Todos os homens são roxos
A Câmara dos Deputados está prestes a aprovar o Estatuto da Igualdade Racial (PL 6.264/05), uma das mais estúpidas iniciativas legislativas que eu já tive ocasião de apreciar. E asseguro que já li muitas bobagens oriundas das cabeças de nossos valorosos parlamentares.
O Estatuto é um aglomerado de 85 artigos que transitam entre o absolutamente ocioso e o manifestamente inconstitucional. Muito pouca coisa se salva. Chocaram-me sobremaneira os vários dispositivos (artigos 12, 17, 24 e 67) que tornam obrigatório o registro da "cor" do indivíduo numa série de documentos oficiais, como assento de nascimento, carteira de saúde, de trabalho, formulários de admissão e demissão, etc.
O pretexto é melhorar a produção de dados estatísticos sobre a discriminação. Só que, ao acatar a autodeclaração --a única forma não autoritária de classificar alguém-- e, ao mesmo tempo, acenar com vantagens para quem se afirmar negro, como o faz o Estatuto, a norma já introduz um viés que distorce o fenômeno que pretendia aferir. "Mutatis mutandis", é como se o funcionário de um instituto de pesquisas qualquer oferecesse um brinde a quem responder à pergunta da forma desejada pelo patrocinador da sondagem. Não dá para levar a sério.
No mais, talvez eu esteja ficando velho, mas a medida me lembra os famigerados passaportes internos da África do Sul, que, estampando indelevelmente a cor do cidadão num pedaço de papel, se tornaram o símbolo maior do odioso regime de segregação racial do "apartheid". A primeira coisa que os negros fizeram quando chegaram ao poder foi acabar com a classificação racial oficial. Custa-me crer que, por aqui, seja justamente o movimento negro que pretenda implantá-la.
Cidadãos são cidadãos, não importando se brancos, negros, amarelos ou roxos. Aliás, a título de protesto, vou me declarar roxo todas as vezes que tiver de declinar minha "raça". Não irei, com tal atitude, derrubar o sistema, mas certamente me divertirei ao observar como a burocracia reage ao inesperado.
Voltando ao Estatuto, a maior parte de suas determinações é desnecessária, pois nada mais faz do que repetir dispositivos já inscritos na Constituição, como o direito à saúde, à cultura, etc. Os parlamentares, entretanto, encontraram espaço para inserir alguns dispositivos bastante complicados. Além da classificação racial, vejo problemas graves nas cotas, que poderão ser estabelecidas para quase tudo, desde lugares nas universidades até postos na administração, e mesmo em empresas privadas, que receberiam incentivos fiscais.
Como já tive ocasião de afirmar em outras colunas, oponho-me à reserva de vagas principalmente por razões filosóficas. O pressuposto da ação afirmativa é o de que os erros do passado podem e devem ser compensados pela chamada discriminação positiva. Para resolver injustiças cometidas às vezes séculos atrás, suspendemos momentaneamente a igualdade jurídica entre os cidadãos --elemento fundamental da República-- e passamos a favorecer alguns dentre os milhões de descendentes do núcleo originalmente prejudicado. A idéia é que, ao patrocinar a ascensão social de uns poucos, acabamos por melhorar a auto-imagem do grupo, o que contribui para promover toda a comunidade.
Tenho dúvidas acerca de várias dessas premissas, mas admitamos, para efeitos de argumentação, que todas essas passagens sejam líquidas e certas. Ainda assim, teríamos o Estado se valendo de discriminação jurídica --o que, a meu ver, é sempre condenável. Não creio que dois erros, ainda que de sinal invertido, possam constituir um acerto.
Outra objeção importante às cotas diz respeito à definição de quem é negro. Menos mau que o Estatuto tenha optado pela autodeclaração. Mas vale observar que ela pode gerar novas e mais complicadas disputas. Meu filho David, por exemplo, é loiro e tem a pele perigosamente clara. Conta, porém, entre suas bisavós, com uma negra e uma índia. Pode legitimamente participar do sistema de cotas? Mesmo que não pudesse, não haveria instância capaz de impedi-lo, de vez que o critério é a auto-avaliação. Ou seja, estão escancaradas as portas para a avacalhação total.
Como era inevitável, as cotas deram lugar a normas disparatadas no Estatuto. É o caso do artigo 75, que exige a participação de pelo menos 20% de afro-brasileiros em todas as peças publicitárias exibidas no país. Trata-se de interferência absurda sobre a liberdade de criação. Como enfiar verossimilmente atores negros num filme que retrate invasões vikings ou a construção da muralha da China?
Outra pérola está no artigo 69, que proíbe empresas de exigir fotografias de candidatos a emprego. A norma é simplesmente ridícula quando aplicada a determinados ramos de atividade, como agências de modelos ou seleção de atores. De resto, as empresas estão, pelo próprio Estatuto, obrigadas a perguntar a cor do candidato no formulário de admissão (art. 67).
Também tenho sérias dúvidas acerca do dispositivo (art. 21) que reforça a obrigatoriedade do ensino de "História Geral da África e do Negro no Brasil" em toda a rede pública e privada dos ensinos fundamental e médio. Abstenho-me, entretanto, de comentar esse tópico porque já o fiz na coluna "A escola, o racismo e a 'Ilíada'".
Para não dizer que não falei de flores, vejo umas poucas virtudes no Estatuto. Parece-me correta a disposição de conceder às comunidades quilombolas a propriedade definitiva das terras que ocupam (capítulo VI do Estatuto), a exemplo do que a Carta de 88 já fizera com os índios.
De modo análogo, vejo com bons olhos os incentivos que se pretende dar à pesquisa de doenças que afetam tipicamente negros (capítulo I). Só que tais estímulos fariam mais sentido numa política setorial implementada pelo Executivo, não numa lei, que pode no máximo autorizar e recomendar esse tipo de investigação.
Outro dispositivo que aplaudo é o que consta do artigo 28 e explicitamente assegura o direito à assistência religiosa a pacientes praticantes de credos de matrizes africanas. Com efeito, são vários os hospitais, principalmente os ligados a instituições religiosas cristãs, que impedem pais-de-santo e assemelhados de prestar auxílio a doentes. Só que, de novo, esse é muito mais um caso de polícia do que de lei, pois a Constituição já garante o exercício dessa prerrogativa para todas as religiões, sem distinção.
É evidente que o racismo é uma chaga a ser eliminada. Vou mais longe e afirmo que é muito fácil criar uma legislação de cunho discriminatório. Com a edição das Leis de Nurembergue, na Alemanha nazista em 1935, por exemplo, da noite para o dia judeus foram proibidos de casar-se com "alemães" e tiveram sua cidadania revogada. De modo análogo, após a vitória do Partido Nacional, na África do Sul, em 1948, as regras do "apartheid" começaram a ser implantadas. Primeiro vedaram-se casamentos e até relações sexuais entre brancos e não-brancos. Depois, os negros foram impedidos de residir em áreas reservadas a brancos.
Bem mais difícil, para não dizer impossível, é elaborar normas capazes de acabar com atitudes segregacionistas, que estão firmemente plantadas na subjetividade dos indivíduos, na forma como cada um de nós pensa.
Podemos e devemos tentar demonstrar desde as primeiras séries escolares que o racismo é um erro, que não encontra base racional e já produziu algumas das piores catástrofes da história da humanidade. Mas, para o bem e para o mal, ninguém jamais encontrou uma fórmula eficaz para regular pensamentos.
Hélio Schwartsman, 40, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
Todos os homens são roxos
- Res Cogitans
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Todos os homens são roxos
*Estou REALMENTE muito ocupado. Você pode ficar sem resposta em algum tópico. Se tiver sorte... talvez eu lhe dê uma resposta sarcástica.
*Deus deixou seu único filho morrer pendurado numa cruz, imagine o que ele fará com você.
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- Poindexter
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Re.: Todos os homens são roxos
Deleitem-se liberalistas, deleitem-se! Não é disso que gostam? Divirtam-se! Este é apenas um dos "lindos" resultados do reforço da pressão liberalista na década de 60!
Si Pelé es rey, Maradona es D10S.
Ciertas cosas no tienen precio.
¿Dónde está el Hexa?
Retrato não romantizado sobre o Comun*smo no século XX.
A child, not a choice.
Quem Henry por último Henry melhor.
O grito liberalista em favor da prostituição já chegou à este fórum.
Lamentável...
O que vem de baixo, além de não me atingir, reforça ainda mais as minhas idéias.
The Only Difference Between Suicide And Martyrdom Is Press Coverage
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