
DEU A LOUCA NA PRAÇA
Somos um país meio estranho em alguns aspectos. Um português proclamou a independência; um monarquista proclamou a República; a revolução contra as oligarquias em 1930 foi feita pelas próprias oligarquias; o presidente da redemocratização em 1985, Zé Sarney, foi homem dos milicos; o Oeste Novo Paulista não fica no Oeste de São Paulo; a terra roxa nunca foi roxa; e na Praça Tiradentes - aqui no Rio - a estátua é a de D. Pedro I [ fato mais inusitado ainda se lembrarmos que foi a avó do primeiro Pedro, Dona Maria, a Louca, que mandou matar o alferes Joaquim José da Silva Xavier]. É mole?
Para esse último fato, ao menos, cabe explicação. Acontece que a figura do alferes praticamente desaparece da memória histórica brasileira após sua execução, pertinho da atual praça Tiradentes. É natural. Explico no próximo parágrafo.
Tiradentes era republicano e conspirou contra os Bragança - família de Dona Maria, Dom João VI e dos dois Pedros que governaram o Brasil. Enquanto fomos monarquia e tivemos Bragança no poder, necas de pitibiribas de homenagear o enforcado. Quando muito, era mencionado como vil traidor ou como homem de caráter fraco, incapaz de liderar qualquer movimento mais articulado contra a ordem estabelecida.
Quando a República foi proclamada, cem anos depois da Inconfidência Mineira, os novos donos da cocada preta resolveram escolher um herói nacional representativo do novo regime. Houve polêmica entre dois candidatos - Tiradentes e Frei Caneca, o líder da Confederação do Equador de 1824. O barbudo levou a melhor.
Disse barbudo, mas faço a emenda. Tiradentes nunca teve um visual daquele - barba a Antônio Conselheiro e cabelo a Bufalo Bill. O pintor Décio Villares, por exemplo, que recebeu a encomenda de retratar o herói nacional republicano, não tinha referência nenhuma sobre como seria o alferes quando foi executado. Ninguém tinha, aliás. Villares não teve dúvidas - pintou Jesus Cristo e substituiu a cruz pela forca; como a comparar o sacrifício do Filho do Homem pela humanidade ao sacrifício de Tiradentes pela República e pelo Brasil.
Assim como fez Villares, Pedro Américo, Eduardo Sá, João Turin e Virgílio Cestari pintaram ou esculpiram o alferes com ares cristãos. Sabemos, porém, que à época os condenados tinham cabelos e barbas raspados. Tiradentes foi enforcado carequinha da Silva, podem crer.
Voltemos ao tema central, até porque não sou a pessoa mais indicada para falar desses assuntos capilares. Quando os republicanos resolveram fazer de Tiradentes o herói nacional, a praça mais próxima do local da execução do alferes - o velho Largo do Rocio, perto do Campo da Lampadosa - recebeu a denominação do herói. Havia, porém, um probleminha. A estátua de D. Pedro I já estava ali desde 1862, num marco em louvor ao Grito do Ipiranga (episódio que, admitamos, foi tão emocionante como uma corrida de cágados sob efeito de Lexotan).
A coisa ganhou contornos de provocação entre republicanos e monarquistas. Nesse Fla X Flu pelo controle da memória nacional, os primeiros insistiam em derrubar a estátua equestre do Imperador; os outros ameaçavam fazer um furdunço memorável se a demolição ocorresse. Após muita polêmica, chegou-se a uma solução brasileiríssima - a estátua de D. Pedro I foi mantida e a praça passou mesmo a se chamar Tiradentes. Bela pizza, não acham?
Agora, experimentem explicar a um turista por que a praça que homenageia o mártir da independência tem uma estátua do neto da velha que mandou executar o herói. Sou capaz mesmo de apostar que, numa pesquisa com cem cariocas que cruzem a praça em uma tarde, a maioria vai dizer que a estátua é a de Tiradentes. Cáspite !
Quanto a este escriba, confesso. A referência emocional (infantil, portanto, que é quando essas coisas se consolidam no cabra) que tenho de Tiradentes é a de Francisco Cuoco representando o mártir na novela Saramandaia. Da Inconfidência Mineira, levo uma lição que tento praticar com sagrada obediência - após um dia intenso de trabalho nos trópicos, há que se tomar civilizadamente umas cervejas geladas quando o sol se põe. É a manjada liberdade, ainda que à tardinha.
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Oximoro, nosso tropo
O Brasil é um país em que
a independência ante Portugal foi proclamada por um português,
a República foi proclamada por um monarquista,
o mais radical movimento igualitário foi liderado por um pregador moralizante e religioso,
a Revolução Burguesa foi feita pelas oligarquias,
a eleição republicana-moderna (1930) teve sufrágio mais restrito que a eleição monárquica-imperial (1821),
o mais ilustre gesto de um presidente foi um suicídio,
o racismo é encoberto por um termo ('democracia racial') inaugurado em público pelo maior líder do movimento negro,
a subvenção pública e a estatização floresceram na ditadura de direita,
a redemocratização foi presidida por um homem da própria ditadura,
a discriminação racial é mais visivelmente proibida justo no lugar onde ela mais obviamente se manifesta,
só se removeu por corrupção o presidente cuja única plataforma eleitoral era varrê-la,
a maior privatização foi feita pelo príncipe da sociologia terceiromundista e esquerdizante,
a universalização do capitalismo e o auge dos lucros bancários se dão sob o líder sindical que fundou um partido socialista e ....
numa Praça Tiradentes não há estátua de Tiradentes, mas de D. Pedro I, neto da Dona Maria que ordenara a morte do alferes. Essa incongruência não diz algo sobre o que somos?
O Luiz Antonio Simas, em cujo texto este post se inspira, me lembrou de como começo os fatídicos cursos de "Introdução à cultura brasileira" que às vezes me cabe ditar. Peço que abram o dicionário no verbete "óximoro" e começamos a conversa a partir daí.
Mesmo que Tom Jobim não tivesse feito mais nada, só pela frase o Brasil não é para principiantes ele já mereceria nossa memória.