Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Fórum de discussão de assuntos relevantes para o ateísmo, agnosticismo, humanismo e ceticismo. Defesa da razão e do Método Científico. Combate ao fanatismo e ao fundamentalismo religioso.
Avatar do usuário
Jack Torrance
Mensagens: 4488
Registrado em: 30 Out 2005, 16:56
Gênero: Masculino
Localização: São José do Rio Preto/SP
Contato:

Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Jack Torrance »

Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mestrado da 'invisibilidade pública'.

Ele comprovou que, em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro.

Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social.

Plínio Delphino, Diário de São Paulo.

O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou oito anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali, constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são 'seres invisíveis, sem nome'.

Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da 'invisibilidade pública', ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa.

Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário de R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior lição de sua vida:

'Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência', explica o pesquisador.

O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não como um ser humano. 'Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um orelhão', diz.

Apesar do castigo do sol forte, do trabalho pesado e das humilhações diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com quem os enxerga. E encontram no silêncio a defesa contra quem os ignora.

Diário - Como é que você teve essa idéia?

Fernando Braga da Costa - Meu orientador desde a graduação, o professor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma das provas de avaliação, que a gente se engajasse numa tarefa proletária. Uma forma de atividade profissional que não exigisse qualificação técnica nem acadêmica. Então, basicamente, profissões das classes pobres.

Com que objetivo?

A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição de trabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão inseridos na cena pública. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica a qual eles estão sujeitos dentro da sociedade. Outro nível de investigação, que vai ser priorizado agora no doutorado, é analisar e verificar as barreiras e as aberturas que se operam no encontro do psicólogo social com os garis.

Que barreiras são essas, que aberturas são essas, e como se dá a aproximação?

Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se tratava de um estudante fazendo pesquisa?

Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal.

Chegando lá eu tinha a expectativa de me apresentar como novo funcionário, recém-contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas os garis sacaram logo, entretanto nada me disseram. Existe uma coisa típica dos garis: são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos em geral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o diferencial, porque muitos garis ali são brancos também. Você tem uma série de fatores que são ainda mais determinantes, como a maneira de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a maneira como gesticulamos. Os garis conseguem definir essa diferenças com algumas frases que são simplesmente formidáveis.

Dê um exemplo.

Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a papear com um dos garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de couro na mão. O sujeito passou pela gente e não nos cumprimentou, o que é comum nessas situações. O gari, sem se referir claramente ao homem que acabara de passar, virou-se pra mim e começou a falar: 'É Fernando, quando o sujeito vem andando você logo sabe se o cabra é do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não faz barulho. Já o pessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos passos. E quando a gente está esperando o trem logo percebe também: o peão fica todo encolhidinho olhando pra baixo. Eles não. Ficam com olhar só por cima de toda a peãozada, segurando a pastinha na mão'.

Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que você era diferente?

Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primeiro dia de trabalho já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era um gari.

Fui tratado de uma forma completamente diferente. Os garis são carregados na caçamba da caminhonete junto com as ferramentas. É como se eles fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar na caçamba, quiseram que eu fosse na cabine. Tive de insistir muito para poder viajar com eles na caçamba. Chegando no lugar de trabalho, continuaram me tratando diferente.

As vassouras eram todas muito velhas. A única vassoura nova já estava reservada para mim. Não me deixaram usar a pá e a enxada, porque era um serviço mais pesado. Eles fizeram questão de que eu trabalhasse só com a vassoura e, mesmo assim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão de que os garis sabiam que eu não tinha a mesma origem socioeconômica deles.

Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?

Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.

Eles testaram você?

No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente estava num grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse: 'E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?' E eu bebi.

Imediatamente a ansiedade parece que evaporou. Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.

O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?

Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central. Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico, passei em frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma angustia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar, não senti o gosto da comida e voltei para o trabalho atordoado.

E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?


Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se aproximando - professor meu - até parava de varrer, porque ele ia passar por mim, podia trocar uma idéia, mas o pessoal passava como se tivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão.

E quando você volta para casa, para seu mundo real?

Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você está inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais. Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, freqüento a casa deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador.

Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se fossem uma 'COISA'.




Fernando Braga da Costa. GARIS - Um estudo de Psicologia sobre invisibilidade pública. 2002. 230 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Universidade de São Paulo, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Orientador: Jose Moura Gonçalves Filho.

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextua ... K4785868Z2
“No BOPE tem guerreiros que matam guerrilheiros, a faca entre os dentes esfolam eles inteiros, matam, esfolam, sempre com o seu fuzil, no BOPE tem guerreiros que acreditam no Brasil.”

“Homem de preto qual é sua missão? Entrar pelas favelas e deixar corpo no chão! Homem de preto o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o Satanás!”

Soldados do BOPE sobre BOPE

Avatar do usuário
Reid
Mensagens: 2057
Registrado em: 26 Dez 2008, 10:17
Gênero: Masculino

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Reid »

muito bom :emoticon45:

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

O que é um "trabalhador" e por que motivo eu cumprimentaria qualquer pessoa apenas porque "trabalha"?

Papo esquerdistóide. Ainda diz que chega em casa e chora. Putz.
Imagem

Avatar do usuário
zumbi filosófico
Mensagens: 2054
Registrado em: 19 Out 2007, 20:01
Gênero: Masculino

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por zumbi filosófico »

Apo escreveu:O que é um "trabalhador" e por que motivo eu cumprimentaria qualquer pessoa apenas porque "trabalha"?

Papo esquerdistóide. Ainda diz que chega em casa e chora. Putz.


Digamos, se você trabalhasse num dado local, fosse demitida, e depois só conseguisse um emprego como gari, por acaso trabalhando próximo de onde trabalhava antes, e visse gente que costumava ver no trabalho, mas as pessoas "não te vissem", mesmo se literalmente esbarrassem com você uma vez ou outra. Acharia simplesmente normal, não ficaria nem um pouco abalada pela situação?



Acho que o estudo pode ser criticável em um monte de aspectos pelo que está aí, mas não vi nada demais em linhas gerais.
Imagem

Avatar do usuário
user f.k.a. Cabeção
Moderador
Mensagens: 7977
Registrado em: 22 Out 2005, 10:07
Contato:

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por user f.k.a. Cabeção »

8 anos pra completar um mestrado?
"Let 'em all go to hell, except cave 76" ~ Cave 76's national anthem

Avatar do usuário
zumbi filosófico
Mensagens: 2054
Registrado em: 19 Out 2007, 20:01
Gênero: Masculino

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por zumbi filosófico »

Sorte dele que resolveu fazer uam tese sobre garis e não sobre escravidão ou campos de concentração nazistas.
Imagem

Avatar do usuário
user f.k.a. Cabeção
Moderador
Mensagens: 7977
Registrado em: 22 Out 2005, 10:07
Contato:

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por user f.k.a. Cabeção »


Acho que o cara fez foi um mestrado aplicado sobre parasitismo academico-social.

O cara, que deve ser petista, fingiu que fingia ser gari por 8 anos enquanto ganhava bolsa da FAPESP.

Porra, eu achava que tinha limite de tempo para apresentacao da dissertacao!
"Let 'em all go to hell, except cave 76" ~ Cave 76's national anthem

Avatar do usuário
Jack Torrance
Mensagens: 4488
Registrado em: 30 Out 2005, 16:56
Gênero: Masculino
Localização: São José do Rio Preto/SP
Contato:

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Jack Torrance »

Só uma coisinha: eu não cumprimento quem não conheço.

Claro que se eu esbarrar numa pessoa, vou me desculpar.
“No BOPE tem guerreiros que matam guerrilheiros, a faca entre os dentes esfolam eles inteiros, matam, esfolam, sempre com o seu fuzil, no BOPE tem guerreiros que acreditam no Brasil.”

“Homem de preto qual é sua missão? Entrar pelas favelas e deixar corpo no chão! Homem de preto o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o Satanás!”

Soldados do BOPE sobre BOPE

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

zumbi filosófico escreveu:
Apo escreveu:O que é um "trabalhador" e por que motivo eu cumprimentaria qualquer pessoa apenas porque "trabalha"?

Papo esquerdistóide. Ainda diz que chega em casa e chora. Putz.


Digamos, se você trabalhasse num dado local, fosse demitida, e depois só conseguisse um emprego como gari, por acaso trabalhando próximo de onde trabalhava antes, e visse gente que costumava ver no trabalho, mas as pessoas "não te vissem", mesmo se literalmente esbarrassem com você uma vez ou outra. Acharia simplesmente normal, não ficaria nem um pouco abalada pela situação?



Acho que o estudo pode ser criticável em um monte de aspectos pelo que está aí, mas não vi nada demais em linhas gerais.


Não é esta a questão. É o discurso da tal vitimização. Se eu tivesse vínculo com as pessoas e elas me virassem a cara porque fui para um emprego ganhando menos ou por juntar o lixo delas, o problema é delas e não meu. Não posso mandar nas sensações dos outros e elas na verdade eram apenas colegas e não pessoas especiais para mim. Bom enquanto estive no grupo delas e a fila anda.
Mas esta coisa de chamar de "trabalhador" já é rotulo esquerdista a priori. Todo mundo que trabalha é trabalhador! E dizer que os caras são invisíveis...para mim todo mundo que não está no meu círculo mais próximo ou não tem algum motivo para me chamar atenção é invisível.
Agora só me falta eu dar tratamento mais humano ou especial para gente que não conheço, mas é paga por mim, só porque é desta ou daquela profissão.
É como um doutor ( academicamente falando ou nem sendo doutor de fato ) exigir que eu o trate por doutor a qualquer hora do dia porque ele é notoriamente importante.
Se eu cruzar com o Lula na rua ou com o Papa, serão igualmente invisíveis, que não vou babar saco de ninguém.
Imagem

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

Jack Torrance escreveu:Só uma coisinha: eu não cumprimento quem não conheço.

Claro que se eu esbarrar numa pessoa, vou me desculpar.


Como me desculpo com pessoas próximas também. Faço por educação e indistintamente. Embora alguns nem mereçam. Se não merecer mesmo, também declino de educações excessivas. Prefiro me cuidar para nem chegar muito perto.
Imagem

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

user f.k.a. Cabeção escreveu:8 anos pra completar um mestrado?


Pois é. Se alguém tem dificuldades para cursar ou pagar, ainda se aceita.
Mas este cara parece ter feito as coisas pra virar um pobre coitado.
Tem mais é que tomar café frio com gari mesmo e ser invisível.
Imagem

Avatar do usuário
Mucuna
Mensagens: 847
Registrado em: 23 Nov 2006, 17:29
Gênero: Masculino
Localização: Rio de Janeiro - RJ
Contato:

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Mucuna »

Sei que não é o caso do mestrado do cara, mas alguém já teve a curiosidade de se colocar numa experiência parecida com essa, como mendigar por um dia (não precisa ser o dia inteiro) só para ver como é? Seja por uma curiosidade antropológica, uma vivência, ou sei lá mais o que.
It's fun to stay at the...
Imagem
YMCA!

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

Mucuna escreveu:Sei que não é o caso do mestrado do cara, mas alguém já teve a curiosidade de se colocar numa experiência parecida com essa, como mendigar por um dia (não precisa ser o dia inteiro) só para ver como é? Seja por uma curiosidade antropológica, uma vivência, ou sei lá mais o que.


Pertencer de verdade a uma realidade é muito menos penoso do que passar pela experiência algum tempo, principalmente quando nunca se esteve numa realidade diferente. Nossas referências são as de nosso meio e nela costumamos nos sentir de certa forma reconhecidos pelos iguais e seguros de nossas ações. Não é à toa que muitos se sentem mal quando entram num local mais luxuoso ou são obrigados a falar com pessoas de um nível social mais elevado ( seja econômico ou intelectual ).

Fazer a coisa sem ser genuinamente aquilo é como incorporar um personagem e tentar empatizar com ele, mas sem a bagagem e o modelo reais de como ser, fazer, agir e pensar. Pode causar desconforto, mas de um tipo forçado.
Não que seja bom ser gari ou mendigo, mas não me sinto nada bem sendo um cirurgião cardíaco igualmente. Para mim, seria extremamente estressante. Às vezes superestimamos ou subestimamos uma situação, apenas porque se criou mitos em torno dela.

Mas um gari não é como um mendigo, que não é como um coveiro, que não é como um aposentado público, que queria ter sido um grande empresário e nunca conseguiu.

Não se pode imputar ao gari uma qualificação assim grosseira e desqualificada, pois eles têm uma função muito importante, como a de todos numa sociedade. Deveriam talvez ganhar mais, ou ter melhores condições de trabalho, mas quase todo mundo têm seus problemas com o próprio trabalho ou na relação com o trabalho em si. Isto é uma outra pauta.

A postura deles em beber café num recipiente sujo e grudento não é louvável, e nem precisa ser vista como trágica. Por que garis têm que tomar café num recipiente assim? Quando você acampa em camping selvagem, por exemplo, as condições de higiene podem chegar a extremos, mas cada um inventa uma forma de se manter limpo. Cria-se a cultura da sujeira na pobreza e o pobre acaba achando que não consegue tomar banho todo dia e acaba por tomar 1 vez por semana porque, afinal, é pobre mesmo. Deixa a louça na pia porque a casa é pequena e não tem detergente de gente rica pra lavar a louça com glamour.

Esquerdismos gostam de tranformar a pobreza em desgraça absoluta sem saída.
Não é por acaso que este sujeito escolheu se misturar com garis, só para validar a tese dele.
Se um dia um destes garis cruzar com ele na vida acadêmica, aposto que ele vai pensar:

- Como é que que este gari veio parar aqui tão perto de mim, que levei 8 anos para terminar o curso?
Imagem

Avatar do usuário
Mucuna
Mensagens: 847
Registrado em: 23 Nov 2006, 17:29
Gênero: Masculino
Localização: Rio de Janeiro - RJ
Contato:

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Mucuna »

Antes de mais nada, não é questão de diminuir o gari! Com certeza ele tem um trabalho util que serve a todos e que, apesar de não querer estar no lugar dele, não vejo como degradante de forma nenhuma.

Por isso que coloquei "diferente do mestrado do cara" no começo do post.
Aconteceu que as sensações descritas e o rumo da prosa fez lembrar-me disso.

Claro que é muito mais desconfortável para mim estar no lugar de um mendigo, por exemplo, pois não estou acostumado com aquela situação, porém não diria ser pior. Pior é ser um mendigo de fato.

Não sei se fingir ser um cirurgião cardiaco é tão "estressante" tanto... E nem poderei, pois se eu andar por aí fingindo ser um cirurgião cardiaco, vou acabar sendo preso. :emoticon16:

Acredito que seria apenas diferente.

A questão do mendigo é vc realmente ser um fantasma. Falar com as pessoas e elas passarem direto por vc ou resmungando algo sem nem olhar nos seus olhos é muito ruim. Posso achar pior pq não estou acostumado, mas não posso deixar de achar q vc se acostumar com isso seja algo que não te faça bem. Sei la, te despersonaliza...

Pode ver mais pelo sentimentalismo, eu tento ver mais pela empatia. Depois disso, lembro de ter parado para ouvir um mendigo que falou comigo. Pediu dinheiro, não dei, mas troquei algumas palavras com ele olhando no olho. Ele agradeceu por isso, falando que raramente alguém para e fala com ele dessa forma.
It's fun to stay at the...
Imagem
YMCA!

Avatar do usuário
Fernando Silva
Administrador
Mensagens: 20080
Registrado em: 25 Out 2005, 11:21
Gênero: Masculino
Localização: Rio de Janeiro, RJ
Contato:

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Fernando Silva »

Comigo é o contrário: eu me sinto mal se o pessoal da limpeza não fala comigo.
Eu me sinto mal quando as pessoas param de falar ou se assustam quando eu chego perto.
Eu sempre digo "Oi" ou coisa parecida aos serventes. Assim, eles passam a me dizer "Oi" também e eu não me sinto mais um monstro andando pelos corredores.

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

Fernando Silva escreveu:Comigo é o contrário: eu me sinto mal se o pessoal da limpeza não fala comigo.
Eu me sinto mal quando as pessoas param de falar ou se assustam quando eu chego perto.
Eu sempre digo "Oi" ou coisa parecida aos serventes. Assim, eles passam a me dizer "Oi" também e eu não me sinto mais um monstro andando pelos corredores.


Engraçado isto. Também tenho momentos em que me sinto mal quando a "turma dos serviços gerais" me olha esquisito porque tenho uma mesa fixa no escritório, porque não uso uniforme ou saio de carro.
Na maioria dos lugares e trabalhei ( e faço isto no shopping também com as moças que limpam os banheiros), acabo por estabelecer um certo contato visual ou conversas ocasionais, que não interfiram em questões pessoais ou profissionais. Muitos não fazem isto.

Mas me sinto assim, não por alguma questão pessoal de ser boazinha ou querer que todo mundo fale comigo, é algo entre natural e porque acho que alguns distanciamentos criam mal estar excessivo.
Imagem

Avatar do usuário
Herf
Mensagens: 1178
Registrado em: 03 Mar 2007, 15:38

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Herf »

Apo escreveu:
Fernando Silva escreveu:Comigo é o contrário: eu me sinto mal se o pessoal da limpeza não fala comigo.
Eu me sinto mal quando as pessoas param de falar ou se assustam quando eu chego perto.
Eu sempre digo "Oi" ou coisa parecida aos serventes. Assim, eles passam a me dizer "Oi" também e eu não me sinto mais um monstro andando pelos corredores.


Engraçado isto. Também tenho momentos em que me sinto mal quando a "turma dos serviços gerais" me olha esquisito porque tenho uma mesa fixa no escritório, porque não uso uniforme ou saio de carro.
Na maioria dos lugares e trabalhei ( e faço isto no shopping também com as moças que limpam os banheiros), acabo por estabelecer um certo contato visual ou conversas ocasionais, que não interfiram em questões pessoais ou profissionais. Muitos não fazem isto.

Mas me sinto assim, não por alguma questão pessoal de ser boazinha ou querer que todo mundo fale comigo, é algo entre natural e porque acho que alguns distanciamentos criam mal estar excessivo.

O autor do estudo chama de "doença burguesa" o hábito de ignorar pessoas que não se conhece de classes de poder aquisitivo mais baixo.

O que demonstra o "ranço pobrista/anti-burguês" desse sujeito é que ele mesmo descreve que é comum os garis tratarem os "do dinheiro" de forma diferente - como por não deixarem que ele pegasse na enxada e não quererem que ele viajasse na caçamba, ou então isso que você descreveu que ocorre no seu trabalho -, sem, no entanto, concluir que exista aí uma "doença proletária", da qual eles devessem ser curados.

Patético.

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

Mucuna escreveu:Antes de mais nada, não é questão de diminuir o gari! Com certeza ele tem um trabalho util que serve a todos e que, apesar de não querer estar no lugar dele, não vejo como degradante de forma nenhuma.

Não quis dizer no seu caso, mas a cultura geral de vitimização costuma diminuir por uma questão óbvia: sem hipocrisias ninguém quer ser gari ou mendigo ou coisa tida como "inferior" na hierarquia social e econômica. Inferiores são atividades descritas como as que lidam com a inutilidade produtiva ( como mendigos), a parte "suja" da vida social (principalmente urbana), como lixeiros e a parte escatológica ( como o coveiro, por exemplo).
Por isso que coloquei "diferente do mestrado do cara" no começo do post.
Aconteceu que as sensações descritas e o rumo da prosa fez lembrar-me disso.

Lembra porque as sensações por ele descritas nada têm de novidade. Apenas que não costumamos nos expor à tais realidades durante tanto tempo e depois fazer questão de se mostrar "choroso" num mestrado.

Claro que é muito mais desconfortável para mim estar no lugar de um mendigo, por exemplo, pois não estou acostumado com aquela situação, porém não diria ser pior. Pior é ser um mendigo de fato.

De fato. Mas é interessante o quanto pode ser um pesadelo ao cabo e ao fim de anos e anos de estudo, trocentas tentativas e lobby em ambientes de trabalho ( que são selvas injustas e cruéis também), o cara ver que vai se aposentar com algumas pontes de safena e a conclusão de que não teve vida pessoal em nome de algo que a maioria inveja e almeja, mas talvez por não saber a solidão a que leva. Não é assim para todos, mas pode ser dramático para aquela pessoa em especial e os que estão a volta.
Quero dizer com isto, que a despersonalização por você referida abaixo, é um fenômeno humano, absolutamente desvinculado do que se faz e que faz vítimas em todas as idades.

A despersonalização resultante da sensação de não ser útil, como o a do mendigo, que carrega o estigma assustador de não ter sido ninguém na vida é algo que não se pode minimizar assim tão facilmente, com cumprimentos ou uma conversa no banco da praça. Uma vez instalada, demandaria "tratamento" de reinserção o resto da vida e em tempo integral. Infelizmente não podemos, ainda mais hoje em dia, confiar em qualquer andarilho, cumprimentar qualquer estranho ou travar vínculos. Mas não preciso dizer nada disto, sei que você sabe bem todas as nuances aqui.

O mestrado do "gari" de brinquedo peca porque chega à conclusões ideológicas sobre uma vivência por ele criada e não genuína. Para fins de estudo de caso, me parece cheia de falhas.

Não sei se fingir ser um cirurgião cardiaco é tão "estressante" tanto... E nem poderei, pois se eu andar por aí fingindo ser um cirurgião cardiaco, vou acabar sendo preso. :emoticon16:


Sabe-se que muitos estudantes de Medicina arrepiam e acusam o golpe durante o curso. Alguns durante a residência. Deve ser muito pesado a ponto de causar trauma e o cara decidir partir para coisa que nada tem a ver com área.

A questão do mendigo é vc realmente ser um fantasma. Falar com as pessoas e elas passarem direto por vc ou resmungando algo sem nem olhar nos seus olhos é muito ruim. Posso achar pior pq não estou acostumado, mas não posso deixar de achar q vc se acostumar com isso seja algo que não te faça bem. Sei la, te despersonaliza...


Não me segurei e falei ali em cima sobre esta situação. Até a sensação de despersonalização pode atacar de forma muito mais contundente quem não está acostumado com um certo grau de "invisibilidade". O ser humano, quando tem um grau de resistência emocional ou instinto de sobrevivência mais forte do que outros ( e eu sucumbiria muito antes deles em situação semelhante), pode até enlouquecer, distorcer a realidade, mas por exemplo...não se suicida. Outros, não suportam a própria condição e desistem de tudo. Sem qualquer julgamento aqui, os limites são estranhamente variados.

Pode ver mais pelo sentimentalismo, eu tento ver mais pela empatia. Depois disso, lembro de ter parado para ouvir um mendigo que falou comigo. Pediu dinheiro, não dei, mas troquei algumas palavras com ele olhando no olho. Ele agradeceu por isso, falando que raramente alguém para e fala com ele dessa forma.


Já passei várias experiências destas na vida. Algumas foram chocantes, outras foram indiferentes, outras ainda me fizeram desistir da tal empatia porque a reação da outra parte foi lamentável. Até apanhar e ser ofendida.
Teria casos exemplares para contar aqui. Mas enfim...
Imagem

Avatar do usuário
Apo
Mensagens: 25468
Registrado em: 27 Jul 2007, 00:00
Gênero: Feminino
Localização: Capital do Sul do Sul

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Apo »

Herf escreveu:
Apo escreveu:
Fernando Silva escreveu:Comigo é o contrário: eu me sinto mal se o pessoal da limpeza não fala comigo.
Eu me sinto mal quando as pessoas param de falar ou se assustam quando eu chego perto.
Eu sempre digo "Oi" ou coisa parecida aos serventes. Assim, eles passam a me dizer "Oi" também e eu não me sinto mais um monstro andando pelos corredores.


Engraçado isto. Também tenho momentos em que me sinto mal quando a "turma dos serviços gerais" me olha esquisito porque tenho uma mesa fixa no escritório, porque não uso uniforme ou saio de carro.
Na maioria dos lugares e trabalhei ( e faço isto no shopping também com as moças que limpam os banheiros), acabo por estabelecer um certo contato visual ou conversas ocasionais, que não interfiram em questões pessoais ou profissionais. Muitos não fazem isto.

Mas me sinto assim, não por alguma questão pessoal de ser boazinha ou querer que todo mundo fale comigo, é algo entre natural e porque acho que alguns distanciamentos criam mal estar excessivo.

O autor do estudo chama de "doença burguesa" o hábito de ignorar pessoas que não se conhece de classes de poder aquisitivo mais baixo.

O que demonstra o "ranço pobrista/anti-burguês" desse sujeito é que ele mesmo descreve que é comum os garis tratarem os "do dinheiro" de forma diferente - como por não deixarem que ele pegasse na enxada e não quererem que ele viajasse na caçamba, ou então isso que você descreveu que ocorre no seu trabalho -, sem, no entanto, concluir que exista aí uma "doença proletária", da qual eles devessem ser curados.

Patético.


Sim, para além das relações pessoais na sociedade que se cruzam em todas direções e com perfis variados, o mestrado do cara é ideológico e apenas isto. Um esquerdista que resolveu submergir na ideologia dele por 8 anos de propósito. E ainda conseguiu uma análise de caso pouco factível.
Imagem

Avatar do usuário
Mucuna
Mensagens: 847
Registrado em: 23 Nov 2006, 17:29
Gênero: Masculino
Localização: Rio de Janeiro - RJ
Contato:

Re: Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível

Mensagem por Mucuna »

É uma visão muito "romântica", mas como já disseram aqui, só cumprimento quem eu conheço ou com quem eu convivo.

Na rua, passo batido por um gari assim como passo batido por um juiz saindo de um forum. Não acho que seja doença isso ou doença aquilo. Simplesmente por morar numa metrópole, se eu for cumprimentar e acenar com a cabeça para todo mundo que eu cruzar na rua, no final de um dia estarei rouco e com torcicolo.

Como também já disseram, a "doença burguesa" tem contrapeso na "doença proletária", que é uma tremenda bobagem chama-las assim, pois estas "doenças", quando presentes, são na verdade apenas uma das inúmeras formas de rotular grupos, subgrupos, interseções, etc, prática antiga e bem disseminada, que geralmente se revela completamente equivocada.
It's fun to stay at the...
Imagem
YMCA!

Trancado