Israel planejou "limpeza étnica", diz israelense
por Marcos Guterman
O historiador israelense Ilan Pappe já é bastante conhecido (e odiado) em seu país por dizer que a história da independência de Israel, em 1948, foi edulcorada por lendas heróicas que escondem massacres cometidos contra os árabes. Agora, no entanto, ele foi bem mais longe: em seu novo livro, “The Ethnic Cleansing of Palestine” (A Limpeza Étnica da Palestina), Pappe diz que Israel planejou a guerra com o objetivo deliberado de expulsar todos os árabes do território designado ao país pela ONU e, assim, criar um Estado 100% judeu.
Em entrevista a este blog, Pappe afirmou que esse projeto nunca foi inteiramente abandonado e explica as ações atuais de Israel como sendo um subproduto dessa ideologia. Ele disse ainda que a paz só será possível quando o mundo cobrar essa conta de Israel e quando os israelenses admitirem sua culpa e aceitarem o julgamento por crimes de guerra.
A tese de Pappe, professor da Universidade de Haifa (norte de Israel), é baseada em documentação militar que menciona a estratégia israelense para garantir as fronteiras do país durante a guerra contra os árabes em 1948. Sua interpretação é duramente contestada por outros historiadores israelenses, para quem Pappe manipula e distorce os fatos.
A versão usualmente aceita para os eventos estudados por Pappe é mais ou menos esta: em 29 de novembro de 1947, a ONU aprovou a partilha do mandado britânico da Palestina em dois Estados, um judeu e um árabe; os árabes rejeitaram a decisão; no mesmo dia, vários ataques de árabes contra judeus marcaram aquilo que se considera o início do conflito, que mais tarde envolveria os Exércitos da Síria, da Transjordânia, do Egito, do Líbano e do Iraque contra Israel. Deste ponto em diante, a “verdade” é algo tão móvel quanto as dunas do deserto.
Na versão dos árabes, a ação contra Israel foi deflagrada porque a Partilha da Palestina não havia sido aceita pela maioria árabe da região e porque era necessário proteger a vida e as propriedades dessa comunidade, ameaçada pelo “terrorismo” dos judeus. A onda de violência israelense, sustentam os árabes, transformou a guerra na “Nakba”, ou “catástrofe” em árabe. De acordo com essa interpretação, a ação das forças judaicas expulsou mais de 700 mil árabes de suas casas.
A versão israelense, como se pode imaginar, é bem diferente: Israel, quando mal tinha um Exército, foi covardemente atacado por um conjunto de forças militares árabes que tinham o objetivo declarado de exterminar os judeus. No rastro de destruição dessa ofensiva genocida, dizem os israelenses, as lideranças que combatiam Israel aterrorizaram as comunidades árabes locais, criando o clima para o êxodo que se seguiu. Tudo o que Israel fez, segundo essa interpretação, foi se defender.
Dentro de Israel, porém, há uma corrente de pesquisadores que contesta essa visão. São os chamados “novos historiadores”, que sempre rondaram a tese da “limpeza étnica” deliberada, mas nunca haviam ousado defendê-la abertamente, como Pappe faz agora.
Um dos eixos da pesquisa de Pappe é o Plano Dalet (a quarta letra do alfabeto hebraico, isto é, a quarta versão do plano). Elaborada desde antes da retirada britânica, a idéia era preparar a defesa das fronteiras israelenses assim que o mandato do Reino Unido sobre a Palestina expirasse.
O texto do plano informa que o objetivo era “obter o controle de áreas do Estado judeu e defender suas fronteiras”. Além disso, visava também “ganhar o controle de assentamentos judeus e concentrações que estejam localizadas fora de suas fronteiras [do Estado judeu], em ação contra forças regulares e semi-regulares que estejam operando a partir de bases fora ou dentro do Estado”.
Para os estudiosos árabes, a menção à conquista do controle de áreas “fora das fronteiras” de Israel é o bastante para atribuir aos israelenses a intenção expansionista como princípio. No entanto, mesmo alguns dos mais importantes “novos historiadores” israelenses, como Benny Morris, dizem que o Plano Dalet era basicamente defensivo, uma vez que previa essa ação fora das fronteiras somente em caso de ataque árabe.
Pappe, no entanto, explora outro trecho do plano para denunciar a ação israelense como criminosa e premeditada. Na seção sobre como lidar com “centros populacionais inimigos”, o texto fala de “destruição de vilarejos (ateando fogo, explodindo e plantando minas), especialmente aqueles centros populacionais cujo controle permanente é difícil”. Cita ainda “operações de busca e controle de acordo com os seguintes princípios: cerco ao vilarejo e condução de buscas dentro dele; na evidência de resistência, a força armada deve ser destruída, e a população deve ser forçada a se retirar para fora das fronteiras do Estado”.
“Mesmo na mais conservadora definição de ‘limpeza étnica’, esse foi um caso claro e clássico de crime contra a humanidade”, afirmou Pappe ao blog. “Negar isso é travestir a verdade.”
O historiador israelense parece convencido de que a “complexidade” atribuída aos eventos de 1948 que resultaram na crise dos refugiados árabes é apenas uma boa desculpa para diluir a responsabilidade de seu país. Segundo ele, houve violência por parte dos árabes também, mas somente como forma de defender os palestinos da ação judaica. “Eles recorreram à violência para sobreviver. Não foram capazes de demonstrar unidade para enfrentar um movimento que estava determinado a expulsá-los de sua terra. Mas a parte do leão nesse conflito recai sobre os ombros dos colonizadores, dos ocupantes, dos que expulsaram, e estes são os israelenses.”
Pappe afirma que os israelenses não estão dispostos a aceitar uma discussão completa e honesta sobre esse episódio, sobretudo porque “apóiam, em geral, a idéia da limpeza étnica” ainda hoje. A prova disso está, segundo ele, na entrada de Avigdor Lieberman, o feroz líder ultradireitista anti-árabe, no governo do premiê Ehud Olmert. Para Pappe, os palestinos correm “grande perigo” e é preciso que “o mundo acorde e interfira para salvá-los”.
A paz na região só será possível, na avaliação do polêmico historiador, se Israel aceitar o direito de retorno dos palestinos. Caso o país se negue a isso, Pappe diz, será o mesmo que admitir a verdade sobre a limpeza étnica contra os palestinos. Para ele, é inaceitável que, por um lado, “um tal Estado ideológico reivindique ser parte do mundo civilizado”, enquanto se espera que os palestinos “parem de lutar a guerra pela sua sobrevivência”.