Entrevista: Estuprador pode passar Carnaval na rua
Marcelo Oliveira
Aprovada no dia 7 de agosto, a nova lei de estupro foi celebrada como um marco no combate ao crime, tanto por aumentar a pena para o delito, que agora é de 6 a 10 anos de prisão, quanto por retirá-lo dos "crimes contra os costumes" e tratá-lo dentro do Código Penal como um atentado à dignidade sexual. Entretanto, o procurador regional da República Artur Gueiros, que atua no Rio de Janeiro e é professor de Direito na UERJ, percebeu o que considera um erro grave do legislador na lei, que agora obriga as vítimas maiores de idade, inclusive em casos combinados com agressão ou morte, a representar contra o acusado, ou seja, demonstrar que têm interesse em processá-lo, na chamada ação pública condicionada à representação.
Na prática, isso significa que, além de um boletim de ocorrência, a vítima de estupro, que agora também pode ser do sexo masculino, já que o tipo deixou de ser exclusivamente relativo à penetração vaginal, terá que preencher um formulário na delegacia informando que, uma vez identificado o agressor, tem interesse em processá-lo.
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Nos processos já existentes na Justiça, e, portanto, com os agressores sexuais já identificados, as vítimas ou seus parentes (no caso de estupro com morte) terão que ser localizados dentro de seis meses e confirmar, perante o Judiciário, o interesse em prosseguir com a ação. Isto ocorre porque, neste tipo de alteração no código penal, o direito retroage em benefício do acusado.
Esse prazo de seis meses vence exatamente em 10 de fevereiro de 2010. Se as vítimas ou seus parentes não forem localizados até lá, todos esses processos caducarão por falta de interesse das vítimas e os acusados serão libertados. "Vai ser um caso de impunidade em massa. Com a decadência, o Estado não pode punir. Então no dia 10 de fevereiro, uma semana antes do Carnaval, teremos esse quadro lamentável e os estupradores poderão brincar o Carnaval", disse Gueiros, que é também doutor em direito pela USP, em entrevista a Terra Magazine.
Para tentar evitar o que qualifica como uma afronta ao princípio constitucional da dignidade humana, Gueiros, que integra o Ministério Público Federal há 16 anos, ingressou com uma representação à Procuradoria Geral da República, pedindo a inconstitucionalidade da lei no ponto em que condiciona os processos de estupro à representação da vítima. O pedido do procurador está sob análise da Vice-Procuradora Geral da República, Deborah Duprat. "Uma lei que ao invés de proteger esse direito constitucional, desprotege, pode ser considerada inconstitucional também", sustenta o procurador, conhecido por ter atuado no caso Banco Marka, que resultou na condenação do banqueiro Salvatore Cacciola.
Ficaram de fora da regra que condiciona os processos de estupro à representação da vítima os casos de violência sexual em que a vítima é menor de idade ou "pessoa vulnerável". Nesses casos, o Ministério Público não depende da confirmação da vítima para seguir com a acusação.
Leia a seguir a entrevista que Artur Gueiros concedeu a Terra Magazine
. Terra Magazine - Pela nova lei, é necessário que a vítima de estupro qualificado (por agressão ou morte, por exemplo) também represente, demonstre interesse em seguir com a ação. Sendo assim, como ficam os casos de vítimas fatais?
Artur Gueiros - Nesses casos, caberá aos familiares o direito de formular essa representação. Se não houver familiar, lamentavelmente, o fato ficará impune. Essa é uma das falhas que eu aponto nessa nova legislação.
Vítimas de estupro que forem agredidas também têm que representar?
Sim, tem que representar. A lei nova trouxe diversas novidades e trouxe uma muito infeliz que foi mexer na ação penal, que antes tinha um determinado regramento. E na lei atual isso mudou, gerando essas lacunas de impunidade.
No geral, a lei é boa. A que o senhor atribui esse problema na lei que condicionou os casos de estupro à representação?
É uma coisa inconcebível. A sociedade brasileira, quando atinar para o que aconteceu, vai ficar perplexa. Tenho a tese de que o legislador quis dar um valor maior ao estupro da pessoa vulnerável, menor de 18 anos, dizendo que nesses casos a ação é pública, incondicionada, não precisa de manifestação da vítima, mas em todos os demais casos, que não os vulneráveis, será necessaria a formalização de uma representação.
Todas as vítimas maiores de 18 anos terão que representar?
Exatamente. Não basta ser atendido na delegacia. Tem que formalizar um requerimento dizendo que deseja que o fato seja apurado. O que é gravíssimo é que essa regra é uma regra que beneficia o acusado.
Como é que ficam os processos já existentes?
Os processos de estupro qualificado, ou seja, por lesões corporais, casos em que a pessoa contraiu uma doença sexualmente transmissível, aids, sofreu aborto, ficou impossibilitada de trabalhar ou, nos casos de morte, todos esses processos que estão na Justiça precisam ser paralisados, para que se localize a vítima ou familiar para que ela formalize, se adaptando ao novo regramento, é uma regra que retroage em favor do réu. O que é mais grave é que essa representação tem um prazo, segundo o Código Penal, para ser formulada, prazo que começa a correr no dia em que a lei entrou em vigor. O prazo é de seis meses após a identificação do autor do crime. Ora, no processo que está tramitando na Justiça já tem o acusado do crime, então esse prazo começa a contar a partir de 10 de agosto.
Ou seja, em 10 de fevereiro, acusados respondendo processo por estupro com morte ou agressão podem ir para a rua?
Vão pra rua, vai ser um festival de impunidade. Vai ser um caso de impunidade em massa. Com a decadência, o Estado não pode punir. Então no dia 10 de fevereiro, uma semana antes do Carnaval, teremos esse quadro lamentável. Isso é um fato gravíssimo. As pessoas precisam tomar uma providência. Eu já tomei a minha, que foi requerer ao Procurador Geral da República que peça ao Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade da regra que condiciona o processo de estupro à representação.
Só esse ponto?
Sim, a Constituição tem o princípio da dignidade humana. A vítima de um estupro tem a sua dignidade sexual violada. Uma lei que ao invés de proteger esse direito constitucional, desprotege, pode ser considerada inconstitucional também. Eu estou na expectativa de que o Procurador Geral entre o quanto antes com uma medida cautelar para suspender os efeitos desse artigo. Já existem habeas corpus impetrados por advogados com base na mudança da lei. O caos jurídico se avizinha. É preciso uma solução. Não se pode deixar para, uma semana antes do Carnaval, tirar da cartola uma solução para um fato tão grave. A pessoa que hoje for vítima de crime dessa natureza, além de ser hospitalizada, ou morrer, nesse caso, seus parentes, tem que ir à polícia e dizer: 'olha, eu quero que esse caso seja apurado'.
Dessa forma, a lei bate de frente com a lei Maria da Penha, em que casos de agressão à mulher não dependem mais de representação?
Sim, estive comentando com colegas na reunião da área criminal aqui em Brasília. Essa lei bate de frente, sim, pois a lei Maria da Penha diz que lesão leve é caso de ação pública incondicionada, o Ministério Público entra com a ação direta, mas se além de bater, estuprar, na lei nova, a ação é pública condicionada à representação. É totalmente contraditório.
Qual o maior problema de condicionar a ação de estupro à representação?
A representação você pode se arrepender e tirá-la. Você pode se retratar. Eu acuso alguém de estupro, depois volto a ter boas relações com o estuprador e faço uma retratação. Isso é inimaginável. Sou professor de direito penal da UERJ, dou aula há mais de dez anos, e é uma coisa inimaginável. Um crime tão grave com uma mudança tão absurda.