
Por Fabiane Stefano
EXAME - Todos os sábados a alagoana Maria Maura Basilo da Silva leva seu carrinho de tapiocas para a feira de Nova Veneza, distrito da cidade de Sumaré, no interior de São Paulo. Em dias bons, ela chega a vender 40 unidades da iguaria típica do Nordeste, embolsando 60 reais. O comércio de tapioca é algo relativamente novo na vida dessa mulher de 57 anos. Há dois anos, ela e o marido estavam desempregados e passaram a receber os recursos do Bolsa Família, maior programa de transferência de renda do governo federal. Na época, o casal decidiu investir parte dos 75 reais que começou a receber na compra de polvilho doce, o principal ingrediente da tapioca, para iniciar um pequeno negócio. No começo, Maria Maura comprava apenas alguns sacos de 2 quilos de polvilho. Atualmente, são cerca de 80 quilos do ingrediente por mês, sinal de que o empreendimento está prosperando. "Já recebi encomendas até de cidades vizinhas", diz ela, que consegue faturar 250 reais por mês com a venda de tapioca. Junto com a recém-adquirida aposentadoria do marido, de 390 reais, os dois sustentam o neto Leandro, de 13 anos, e agora querem investir em uma barraca maior para vender outros itens alimentares. Maria Maura é um exemplo de beneficiária que está conseguindo usar o dinheiro recebido do governo para criar alternativas de renda e deixar de depender da assistência.
Casos como o dela começam a se multiplicar no país, especialmente nas metrópoles e em seu entorno, nos quais a oferta de trabalho e de outras formas de ascensão social é maior que em áreas carentes, como o interior do Nordeste. Nesses rincões, o Bolsa Família é uma espécie de seguro alimentar para pessoas em situação de extrema pobreza, que, sem ele, estariam passando fome. Mas nas cidades, especialmente em estados mais ricos, a história é outra. A Fundação Seade, do governo do estado de São Paulo, está concluindo um estudo que analisa justamente o impacto dos programas de transferência de renda nas regiões metropolitanas. Os resultados parciais indicam que a utilização dos recursos vai muito além da mera garantia de uma cesta bá sica. O perfil dos beneficiários de programas sociais não é de gente que depende do Bolsa Família para sobreviver. Nas metrópoles, o padrão é que as famílias pobres vivam na informalidade e tenham renda, mas de maneira muito irregular de um mês para o outro. A oscilação no orçamento impede gastos que necessitem de um horizonte longo -- seja em educação, num pequeno negócio ou mesmo em bens duráveis para a casa. Um dos principais efeitos do Bolsa Família nesses casos é dar mais segurança financeira aos beneficiários. "Como existe a garantia de que o dinheiro virá, a pessoa se planeja e pode abrir um crediário para comprar um eletrodoméstico ou um equipamento para trabalhar", diz a socióloga Felícia Madeira, diretora executiva da Fundação Seade. De acordo com ela, nas áreas urbanas os beneficiados têm mais chances de obter algum tipo de renda com o trabalho informal, fazendo com que os recursos fornecidos pela assistência do governo componham cerca de 25% do orçamento familiar -- situação bem diferente das localidades mais distantes, nas quais muitas famílias dependem totalmente da ajuda do governo para sobreviver. Pode-se dizer, assim, que é nas grandes cidades que o Bolsa Família tem tido mais sucesso -- e esse sucesso se caracteriza não pela doação de dinheiro por tempo indeterminado, mas pela possibilidade dada às pessoas de não depender, no médio prazo, de programas sociais para sobreviver. "A porta de saída dos programas de transferência é mais fácil de ser encontrada nas cidades estruturadas, nas quais há mais serviços e oportunidades de geração de renda", diz Felícia.
Um país menos pobre
Nos últimos 15 anos diminuiu tanto o número de pobres(1) ... (em % da população)
1992 - 35,2%
2006 - 19,3%
...quanto a desigualdade de renda no Brasil (coeficiente de Gini(2))
1992 - 0,58
2006 - 0,56
(1) Pessoas com renda per capita inferior a 125 reais mensais
(2) No coeficiente de Gini, quanto mais próximo ao número 1, maior a desigualdade de renda familiar per capita.
Fontes: FGV/Pnad/IBGE
OS RESULTADOS PRELIMINARES DA Fundação Seade parecem confirmar as conclusões de um estudo do Banco Mundial no México, outro país com um extenso programa de combate à pobreza. Conduzido pelo economista americano Paul Gertler, o trabalho analisou por seis anos como as pessoas investiam o dinheiro recebido do programa Oportunidades -- o similar mexicano do Bolsa Família. Gertler descobriu que 88% do valor repassado pelo governo seguia para o consumo e o restante era investido em atividades produtivas, como pequenos negócios informais. Ao analisar o efeito agregado do investimento, a pesquisa mostrou que a taxa de retorno dos negócios variava de 15,5% a 17,5%. E o mais importante: o consumo das famílias aumentou 34% graças à nova fonte de geração de renda. "A bolsa se torna uma espécie de capital de giro", afirma o pesquisador Eduardo Luiz Gonçalvez Rios-Neto, da Universidade Federal de Minas Gerais. Ele está conduzindo um estudo que analisa a implementação do Bolsa Família em 200 municípios brasileiros. "Embora a política seja a mesma para todo o país, vemos que em alguns lugares os resultados são melhores", diz Rios-Neto. Isso, segundo ele, é decorrência da qualidade dos serviços públicos e de outras opções existentes em algumas cidades, especialmente nos estados mais ricos. Essa oferta acaba criando mais oportunidades para os beneficiados. A mineira Valéria Dutra, que vive na cidade histórica de Ouro Preto, decidiu gastar parte dos 54 reais que recebia do Bolsa Família em um curso de informática para a filha mais velha, Jéssica, de 13 anos. O restante do dinheiro é gasto nas idas semanais à feira. O arranjo só foi possível porque o marido de Valéria trabalha como vigilante e, com seu salário de 380 reais, responde pelas despesas da família de cinco pessoas. Também é viável porque a cidade dispõe desse tipo de escola. Jéssica terminou seu curso de informática no final de agosto e a mãe já planeja investir para que ela aprenda inglês. Com a capacitação, Valéria espera que a filha também possa no futuro ajudar no orçamento da família.
Mais dinheiro na base
Como o governo federal está direcionando os recursos dos programas(1) de combate à pobreza
9,9 bilhões de reais(2) beneficiam 11,3 milhões de famílias, que compõem um contingente de 40 milhões de pessoas
Os beneficiados moram nas regiões...
Nordeste....... - 50%
Sudeste........ - 26%
Norte............ - 10%
Sul............... - 09%
Centro- Oeste - 05%
...e estão concentrados em...
Área urbana - 69%
Área rural... - 31%
(1) Bolsa Família, Cartão Alimentação e Auxílio Gás
(2) Previsão anualizada
Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Ao longo das últimas duas décadas, o Brasil acumulou uma vasta experiência em programas sociais. Da aposentadoria rural, criada a partir da Constituição de 1988, às várias bolsas implantadas desde os anos 90 (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação, hoje unificadas no selo do Bolsa Família), o fato é que o país tem hoje em operação uma série de iniciativas -- e os resultados estão aparecendo. A proporção de pobres na população caiu de 35% em 1992 para 19% no ano passado. Embora mais timidamente, também houve redução na desigualdade. Com a experiência acumulada, a qualidade dos programas sociais tem aumentado. Concebido inicialmente como uma espécie de seguro alimentar, o Bolsa Família tem sofrido mutações. As primeiras regiões atendidas pelo programa eram rurais, sobretudo no Nordeste. Em 2005, famílias nas cidades também passaram a receber o recurso. O programa também se espalhou pelo país -- metade dos benefícios está fora do Nordeste. Hoje, o Bolsa Família atende cerca de 40 milhões de pessoas, que em 2007 receberão quase 10 bilhões de reais. O grande desafio que os críticos dos programas de transferência de renda apontam é o de criar condições para que os participantes caminhem financeiramente com as próprias pernas. "Mais de 30 000 famílias já deixaram o programa por iniciativa própria e precisamos criar ações para outras milhares saírem também", diz o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias. Uma das medidas já em discussão no Planalto é como incluir os beneficiados pelo Bolsa Família nas frentes de trabalho das obras do Programa de Aceleração do Crescimento. O governo também cogita facilitar o acesso ao microcrédito como forma de estimular o empreendedorismo.
As medidas louváveis podem esbarrar em um problema crônico da população pobre: o baixo grau de instrução e de qualificação. Dados do Ministério do Desenvolvimento Social mostram que mais da metade dos beneficiados tem apenas até a quarta série do ensino fundamental. "Não se tira as pessoas da pobreza dando dinheiro", diz o sociólogo Floriano Pesaro, secretário de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade de São Paulo. "O grande problema é a falta de orientação e capacitação." Maria dos Santos Marinho, também de Sumaré, é um exemplo de quem está tentando superar a desqualificação. Sem o ensino fundamental completo, a baiana de 38 anos acabou de se formar em um curso municipal de cabeleireira e agora está montando um salão de beleza na sala de casa. As primeiras escovas, tesouras e secadores do salão foram comprados com recursos do Bolsa Família. Esse é o segundo negócio que ela inicia combinando o dinheiro do governo federal com um curso da prefeitura. Antes, Maria aprendeu a confeccionar artesanato com miçangas e passou a vender chaveiros e chinelos decorados. Veio, então, o curso de cabeleireira e a ambição de ter um negócio próprio. "Tudo o que ganho invisto no próprio salão", diz ela, que já conquistou clientes e ganha 150 reais por mês com a nova atividade. O dinheiro, somado aos 75 reais que recebe do programa e aos ganhos do marido pedreiro, ultrapassa o rendimento máximo de 120 reais por pessoa, critério para estar habilitado ao Bolsa Família. Se nos próximos seis meses a renda de Maria se mantiver estável é sinal de que a cabeleireira terá encontrado a porta de saída e deverá deixar de receber a assistência. "O programa me ajudou a criar um trabalho", diz ela. "Cada um aproveita o dinheiro por um tempo e depois passa para outra pessoa." A multiplicação desses exemplos indica que muitos beneficiados do Bolsa Família, dadas condições mínimas, batalham para encontrar uma alternativa ao programa. "A maioria das pessoas não quer ser dependente", diz Felícia, da Fundação Seade. "Elas querem alcançar autonomia financeira e melhorar de vida."
FONTE:Exame
Abraços,