Segundo a seita deles, até no céu a separação continuará.
"O Globo" 15/06/10
Kleinfontein: onde ainda resiste o apartheid
Povoado de descendentes holandeses desrespeita a lei e expulsa negro do território
José Meirelles Passos
KLEINFONTEIN
O robusto Hendrick, figura tosca de grossos bigodes grisalhos, que vestia uma farda militar com camuflagem, veio correndo esbaforido em nossa direção e, ao cruzar a praça, disse algo em africaner — o idioma dos segregacionistas sul-africanos — em tom marcial.
Ao perceber que não tinha sido entendido, ele repetiu a frase em inglês com forte sotaque, apontando para Brian, o motorista: — Ele não pode estar aqui dentro! Hendrick, que se negou a dar seu sobrenome, era um dos guardas encarregados do portão de ferro, entre duas torres de tijolos, com holofotes, à entrada deste pequeno povoado rural à apenas 33 quilômetros de Pretória, a capital sul-africana. Aqui, 16 anos depois do fim do apartheid, só se admitem pessoas brancas.
Quando o carro do GLOBO se aproximara da entrada de Kleinfontein (Pequena Fonte, em africaner), Hendrick — certamente confundindo-o com veículo de um morador — acenara, dando passagem. Minutos depois, porém, percebeu que Brian era negro. Por isso, quando repórter e motorista já caminhavam dentro do território, que advoga autonomia e autodeterminação, apressou-se em expulsar Brian.
— Isso aqui é uma propriedade privada — justificou, referindo-se à extensa área ocupada por fazendas onde residem pouco mais de 200 famílias de africaners radicais, que se sentem deslocados pela maioria negra.
A reclamada privacidade era uma fachada.
Afinal, por ser branco, o repórter — que até então havia se identificado apenas como um visitante — poderia permanecer. A lei atual proíbe a discriminação racial. Mas em Kleinfontein e em outras duas comunidades separatistas existentes no país, passam por cima dela impunemente.
No momento da visita, a seleção da Holanda enfrentava a Dinamarca, em Johannesburgo. Mas não havia um televisor ligado em Kleinfontein, embora os seus moradores sejam descendentes dos originais Voortrekkers, ou Boers, de origem holandesa. Aqui só há olhos para o rúgbi, esporte praticado na escola primária local, onde o africaner é ensinado como a língua pátria.
— Aqui não acompanhamos o futebol.
A Copa do Mundo é lá fora. Não é esporte realmente de brancos — bufou Hendrick.
O único café de Kleinfontein estava vazio. Algumas pessoas caminhavam pela praça central, onde também há uma pequena mercearia e um consultório médico. Abordada pelo GLOBO, antes que o segurança Hendrick aparecesse, uma mulher se espantou com a presença do motorista negro. Ela abaixou os olhos rapidamente:
— Jamais olhou para mim. Nunca me senti tão mal na vida. Vou escrever uma carta para o presidente (Jacob) Zuma dizendo que, ao contrário do que ele diz, ainda não há democracia no país — diria Brian, pouco depois, desiludido como uma criança ao descobrir que Papai Noel não existe.
Em Kleinfontein ainda impera uma bíblia na qual não há mistura racial. Vigoram os preceitos da Igreja Reformada Holandesa e que, segundo o livro “Aspectos bíblicos do apartheid”, aplica também à vida depois da morte a antiga Lei das Zonas de Grupos, uma das bases do apartheid, dividindo a sociedade sul-africana. O texto reconforta os brancos que temiam se misturar aos negros no céu. Segundo ele, a Bíblia deixava bem claro que “na casa de meu Pai há muitas moradas”.
Kleinfontein é uma das três comunidades que buscam o Volkstaat — o estado do povo — que os africaners preferem denominar como a autodeterminação.
Aqui estranhos não podem fotografar.
Entrevistas? — Por favor, não insista — vociferou Hendrick. — Jornalistas não são bemvindos.
Na vitrine da minúscula agência imobiliária, na praça do povoado, há vários anúncios de terra para vender ali. Mas para adquirir algo é preciso satisfazer duas exigências: pagar em dinheiro e ser um autêntico africaner, etnia de apenas 7% da população da África do Sul.
— Kleinfontein é um núcleo do racismo sustentado, orquestrado por fundamentalistas africaners da ultra-direita — justificou Max du Preez, colunista do “Sunday Times”, de Johannesburgo.