18/05/2006
Da natureza do crime
Os ataques do PCC contra policiais em São Paulo intimam a uma reflexão sobre o crime. Trata-se de um dos mais complexos e variegados fenômenos sociais, que tem múltiplas causas e manifesta-se em número ainda maior de ações, desde a compra de um brinquedo importado sem nota fiscal até o atentado à bomba contra uma delegacia de polícia.
Para a esquerda, numa descrição um pouco estereotipada, o crime sempre foi muito mais um acontecimento social do que o ato de volição de um indivíduo. Por trás do furto de uma banana ou mesmo de um assalto a banco, estariam estruturas sociais perversas, que, ao impedir a repartição equânime das riquezas, atuariam como motor primeiro do crime. Levando tal raciocínio ao extremo, o bandido já nem seria o responsável pelo delito, mas apenas materializaria uma série de injustiças sociais que começariam no direito de herança e terminariam numa escola pública aviltada. Subjaz aí a idéia da "tabula rasa". Ao nascer, todos os homens seriam iguais. Determinações socioambientais é que os levariam a tornar-se o que devêm.
Já para a direita, também num retrato propositadamente caricato, existe uma natureza humana nada estimável que nos torna propensos a buscar vantagem a qualquer preço. Só o que nos impede de matar uns aos outros é a mão dura da lei. Quando, por alguma razão, os freios externos deixam de atuar, sobrevém a barbárie. É o que estaria acontecendo em São Paulo.
Tomadas isoladamente, nenhuma das versões pára em pé. É claro que diferimos biologicamente uns dos outros já a partir da concepção, quando o material genético de cada indivíduo é definido, e não deixamos de nos distinguir diuturnamente desde então, através de estímulos ambientais, também conhecidos como vicissitudes da vida. Se assim não fosse, tudo o que Charles Darwin escreveu, e milhares de biólogos constataram empiricamente, não passaria de delírio. A variabilidade dos indivíduos de uma mesma espécie é o ponto de partida da seleção natural que, para o bem e para o mal, nos trouxe até onde nos encontramos. A tal da "tabula rasa" não passa de invencionice de algum esquerdista meio confuso que inadvertidamente misturou Karl Marx com um pouco de John Locke.
Nem tudo, entretanto, são más notícias para a esquerda. A visão da direita, embora possa modernamente soar verossímil, é também algo fantasiosa, do que dá boa prova a situação brasileira. Por aqui, devido a uma conjunção de fatores que inclui o despreparo da polícia, a ineficiência do Judiciário e vários outros problemas, o crime, numa análise puramente racional, compensa.
Pesquisa encomendada pelo Ministério Público de São Paulo mostra que a corporação paulistana soluciona apenas 20% dos homicídios registrados nas delegacias da capital. Nos EUA, a média nacional das polícias para esse tipo de delito é de 66%. Basicamente, por aqui vale a pena resolver uma disputa eliminando a pessoa que está criando dificuldades. As chances de jamais ser apanhado são bem maiores que as de sê-lo.
Entretanto, a esmagadora maioria da população não comete esse nem vários outros crimes menos graves e, portanto, menos investigados, que em tese ofereceriam uma probabilidade ainda maior de deixar seus autores impunes. Não é, assim, apenas a mão pesada da lei que nos impede de cometer todo gênero de atrocidades. A maioria de nós têm, como afirmou Kant, "a lei moral dentro de si".
Poderíamos passar dias discutindo o que levou as pessoas a desenvolver um senso moral. Há explicações para todos os gostos, desde aquelas que atribuem o feito a Deus, até aquelas, mais terrenas e mais a meu gosto, que colocam o fenômeno no contexto da seleção natural. Pessoas que se comportavam bem socialmente _o que inclui respeitar regras de convivência_ teriam sido favorecidas com maior sucesso reprodutivo, passando o que pode haver de genético na "moralidade" a seus descendentes. Transcorridas dezenas de milhares de anos e inúmeras gerações, a maioria de nós tende a observar um núcleo de regras não apenas por temor às sanções, mas também por ter tal comportamento introjetado.
Antes de celebrar a redenção do homem e sonhar com o dia em que, com um empurrãozinho de Darwin, não precisaremos mais de leis nem de polícias, convém lembrar que a variabilidade é o pressuposto da seleção natural. Sempre existirão aqueles que não respeitarão as regras e terão sucesso exatamente por não fazê-lo. Trocando em miúdos, sempre haverá a garota que se apaixona pelo "bandido".
Também é cedo para a direita cantar vitória. A lei e a mão pesada das polícias também conhecem limites. Tomemos o caso dos chamados sociopatas. Embora a definição exata do conceito ainda seja objeto de polêmica entre especialistas, entre 3% e 4% dos homens e pouco menos de 1% das mulheres em qualquer sociedade podem ser descritos como potenciais criminosos crônicos. Seu perfil psicológico inclui boa dose de egocentrismo, incapacidade de manter vínculos permanentes e muita impulsividade. Freqüentemente são pessoas charmosas e que, nas relações sociais superficiais, cativam os outros. Os sociopatas são ainda caracterizados pela ausência parcial ou total das chamadas emoções sociais, como amor, vergonha, culpa, empatia, remorso. Como em geral não têm déficit intelectual, costumam apresentar grande capacidade de manipulação. Segundo alguns trabalhos, eles comporiam 20% da população carcerária dos EUA e entre 33% e 80% do total de criminosos crônicos. Mais inteligentes do que os "bandidos comuns", cometeriam algumas centenas de delitos antes de ser apanhados, contra uma média nacional de apenas cinco. Por algumas contas, 50% dos crimes cometidos nos EUA teriam sociopatas como autores.
Embora nem todo sociopata se torne um meliante _alguns experimentam extraordinário sucesso como executivos no mundo corporativo_, os que de fato seguem nas sendas do crime tendem a ser imunes às receitas tradicionais da direita para enfrentar o problema, que são aumentar as penas e colocar mais policiais nas ruas. É o caso mesmo de perguntar se os sociopatas que abraçam banditismo tiveram escolha, ou se seu comportamento é uma espécie de resultante matemática de uma perversa combinação de genes recalcitrantes com fatores ambientais adversos. Aqui, pela via transversa do determinismo (considerado um conceito "de direita"), é o próprio argumento da responsabilidade individual _tão caro aos conservadores_ que estaria colocado em xeque.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra, parece-me prudente reconhecer que a "verdade", seja lá o que isso signifique, está no meio do caminho. A maioria de nós aceita bem um núcleo de convenções sociais e tende a cumpri-las. Mas a lei e a perspectiva de punição para os que a desrespeitem são também fundamentais, pois a tentação de delinqüir pode ser forte, e alguns de nós são menos kantianos do que outros. Uma distribuição mais equitativa da renda e a garantia de que todos teriam acesso a itens básicos como alimentação, educação e saúde também tendem a atuar como freios importantes ao crime. Permitem que cada um tenha a esperança de que as coisas poderão melhorar, senão já, pelo menos na próxima geração. E esperança é fundamental para evitar o desespero, o qual pode levar a toda sorte de ações inconseqüentes.
O crime se combate através de um "blend" de receitas "de direita" e "de esquerda". Elas incluem repressão e investimentos "no social". Só que não existem receitas mágicas. Reprimir não significa torturar nem implantar a pena de morte, mas principalmente criar uma polícia que investigue e solucione os crimes de forma científica e uma Justiça que condene e efetivamente puna seus autores. Já a visão "social" não implica aceitar toda e qualquer violação à lei como uma conseqüência de políticas públicas erradas e tudo perdoar. Por maiores que sejam os constrangimentos genéticos e ambientais que nos constituem, ainda somos em larga medida responsáveis pelas decisões que tomamos.
Errei - Na coluna da semana passada, cometi um desatino maior que os habituais. Afirmei que "se os atuais seis bilhões de humanos aceitassem privar-se de todo tipo de carne e concordassem em alimentar-se exclusivamente de frutas e grãos, nós provavelmente teríamos de derrubar o que restou das florestas para cultivar pomares". Não teríamos. Minha observação atropelou a segunda lei da termodinâmica, que trata da conservação da energia. Animais de pastagem ocupam mais espaço do que plantações para produzir a mesma quantidade de alimento medida em calorias. Agradeço aos vários leitores que apontaram o problema, em especial ao biólogo Roberto Takata que demonstrou por A + B a bobagem que eu dissera. O erro, entretanto, não invalida os demais argumentos nem as conclusões: podemos e devemos ser simpáticos com os animais, mas não existem impedimentos morais a devorá-los na forma de churrasco nem a utilizá-los em experimentos que podem salvar vidas humanas. Hélio Schwartsman, 40, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
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*Estou REALMENTE muito ocupado. Você pode ficar sem resposta em algum tópico. Se tiver sorte... talvez eu lhe dê uma resposta sarcástica.
*Deus deixou seu único filho morrer pendurado numa cruz, imagine o que ele fará com você.
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