Botanico escreveu:Bem, Acauan, quando Kardec codificou o Espiritismo, ele plotou a superioridade dos espíritos como encarnando predominantemente nos caucasóides, e o inverso para os negróides e mongolóides, pois a REALIDADE de sua época e a conceituação científica sobre raças permitiam essa interpretação.
Em nada a realidade da época permitia esta interpretação, porque os europeus brancos do século XIX haviam conquistado hegemonia material sobre o mundo e não hegemonia espiritual.
O fato de a Europa haver se industrializado primeiro que outras regiões e por conta disto ter imposto sua supremacia econômica, tecnológica e militar ao restante do mundo não são indicativos de superioridade moral.
Se Kardec era incapaz de distinguir estas diferenças tão óbvias entre valores materiais e espirituais, é de se esperar que a doutrina que criou reflita as incapacidades de seu criador.
Quanto às supostas conceituações européias sobre raças do século XIX, qualquer trabalho da época sobre o tema acumula tantos erros de método, que só a predisposição de fazer vista grossa a eles explica o chama-las científicas.Botanico escreveu:Contudo, essa realidade se foi: hoje não se pode mais ligar superioridade ou inferioridade moral e intelectual a raças (que cientificamente nem mais existem) ou povos.
Esta suposta realidade nunca existiu e se alguém ligava superioridade moral à raça, ontem ou hoje, o fazia por conta de suas próprias escolhas individuais.Botanico escreveu:Assim, portanto, não cabe a sua colocação de que seria evolução uma mulher negra encarnar em homem branco, aproveitando o meu exemplo.
Eu não escrevi, e jamais o faria, que seria evolução uma mulher negra encarnar em homem branco. Escrevi "seu próprio exemplo pode assumir conotação racista ou discriminatória, bastando que se entenda como evolução uma mulher negra reencarnar como um homem caucasóide", o que é muito diferente.Botanico escreveu:Que possa haver quem pense assim, não vou negar, mas isto é negado pelo Espiritismo enquanto aspecto geral.
Você confunde suas concepções pessoais sobre a doutrina espírita com aspectos gerais da doutrina. As origens históricas do espiritismo, as idéias de seu fundador e suas bases filosóficas sustentam tanto suas concepções pessoais quanto às concepções racistas.
A diferenciação se dá pela escolha da facção espírita em interpretar os textos base de sua doutrina de forma literal e absoluta ou metafórica e relativa.
Numa correlação com ambigüidade similar existente entre os cristãos, pode-se dizer que espíritas fundamentalistas são mais potencialmente racistas que os que não o são.
Mas isto é apenas questão de escolha pessoal. Nada no conteúdo da doutrina garante que a abordagem não racista lhe seja uma interpretação natural. Botanico escreveu:O exemplo que citei é para mostrar que EM ESPIRITISMO, não há restrições de reencarnação. Qualquer espírito está sujeito a reencarnar em corpos de qualquer raça ou sexo, e em qualquer povo deste planeta (e outros também).
Por que é que o Espiritismo na sua forma não fez sucesso entre os anglo-saxônicos? Exatamente por isso: acha que um lorde inglês, rico e bem nascido poderia aceitar a idéia de estar sujeito a reencarnar com um negro pobre em alguma favela moçambicana?
Ficou até gozado: há o New Spiritualism, que aceita a comunicação espiritual, mas rejeita a reencarnação; há grupos reencarnacionistas anglo-saxônicos, mas que não aceitam que espíritos se comuniquem.
O espiritismo não fez sucesso entre povo nenhum, exceto o brasileiro.
Entre os anglo-saxônicos esta aversão era mais esperada, uma que são em sua maioria protestantes, facção cristã que tem como regra a proibição bíblica de comunicação com os mortos.
Um exemplo interessante de como os americanos encaram o espiritismo são os tabuleiros Ouija, que para eles é apenas um brinquedo.Botanico escreveu:Os textos de Kardec politicamente incorretos referem-se a uma interpretação que ele fez da realidade de sua época. Então a Ciência dizia que as raças não-caucasóides eram menos dotadas de capacidade intelectual e moral e até mesmo entre os caucasóides haviam raças inferiores, como nós os latino-americanos, os judeus, os eslavos, os ciganos... O que Kardec fez foi juntar a isso uma interpretação moral: se essas raças eram inferiores, então é lógico supor que nelas encarnavam espíritos menos evoluídos intelectualmente. É como numa empresa de computação, que reservará os computadores top de linha, caros e cheios de medalha para os que trabalham com programas pesados e consomem muitos recursos. Já para os filhos de funcionários brincarem na creche, estes podem lidar com computadores fraquinhos e que rodam os joguinhos infantis.
Botanico escreveu:Acauan, como você mesmo cita um trinômio abaixo, é bom entender que não existe essa pureza doutrinária absoluta em campo algum do conhecimento humano. O homem está inserido no seu tempo.
As doutrinas racistas de então podiam ser ideológicas, MAS NÃO ERAM CONTESTADAS PELA CIÊNCIA, ou seja, os cientistas achavam tão óbvio que havia raças superiores (as caucasóides, umas mais e outras menos) e raças inferiores (todas as outras) que nem se justificavam estudos científicos para confirmar ou negar esse óbvio ululante. Daí portanto é inútil tentar salvar a cara da Ciência neste aspecto. Não me consta que se façam estudos científicos para se comprovar o óbvio.
Não há porque tentar salvar a cara da Ciência porque ela não tem uma. A Ciência é um método de obtenção de conhecimento baseado na observação, teorização e experimentação.
O fato de cientistas defenderem determinada tese não a torna científica e sim o método que produziu as evidências que a comprovam.
Se Sir Isaac Newton apresentasse sua teoria da gravitação baseando suas conclusões apenas nos pressupostos teológicos cristãos nos quais acreditava, tais conclusões não seriam consideradas científicas, mesmo que apresentadas pelo cientista mais respeitado de seu tempo.
Assim, não importa a realidade histórica, cultural ou ideológica de uma época, a classificação de uma tese como científica deve considerar apenas os aspectos metodológicos referentes às conclusões e às evidências que as sustentam.
Por este critério, não há respaldo científico algum para as doutrinas racistas do século XIX. Botanico escreveu:O pensador torna-se um farol de seu tempo. DO SEU TEMPO. Voltaire foi um pensador iluminista que sofreu perseguições de uns, mas no geral foi muito aplaudido e popular. Onde e quando ele viveu? Na Europa do século 18, onde os ideais absolutistas já estavam sendo questionados nas cabeças dos próprios aristocratas. Com as idéias que divulgava, ele mostrava um novo sentido de vida, de política, de sociedade, etc, para as quais havia um mercado interessado. Tivesse sido o que foi 100 anos antes, ele seria queimado vivo ou seria um escritor sem leitores.
Entretanto, os grandes pensadores, que realmente se tornaram faróis de seu tempo e dos tempos futuros, muitas vezes foram ignorados, perseguidos ou mortos por seus contemporâneos, mas suas idéias eram tão poderosas que não só sobreviveram às suas próprias mortes como modificaram o mundo.
A civilização Ocidental se construiu sobre dois exemplos disto, Sócrates e Jesus de Nazaré.Botanico escreveu:Muito que bem, Kardec codificou uma doutrina que prega o reencarnacionismo, mas distinto de todos os que o precederam, pois não há restrições de ordem sexual, social ou racial (apenas que humanos não reencarnam em corpos animais); INOVOU com relação à comunicação espiritual, por mostrar ser ela acessível a todos e não um privilégio de uns poucos profetas e iluminados; isso abriu a porta para que os espíritos dos falecidos se revelassem e revelassem também as conseqüências de seus atos no mundo espiritual. Sinto muito, mas não posso concordar que essas coisas foram produtos de ideologias da época.
Ah! A propósito: Blavatsky foi posterior a Kardec e anti-espírita.
Citei Madame Blavatsky apenas como um dos vários exemplos que mostram que as ideologias racistas do século XIX eram mais baseadas em algum tipo de misticismo do que em verdadeira ciência.
E não há absolutamente nada de inovador na proposta kardecista de que qualquer um pode se comunicar com espíritos, tal idéia é comum em inúmeras culturas, desde animistas tribais até a Europa pré-industrial.
Afinal, o que é ver e falar com fantasmas que não comunicar-se com espíritos, e não foi Kardec quem inventou os fantasmas.
O que é atribuível à Kardec é a pretensão de dar a tais comunicações status científico, pretensão esta jamais reconhecida fora da comunidade que ele fundou.Botanico escreveu:Acauan, eu gostaria que você ao menos admitisse isso: EXISTEM DIFERENÇAS MORAIS E INTELECTUAIS NAS PESSOAS. Não há fugir disso. Isso não desmente a nossa igualdade essencial como espécie e pessoas, mas é um fato. E o que o Espiritismo faz é simplesmente colocar que este fato também está presente na condição espiritual.
Por que eu negaria que há diferenças morais e intelectuais entre as pessoas? Isto é conseqüência direta da própria definição de individualidade.
O que rejeito é que estas diferenças sejam regidas por algum tipo de determinismo, o que é a própria negação da individualidade.Botanico escreveu:Por isso mesmo que as lembranças das vidas anteriores são apagadas. O que acontece, Acauan, é que as dores e sofrimentos humanos têm embaraçados os filósofos e confundido as religiões. Não pretendemos, nós os espíritas, afirmar que estão plenamente resolvidas, mas cremos a maior luz sobre o assunto, senão a única, partiu do Espiritismo. O Cristianismo, sobre esse ponto, apresenta ensinos de lastimável pobreza e impossível aceitação. De acordo com ele, as causas do sofrimento foi a burrada de Adão e Eva. O Espiritismo coloca como causa os nossos próprios erros. Ou seja, a culpa é nossa e não de algum pecador ancestral. A Ciência busca as causas físicas e tenta encontrar as soluções, mas oferece suporte moral para nada disso.
Não sei a que outras escolhas você se refere, mas como tenho dito, aquilo que não se pode remediar, é conta da lei de causa e efeito. O que se pode remediar e nada se faz ou busca-se atalhos para se livrar do problema, já é questão de escolha pessoal. Cabe só aqui a advertência espírita: _ A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória.
As respostas do Cristianismo ao Problema do Mal parecem menos pobres quando analisadas em seus aspectos simbólicos, além do literalismo fundamentalista.
Mas uma das melhores respostas religiosas, na minha opinião, vem do judaísmo, do Livro de Jó, cuja mensagem é que mesmo que todo o Universo lhe pareça injusto e que a opção pelo BEM só lhe traga dores, deve-se perseverar no caminho da Justiça.
O porquê deve ser assim o livro não diz, apenas deixa claro no diálogo de Deus com Jó que a resposta não está no cosmo externo a ele, para o qual a existência individual humana é insignificante.
Já a cosmovisão espírita sobre o problema é repleta de contradições, pois associa o mal à ignorância dos espíritos primitivos e propõe que o BEM é alcançado pelo aprendizado decorrente das reencarnações sucessivas.
Esta idéia é quase Positivismo puro, a convicção de que o progresso leve necessariamente ao BEM, inclusive o progresso histórico, que tornaria a modernidade obrigatoriamente melhor que os tempos que a precederam.
Não há qualquer veracidade comprovada nesta opinião, que, portanto, é apenas isto.
Se a crença no progresso Positivo fosse verdadeira, o próprio passar do tempo evidenciaria, por si só, a redução da quantidade de Mal no mundo, uma vez que os espíritos evoluiriam sempre e assim o mal diminuiria continuamente.
Não há evidências históricas disto. Em muitos períodos pode-se observar o contrário.
Além disto, o espiritismo se baseia na mesma idéia fundamental do Cristianismo quanto ao tema, que o mal seja uma anomalia na realidade e não uma condição natural dentro dela, tanto que ambas estabelecem esquemas cósmicos para a eliminação do mal, a redenção e a reencarnação, respectivamente.
Se existe um complexo esquema cósmico para eliminar o mal da realidade, cabe perguntar por que não há um esquema cósmico constituído na inexistência do mal. Botanico escreveu:Quis dizer que índios são gente igual às outras gentes, com qualidades e defeitos, como todo mundo. Há quem considere os índios um bando de incivilizados inúteis, que precisam de uma enorme floresta para sustentar uma tribo de 100 índios, prejudicando os valorosos fazendeiros à volta, que querem vender o mogno e transformar a floresta e plantações de grãos. Há também aqueles que consideram os índios como santos. Lembrei-me agora de um aluno da extinta disciplina "Estudos sobre Problemas Brasileiros" (criada pelos militares para dar aos alunos uma imagem maravilhosa do Brasil e dos seus governantes milicos _ acho que esta disciplina deveria ter outro nome...). Foi feita uma palestra por um antropologista, que falou sobre as questões envolvendo os índios, como era sua organização social, os conflitos deles com os fazendeiros, etc e tal. No dia da prova, o professor pediu justamente para que então os alunos discorressem sobre o tema envolvendo os índios. Bem, um dos alunos fez lá um discurso dizendo que a coisa não era nada daquilo, pois o índio é bom, é sensível, é humilde, e todo o dia é dia de índio, etc e tal...
E aí? Você que é índio concorda com esse aluno? Se os índios são todos santinhos, onde se encaixa o cacique Paiacã, aquele que estuprou e espancou uma professorinha e ainda botou a culpa toda na mulher dele?
Se o tal aluno tivesse conhecido um guerreiro Tupi, não teria estas idéias idiotas, criadas pelos escritores românticos brasileiros do século XIX.
Éramos bárbaros, selvagens e cruéis.
Era a nossa cultura.
Não era lá muito romântica ou bonita, mas nos manteve vivos em um ambiente terrivelmente hostil até eu ter a chance de escrever estas palavras. Botanico escreveu:Falou do tal trinômio: individualidade – sociedade – cultura. E vai querer me dizer que ele não alimenta o racismo?
Qualquer coisa pode alimentar o racismo em quem acredita nele.
É o solo fértil da mente racista que faz a semente do ódio germinar.Botanico escreveu:Houve um ministro do Lula que disse que a presença de nordestinos em São Paulo contribui para o aumento da criminalidade. Numa firma em trabalhei (em São Paulo), ouvi essa: _ Mantenha essa cidade limpa matando um baiano por dia. O meu irmão é escrivão de polícia e ficou horrorizado quando um nordestino, bichinho, chegou lá furioso, querendo que prendessem o namorado da filha dele, pois o garotão tirou a virgindade da mocinha. Protestava esse pai: _ Eu estava preparando a minha filha para mim! Eu é que tinha que tirar a virgidade dela e esse desgraçado que passou na minha frente! _ Será que um caso assim não levaria a se pensar que todo pai nordestino, bichinho, é que tira a virgindade da filha?
Pensará assim quem quiser pensar assim.
Os demais julgarão o sujeito que declarou tal intenção pelas intenções que ele próprio declarou e não julgarão os que nunca declararam intenção igual, com base nas intenções que não declararam.
O preconceito anti-nordestino em São Paulo cresceu no ambiente da industrialização acelerada dos anos sessenta e setenta, quando várias comunidades de migrantes dividiram espaço com as comunidades operárias nativas, muitas delas descendentes de imigrantes europeus.
Como disse antes, optar pelo preconceito era uma opção individual.
Na rua onde cresci havia italianos, espanhóis, japoneses, ucranianos (natos ou descendentes) convivendo com nordestinos, mineiros e outros migrantes em clima de ótima vizinhança.Botanico escreveu:Olha, Acauan, acho que toda essa nossa conversa pode ser resumida nesta frase: _ Não é negando as diferenças que se acaba com o racismo e sim aprendendo a reconhecê-las, respeitá-las e conviver com elas.
Repetindo, o problema não são as diferenças, mas os determinismos que afirmam dominar a fórmula que governa estas diferenças.Botanico escreveu:Sabe, Acauan, NÃO HÁ COMO PREVER O QUE UMA DOUTRINA FARÁ NO FUTURO ATÉ QUE O FAÇA. Karl Marx tinha uma visão de uma sociedade mais justa e menos desigual, mas no que é que deu o Marxismo? Resultou numa tirania desumana que tem muitos mais milhões de vítimas do que todas as religiões juntas. Jesus deixou ensinamentos de amar ao próximo, de que o apego às riquezas e pompas são tesouros que as traças roem, que quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado, etc e tal. No entanto, no que deu o Cristianismo? Dispensa comentários, não?
A mesma coisa é o Espiritismo, só que este, com todos os seus senões, ainda não virou o que você acha que tem potencial para se tornar. Primeiro porque a mudança de realidade e mentalidade já inutilizou os textos politicamente incorretos de Kardec e em segundo, como já disse, SEM UM REFERENCIAL FIXO, não há como se aplicar políticas racistas.
Como disse alguém, o preço da liberdade é a eterna vigilância.
Certa vez escrevi sobre como certas interpretações do fundamentalismo cristão se aproximavam perigosamente das ideologias fascistas, o que me valeu algumas ameaças veladas de um religioso participante aqui.
Por mais que pareça impossível o surgimento de uma ditadura fundamentalista cristã, nunca é demais alertar para o risco que certos conteúdos e suas interpretações representam, o que não deixa de ser uma forma de se prevenir contra estas possibilidades, mesmo que remotas.
Teria sido ótimo se uma melhor leitura crítica e um mais decidido senso de prevenção tivessem criado, em sua época, uma prevenção eficaz contra o fascismo e o comunismo.
Os conteúdos racistas conseqüentes do determinismo positivo espírita representam um perigo ínfimo, mas isto não é razão para fingir que eles não existem.