém pedindo para ser seu amigo. Assim, ela passou meses papeando sobre o Islã. Por pura curiosidade.
Um belo dia, surgiu na tela de Aisha um rapaz paquistanês chamado Ahmed, radicado em Dubai. Foi paixão à primeira teclada. O namoro durou dois anos. Em meados de 2008, numa sexta-feira, dia sagrado do islamismo, ela entrou pela primeira vez numa mesquita. Logo depois fez a reversão. De lá pra cá, Aisha já namorou alguns seguidores do profeta Muhammad, com direito a uma relação ao vivo e em cores com o libanês Yosse, que tinha que voltar para casa às seis da tarde para a última oração com a família.
— Como é que a gente se apaixona por um cara que não conhece? Não sei, mas aconteceu. O Ahmed foi um namorado mesmo. Até dinheiro ele me emprestou num momento em que fiquei sem trabalho.
Nossa relação terminou com uma briga feia, bitch para cá, bitch para lá. Ele era ciumento. Se eu não estivesse conectada é porque estava com outro. Uma loucura — diz. — Hoje eu prefiro namorar muçulmanos que moram aqui. O Yosse foi uma paixão que durou quatro meses, mas a família dele era tradicional demais, não ia permitir. Fora essa coisa de namoro, casamento, o Islã passou a ser a minha filosofia de vida. Fui me identificando. Minha essência continua ocidental, mas a forma de pensar agora é oriental. Quero um casamento à moda antiga. Quero respeito.
Uma das melhores amigas de Aisha é Eryanne Azevedo, a Khadeejah, de 32 anos.
A moça acaba de passar por uma experiência traumática. Tudo começou com um convite de um amigo para participar do Hikut, uma versão asiática do Orkut. Ela diz que de uma hora para a outra passou a conhecer “a Índia inteira”. E, entre os seus novos amigos, estava Sameer, um rapaz radicado em Dubai. Khadeejah, uma moça rebelde, vinda de uma história de baladas e busca religiosa — ela já foi do espiritismo, da umbanda, estudou bruxaria e também passeou pelo mundo evangélico antes de se encontrar no islamismo —, apaixonou-se imediatamente. Suspirando, conta que o garoto exibia valores familiares que ela já havia perdido há muito tempo. Dois meses de papo depois, ficaram noivos. O plano era simples: Khadeejah iria para Dubai e, assim que tivessem dinheiro para construir uma casa, mudariam para a Índia, onde viveriam felizes para sempre. Enquanto o futuro não vinha, Khadeejah entrou de cabeça no mundo islâmico. Procurou o Centro de Cultura Síria para estudar árabe e acabou na Mesquita do Pari, levada por seu professor. Em novembro de 2007, fez a reversão e, no dia 15 de janeiro deste ano, embarcou para Dubai. Pediu ao noivo que não a buscasse no aeroporto. Queria se preparar. Na noite seguinte à chegada, Sameer apareceu no hotel dirigindo uma Mercedes vermelha, com um buquê de rosas também vermelhas.
— O primeiro dia foi uma coisa de filme, mas, no seguinte, ele não apareceu. No terceiro dia, nos vimos e o Sameer era outra pessoa. Nunca mais nos falamos.
Pela internet, ele me passava a imagem de um cara que não era ligado nas tradições, que aceitaria uma brasileira com um passado — conta. — Consegui ficar na casa de uns amigos da internet por uma semana.
Depois trabalhei de babá por mais uma semana e voltei. Por outro lado, me senti em casa. Podia andar nas ruas de hejab sem me sentir uma louca. Aqui em São Paulo temos amigas que já até apanharam.
Ainda quero viver no mundo muçulmano.
Finais felizes também acontecem. Tamara Fonseca, de 24 anos, anda rindo à toa.
No fim do mês, seu noivo, Shams, um afegão nascido em Londres, chega a São Paulo para o casório. Ele acaba de terminar o curso de direito islâmico na Arábia Saudita, onde vive há oito anos, e agora o casal vai se estabelecer na Inglaterra. Tamara se converteu aos 19 anos, depois que ganhou o Corão de um namorado libanês que terminou o relacionamento porque havia sido prometido para uma prima.
Decidida, a estilista formada pela Unipe conta que usa o véu até na academia. E, no trabalho, estende o tapete ao lado da mesa para cumprir a meta de orar cinco vezes ao dia, como manda o figurino. Ou o Corão.
— Quando virei muçulmana, fui demitida do emprego por causa do véu. Aí comecei a procurar um novo trabalho e não arrumava nada. Resolvi, então, fazer um teste. Fui a uma entrevista sem o hejab e saí contratada. Mas no primeiro dia apareci vestida como muçulmana, expliquei para o meu chefe e ele aceitou — conta a estilista. — No começo, minha mãe achou que eu ia virar uma mulherbomba.
Meu pai e meu irmão surtaram.
Hoje eles estão felizes com o meu casamento.
Eu estou ansiosa, mas sei que o Shans é o cara.
Todas essas histórias, colhidas no frenesi paulistano, transbordam algo de surreal.
Sentadas na bodega de Abou Ali ou circulando no caos de São Paulo, essas mulheres parecem ter inventado uma espécie de cápsula do tempo. Uma cena presenciada na antessala do sheir Muhhammad encerra a fábula com chave de ouro. Uma moça de olhos muito azuis, coberta dos pés à cabeça com uma túnica e um hejab também azuis, cercada de amigas que seguram a sua mão, mantém um sorriso congelado no rosto, enquanto espera sentada num sofá. O nome dela é Eliane Marzani, tem 41 anos, vem de família budista e já foi casada por 19 anos. Chegou à mesquita em novembro de 2006. Queria somente aprender árabe para complementar sua profissão: professora de dança do ventre. Mas acabou se apaixonando pela religião e foi ficando. Eliane está ali, com cara de quem viu passarinho verde, aguardando o noivo, um rapaz que ela simplesmente não conhece, pedir a permissão do sheir para o casamento, que deve acontecer durante o ramadã, o agosto sagrado do islamismo.
— Como é o nome dele? — Marcelo.
— E o sobrenome? — Não sei.
— Quantos anos ele tem? — 23.
— Há quanto tempo estão juntos? — É uma coisa louca. Ele falou comigo uma única vez, há muito tempo, em nome de um amigo dele de Fortaleza que queria uma noiva. Não deu certo, eu não gostei do cara. Há uma semana, o Marcelo me ligou e me pediu em casamento.
— E você aceitou? — Acho que a juventude dele e a minha experiência vão gerar bons frutos.
— Vocês já se encontraram depois desse telefonema? — Desde então, nos falamos pela internet, pelo telefone. E rolou um beijinho aqui na mesquita. Mas o sheir falou que não podemos ter contato até o casamento.
— E isso é bom? — É maravilhoso.
Não à toa, uma velhinha libanesa, dona Radja, 40 anos de Brasil mas sotaque de quem chegou ontem, vive pelos corredores da mesquita fazendo a mesma pergunta para qualquer mulher que aparece: — Quer casar?