Battisti: por que Berlusconi e a mídia manipulam?
Por José Dirceu
(publicado no Blog do Noblat, em 13 de fevereiro de 2009)
Com a cumplicidade de nossa mídia, que exalta e exulta com as decisões do novo Dulce italiano, vai se criando de novo um estado de ânimo de "faca no pescoço", para tentar obrigar o STF a extraditar o escritor italiano Cesare Battisti, refugiado e com asilo político no Brasil, concedido pelo nosso governo.
Não há limites nem pudor. Simplesmente à luz do dia, nesse episódio Battisti, assistimos a mais um julgamento pela "opinião pública". Nesse caso, nem é clamor popular. É que à mídia, e a todos os agentes que fomentam campanha pela extradição de Battisti, não interessa passar à opinião pública os sinais evidentes da real natureza do governo chefiado pelo 1º ministro Sílvio Berlusconi e das medidas que ele acaba de aprovar.
Berlusconi preside um gabinete que aprovou no Senado medidas contra imigrantes, tais como impor obrigação legal aos médicos de denunciar à polícia imigrantes ilegais que atendam em casos de emergência, e a criação de rondas de cidadãos para patrulhar as ruas e caçar imigrantes. Os médicos protestam em todo o país e as medidas aprovadas no Senado serão agora encaminhadas por Berlusconi à Câmara. Nenhuma esperança, nesta Casa. Ele tem maioria ainda mais folgada que no Senado.
Os governos italianos – o atual e todos os que o precederam – demonstraram, ao longo dos anos, serem extremamente seletivos em exercitar pressões políticas para obter a extradição de réus ou condenados pela justiça italiana que se encontram em outros países. Sobre Cesare Battisti, fora o pequeno detalhe que seus romances policiais são publicados na Itália pela editora Einaudi, controlada pela Mondadori - principal editora do país de propriedade do próprio Berlusconi - o que chama a atenção e prova o caráter político e ideológico de toda a campanha do governo italiano, com anuência da centro esquerda daquele país à honrosas exceções, é que de acordo com informações publicadas pela imprensa italiana na última semana, há cerca de 50 foragidos da justiça italiana pelos quais existem pedidos de extradição não atendidos. No caso de Battisti, a pressão sobre o Brasil é única. Vamos analisar três outros casos emblemáticos.
1) Delfo Zorzi: 62 anos, ex-líder na região do Veneto do grupo neofascista "Ordine Nuovo", que nos anos 60, 70 – e até o início dos anos 80 – foi envolvido em vários atentados à bomba na Itália, ao que tudo indica se beneficiando da proteção dos serviços secretos italianos. Estes, por sua vez, tinham ligações com as "operações encobertas" da CIA no país (os americanos implantaram na Itália, ainda na década de 1950, uma rede clandestina chamada "Gladio" para promover atentados e resistência armada em caso de invasão soviética). Zorzi foi condenado em 1º grau, e depois absolvido pela corte de cassação (o STF italiano) pelo atentado de Piazza Fontana, em Milão, em 1969 (17 mortos e 84 feridos).
Atualmente, está sendo processado pelo atentado de Piazza della Loggia, em Brescia, em 1974: uma bomba explodiu durante uma manifestação sindical antifascista (8 mortos, mais de 90 feridos). O atentado foi reivindicado por "Ordine Nuovo". Zorzi vive há anos no Japão, onde se naturalizou e fez fortuna como empresário do setor têxtil. Zorzi é o principal réu neste processo. À revelia, porque há anos não volta para Itália, e o pedido de extradição feito ao Japão jamais foi atendido, nem os governos italianos fizeram muito para isso. Detalhe: o defensor de Zorzi neste processo é o advogado (e deputado de "Forza Italia", o partido de Berlusconi) Gaetano Pecorella, que vem a ser também um dos advogados pessoais do próprio Berlusconi. Pecorella é também réu em outro processo, em Milão, acusado de ter tentado corromper uma testemunha (Martino Siciliano), para que este retirasse as acusações contra Zorzi. Outro detalhe: vários ex-integrantes de "Ordine Nuovo" são hoje militantes de AN (o partido herdeiro dos neofascistas do "Movimento Sociale Italiano" – MSI) e da "Lega Nord", o partido xenófobo. AN e Lega são aliados de Berlusconi e integram seu governo. O ministro da defesa La Russa, da AN, é aquele que propôs boicotar o jogo das seleções Itália-Brasil para protestar pela não-extradição de Battisti. O fundador de "Ordine Nuovo", Pino Rauti, é o sogro do prefeito de Roma, Gianni Alemanno (AN).
2) Giorgio Pietrostefani: foi, na década de 1970, um quadro do grupo de extrema esquerda "Lotta Continua", onde militaram muitos que, nos anos sucessivos, passaram para o outro lado, e fizeram belas carreiras em jornais, empresas e universidades. Depois de vários processos, foi condenado a 22 anos de prisão, junto com Adriano Sofri (líder máximo do grupo), pelo assassinato de Luigi Calabresi, um delegado de polícia de Milão, em 1972. Calabresi fora acusado pela extrema esquerda italiana de ter encoberto os fascistas responsáveis pelo atentado de Piazza Fontana, e de ter participado do assassinato de um anarquista, Pino Pinelli, acusado injustamente de ser responsável pelo atentado (após horas de duro interrogatório, Pinelli caiu do 4º andar da delegacia onde estava sendo interrogado por Calabresi – a versão oficial foi de um acidente). Após as condenações de Sofri, Pietrostefani e outros antigos quadros de Lottta Continua iniciaram na Itália uma campanha para demonstrar que teria se tratado de um processo-farsa, baseado somente no testemunho de um arrependido, sem provas factuais. Sofri, embora preso, continuou colaborando com os principais jornais italianos (saiu em semi-liberdade em seguida). Na primeira oportunidade, Pietrostefani fugiu para a França, onde vive até hoje sem problemas nem escândalos – assim como pelo menos mais 20 foragidos italianos acusados de crimes ligados à militância política. Em artigo publicado em 15 de janeiro no diário "La Repubblica" (independente, mas próximo ao PD de Veltroni), o comentarista Francesco Merlo afirmou, em relação ao caso Battisti, que "O Brasil é genial no futebol e na tostadura do café, mas tem baixo nível de civilização jurídica". No mesmo jornal, Adriano Sofri assina com freqüência artigos na primeira página.
3) Caso Abu Omar: em 2003, agentes da CIA seqüestraram em Milão um cidadão egípcio suspeito de ligações com a Al- Qaeda, Abu Omar, levado clandestinamente para o Egito, onde foi torturado por meses. Foi uma das inúmeras "extraordinary renditions" efetuadas pela CIA no mundo inteiro durante a "guerra global contra o terror" desencadeada pelo ex-presidente Bush. Pela lei italiana, no entanto, trata-se de um crime, que violou o código penal do país e a Convenção Européia dos Direitos Humanos, que proíbe prisões ilegais e o uso da tortura. Os juízes de Milão pedem, desde 2006, que os 26 agentes da CIA identificados como responsáveis pelo crime em solo italiano sejam presos e extraditados para Itália, conforme previsto por uma convenção bilateral entre os dois países. Até agora, nenhum dos governos italianos que se sucederam (Berlusconi, Prodi, de novo Berlusconi) moveu uma palha para obter a extradição dos agentes da CIA.
Tudo isso, sem entrar na discussão política sobre os "anos de chumbo" na Itália – onde se travou uma guerra civil de baixa intensidade, no quadro mais geral da guerra fria. A Itália era uma democracia e não uma ditadura, sem dúvida, mas aprovou e utilizou as chamadas "leis de emergência", que multiplicaram as penas e diminuíram os direitos de defesa para todos os acusados de terrorismo de esquerda. Já os executores materiais, os mandantes e os protetores dos grandes atentados de direita (o último se deu em Bologna, em 1989, com quase 80 mortos) estão, até hoje, sem punição.
Sobre as incongruências e as falhas dos processos em que Battisti foi condenado, nem vale a pena falar. Há na Itália vasta literatura demonstrando isso à exaustão. A questão na verdade, para nós, não é apenas legal e jurídica. Não se trata apenas de nosso direito de conceder refúgio a Battisti. Trata-se agora de nossa soberania, de nossa justiça, de nosso governo, e de nosso país. Assim quiseram o governo Berlusconi e a direita italiana ao transformar uma decisão soberana do Brasil num grave contencioso jurídico e diplomático, tudo para evitar a verdade histórica: que a direita italiana encobriu e encobre os crimes praticados por ela na década de 70, como bem tem nos alertado Cesare Battisti, vítima ele mesmo dessa política.
Que no Brasil se faça Justiça! É o que esperamos do Supremo Tribunal Federal.
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