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O homem neoliberal: da redução das cabeças à mudança dos corpos
A suspensão atual das proibições esconde um verdadeiro projeto pós-nazista sustentado pelo capitalismo. Ao mesmo tempo em que quebra as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a humanidade
Dany-Robert Dufour
Em L’art de réduire les têtes1, eu havia tentado evidenciar a profunda reconfiguração das mentes realizada pelo mercado. A demonstração era relativamente simples: o mercado recusa qualquer consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental, cultural, ambiental…) que possa impedir a livre circulação da mercadoria no mundo. É por isso que o novo capitalismo tenta desmantelar qualquer valor simbólico unicamente em benefício do valor monetário neutro da mercadoria. Dado que não há mais nada senão um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e simbólicas que, até há pouco tempo, garantiam suas trocas.
Tem-se um bom exemplo dessa dessimbolização produzida pela expansão do reino da mercadoria quando se examina o papel-moeda emitido em euro. Observa-se que estas notas perderam as efígies das grandes figuras da cultura que, de Pasteur a Pascal e de Descartes a Delacroix, indexavam, ainda ontem, as trocas monetárias sobre os valores culturais patrimoniais dos Estados-nação. Hoje, não há nada impresso nos euros além de pontes e portas ou janelas, exaltando uma fluidez desculturada. Pede-se aos homens que se curvem ao jogo da circulação infinita da mercadoria. Pode-se dizer, portanto, que a lei do mercado é destruir todas as formas de lei que representem uma pressão sobre a mercadoria.
Ao abolir qualquer valor comum, o mercado está em via de fabricar um outro “homem novo”, privado de sua faculdade de julgar (sem outro princípio que o do lucro máximo), levado a usufruir sem desejar (a única salvação possível encontra-se na mercadoria), formado em todas as flutuações identitárias (não há mais sujeito; existem apenas subjetivações temporárias, precárias) e aberto a quaisquer conexões comerciais. Estamos, aqui, diante de um aspecto muito particular da desregulamentação neoliberal que, infelizmente, ainda não é bem compreendida, mas que já produz efeitos consideráveis em todos os domínios, particularmente sobre o psiquismo humano. Um certo número de psiquiatras e de psicanalistas está fazendo o inventário dos novos sintomas decorrentes desta desregulamentação, como a depressão, as diversas dependências, as perturbações narcisistas, a extensão da perversão etc.
Desregulamentação simbólica
Esta desregulamentação de tipo novo provoca grandes confusões nos debates atuais. Ela é acompanhada de um cheiro libertário, baseado na proclamação da autonomia de cada um e numa extensão da tolerância em todos os campos sociais (dentre os quais o dos costumes), que tende a fazer acreditar que estamos em vias de viver um intenso período de libertação. Dado que o antigo patriarcado opressivo está em desvantagem, acredita-se que uma revolução sem precedentes estaria a caminho... esquecendo-se de que foi o próprio capitalismo que comandou esta “revolução” visando a facilitar a penetração da mercadoria nos domínios onde ela ainda não reinava – o dos costumes e o da cultura.
Karl Marx não se enganava quanto a essa face “revolucionária” do capitalismo: “A burguesia”, escrevia ele, “não pode existir sem provocar, constantemente, grandes mudanças nos instrumentos de produção, portanto nas relações de produção e, portanto, no conjunto das condições sociais. De modo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores era manter inalterado o antigo modo de produção. O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a incessante introdução de mudanças na produção, a desestabilização contínua de todas as instituições sociais, em resumo, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais enferrujadas, com seu cortejo de idéias e de opiniões admitidas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes mesmo de se esclerosarem. Tudo o que era sólido, bem definido, se desmancha no ar, tudo o que era sagrado se encontra profanado e, afinal, os homens são forçados a considerar com um olhar desiludido o lugar que ocupam na vida e suas relações recíprocas2.” Esta capacidade de transformar as relações sociais atingiu o ponto máximo através desse novo estado do capitalismo que é chamado às vezes, e com razão, de “anarco-capitalismo”.
Essa transformação funcionou tão bem que houve quem tentasse reter apenas o lado “libertário”, “jovem” e “conectado” da nova forma, empolgando-se, sem grandes dificuldades, com a revolução dos costumes que ela introduzia. A confusão é tal que quem não faz outra coisa senão seguir essa desregulamentação cultural e simbólica acredita-se muitíssimo revolucionário – penso na parte da esquerda conectada que se entusiasma com todas as “causas tendência”. Ora, é exatamente o que quer dizer o anarco-capitalismo que gosta, se não da “revolução”, pelo menos de todas as formas de desregulamentação culturais e simbólicas. Todos os spots publicitários mostram isto.
Perigos potenciais
Parece que as populações pressentem os consideráveis perigos potenciais que a civilização corre diante de tal desregulamentação simbólica. Mas o Mercado pode recuperar tudo em seu proveito: muitos grupos já estão agindo, vangloriando-se e vendendo morais de péssima qualidade. Ora, seria um erro crucial deixar o debate sobre os valores para os conservadores, sejam eles antigos ou “neo”. De fato, se se abandonar esse terreno, ele será, como nos Estados Unidos, ocupado por George W. Bush, pelos tele-evangelistas e seus supostos puritanos, ou, como na Europa, pelos populismos fascistizantes. Portanto, é urgente construir uma nova reflexão sobre os valores, sobre o sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum destinado às populações confusamente alarmadas pelos estragos morais devidos à extensão infinita do reino da mercadoria. É claro que, se esse terreno não for cercado, essas populações serão tentadas a pender para o lado dos que o ocupam de forma tão barulhenta quanto indevida.
Entretanto, restringir o debate a esses aspectos culturais seria cometer um grande engano. Porque parece que essa reconfiguração das mentes não é senão a primeira fase de um mecanismo mais amplo. Para dizê-lo em poucas palavras, a “redução de cabeças” e a dessimbolização são apenas o prelúdio de uma outra redefinição em profundidade do homem, a qual, então, atingiria não só sua mente, mas também seu corpo.
Momento decisivo
Essa dessimbolização do mundo ocorre num momento decisivo da aventura humana: é a primeira vez na história do ser vivo que uma criatura chega a ler a escrita da qual ela é a expressão. Com tal seqüência, tornou-se possível um acontecimento incrível: o instante em que a criatura vai poder voltar à criação para se refazer. O instante em que a criatura vai interferir em sua criação e pôr-se como seu próprio criador. Chega, pois, o momento inconcebível em que uma espécie vai poder intervir em seu próprio devir substituindo as leis naturais da evolução.
Tudo acontece como se a recomendação humanista lançada no Renascimento por um de seus grandes pensadores, Pic de la Mirandole, tivesse sido ouvida além de todos os limites. Pic queria introduzir, de encontro às antigas formas de dominação absoluta pelo divino, um pouco de livre arbítrio humano. Deste modo, convocava o homem a “esculpir sua própria estátua3 ”. O apelo foi ouvido por toda a filosofia posterior, pois esta pode ser considerada como um desenvolvimento muito longo do tema do livre arbítrio humano, da construção do cogito cartesiano ao tema da morte de Deus em Nietzsche, passando pelo ideal crítico do Iluminismo.
Ora, o homem atual está em via de ultrapassar esse ideal dado que, se estiver efetivamente em via de “esculpir sua própria estátua”, esta bem poderia ser uma estátua viva, chamada a substituir a do próprio homem. Observemos, de passagem, que isso não seria nada menos que o fim da filosofia, que seria abrangida numa tal intenção de redefinição das bases materiais da humanidade. Sua realização suporia, de fato, a transformação irremediável de um empreendimento, incessantemente relançado desde a Antiguidade, de reforma do espírito (pela ascese, pela busca da autonomia, pela refundação do entendimento) num objetivo puramente tecnicista de modificação do corpo. Mas de que serviria ganhar um corpo novo se isto significasse perder o espírito?
Fukuyama e a "pós-humanidade"
É mais importante ainda colocar a questão à medida que existe um programa difuso de fabricação de uma “pós-humanidade”. Tal programa é dissimulado, quase não se lhe dá publicidade. Não se deve assustar os homens; principalmente, eles não podem compreender que os fazem trabalhar na abolição da humanidade – isto é, em seu próprio desaparecimento. O mundo do ser vivo foi de tal forma cercado pelo capitalismo, a fim de nele desenvolver novos espaços para a mercadoria, que algumas de suas conseqüências possíveis sobre a própria humanidade acabaram atravessando o muro do silêncio. É assim que Francis Fukuyama – o arauto do neoliberalismo, que havia proclamado, depois da queda do muro de Berlin, o início do “fim da história” com o advento generalizado das democracias neoliberais – teve que se retrair e admitir que o triunfo do mercado não era o último episódio da história humana. Um outro se seguiria: a transformação biológica da humanidade4 . Mas este abrir de olhos não lhe foi senão a oportunidade de cair num novo erro de avaliação.
Francis Fukuyama quer acreditar que o neoliberalismo poderá preservar-nos dessa engrenagem fatal… quando é ele que nos leva diretamente a ela! Para ele, na verdade, a democracia de mercado seria um estado perfeito se não estivesse ameaçado pelo desenvolvimento de algumas técnicas: “Uma técnica suficientemente poderosa para remodelar o que somos pode bem ter conseqüências potencialmente ruins para a democracia liberal5 .” Evidentemente, é necessário convir quanto a isto: se não há mais homens, a democracia corre o risco de se esvaziar. Para evitar semelhante perigo, bastaria, segundo Fukuyama, que “os países regulassem politicamente o desenvolvimento e a utilização da técnica”. Piedosa intenção que não come pão e que lhe permite manter-se em silêncio a respeito do essencial: é o mercado que mantém o desenvolvimento infindável das tecno-ciências, as quais, não reguladas, conduzem diretamente para uma saída fora da humanidade.
Da pós modernidade à pós história
Este elo, no entanto, é claro: dado que o mercado implica o fim de qualquer forma de inibição simbólica (isto é, o fim da referência a qualquer valor transcendental ou moral em proveito unicamente do valor comercial), nada, caso se permaneça nesta lógica, poderá impedir que o homem se liberte de qualquer idéia que pretenda mantê-lo em seu lugar e que saia de sua condição ancestral tão logo tenha os meios para tal. Portanto, não é a ciência sozinha, como se diz com freqüência, e sim a ciência mais o efeito deletério do mercado sobre os valores transcendentais que estariam em condições de permitir a realização desse programa. É preciso, pois, se colocar a questão: existirá, em nossas democracias pós-modernas onde se pode dizer tudo, uma instância política para decidir se nós queremos ou não essa mutação? Nada é menos certo.
Ora, a ausência desse lugar tem um peso importante. Vê-se onde o programa de fabricação de uma pós-humanidade poderia levar: diretamente à entrada numa era de produção de indivíduos ditos superiores tendo escapado à geração. E indivíduos inferiores para as tarefas subalternas. A existência, banalizada, de organismos geneticamente modificados deveria pôr a pulga atrás da orelha: poder-se-ia, a curto prazo, empreender fabricar, por clonagem e modificação genética, novas variantes humanas. É até verossímil que experimentações estejam em curso ou possam não demorar a estar.
Quando esse dia chegar, teremos passado da pós-modernidade, período perturbado pelo desmoronamento dos ídolos, à pós-história. Se ninguém pode prever o que será isto, pode-se, entretanto, dizer o que não será mais. Porque significa o desenlace de cinco grandes topoï da humanidade: o fim da humanidade comum, o fim da fatalidade costumeira da morte, o fim da individualização, o fim do ordenamento (problemático) entre os sexos e a desorganização da sucessão de gerações.
Perigo para o animal inacabado
O perigo que ameaça a espécie humana não é só o perigo eugênico. O que está em perigo, a curto prazo, é também e simplesmente a conservação e a perpetuação da própria espécie. Esta conservação não procede de si mesma; ela passa por um contexto simbólico e cultural. Isto se explica pelo fato, reconhecido por uma parte da pesquisa paleoantropológica, de que o homem é concebível como um ser de nascimento prematuro, incapaz de atingir seu desenvolvimento germinal completo e, entretanto, capaz de se reproduzir e de transmitir suas características de juvenilidade, normalmente transitórias entre os outros animais. Fala-se a esse respeito da neotenia do homem6 . Ela implica que este animal, não acabado, diferentemente dos outros animais, deve acabar-se em outro lugar que não na primeira natureza, isto é, numa segunda natureza, geralmente chamada cultura.
Encontram-se muitas coisas nessa segunda natureza: deuses, relatos, gramáticas referindo-se a qualquer objeto do mundo (as estrelas, os seixos, os micróbios, a música, a narrativa, o cálculo, a subjetividade, a sociabilidade...), uma intensa atividade protética (todos os objetos que permitem a esse animal não acabado habitar o mundo), leis, princípios, valores... Ora, se esse quadro for deteriorado, se as leis e os princípios que o regem se tornarem fluidos, pode-se esperar não só efeitos individuais e sociais deletérios, mas também ameaças sobre a espécie, pois nada mais será suficientemente legítimo para se opor a manipulações visando a transformá-la assim que possível.
A domesticação do Ser
Algumas vozes já se fazem ouvir na intelligentsia para acolher a suposta boa nova e próxima mutação do homem. De modo muito especial, o filósofo alemão Peter Sloterdijk, que já se tornara famoso por haver feito no final de 1999, no além-Reno, uma conferência intitulada Règles pour le parc humain [Regras para o parque humano] 7 , por ocasião de um seminário dedicado a Heidegger. Esta conferência suscitou uma grande controvérsia, particularmente com Jürgen Habermas. Os propósitos desse “nietzschiano de esquerda” parecem muito significativos do modo como a desregulamentação simbólica atual pode confundir as mentes.
Numa outra conferência realizada no Centro Georges Pompidou, em março de 20008 , Sloterdijk retomou uma tese de Heidegger, mas para invertê-la. Não se tratava mais de dizer que a técnica era “esquecimento do Ser”, mas de proclamar que ela contribui para a “domesticação do Ser”, sendo esse o atributo maior do homem neotênico, levado a se produzir a si mesmo. Como se a técnica fosse a única conquista do homem neotênico e o contexto simbólico que faz prescrições e proibições nunca tivesse existido! Com tais premissas, todas as conseqüências possíveis da técnica são justificadas antecipadamente. Por outro lado, a deliberação moral é tão pouco levada em consideração que, nesse discurso “desinibido”, só a técnica é que pode determinar uma ética – não uma ética qualquer, mas, sim, uma “ética do homem maior” e, enquanto tal, aberta às “automanipulações biotecnológicas”.
A substituição do "homem primeiro"
Nesse discurso, a ética consiste, pois, em afastar qualquer forma de exame moral. É assim que o homem, puxado para fora de si mesmo pelo Ser, estaria encarregado de mudar sua condição biológica para se abrir à multiplicidade biológica9 . O homem, nascido insuficiente e sendo produto da técnica, não teria outra coisa a fazer senão levar a técnica a suas últimas conseqüências. Deste modo, o velho homem deveria ser rebatizado de “homem primeiro” – em que se pode ouvir um claro eufemismo de “primitivo” (como em “museu das Artes Primeiras”) –, porque este homem já é somente um primitivo diante dos homens superiores que devem vir. Não se devia provocar a alucinação da volta do Ser na sinistra farsa histórica do nazismo – não havia ali senão um lamentável equívoco de meu caro mestre, parece dizer Sloterdijk. Não, é hoje que se dá o verdadeiro êxtase: o homem superior, o verdadeiro, chega e seus aduladores já o louvam e funcionam como polícia para lhe abrir caminho.
Ora, esse caminho está cheio de “homens primeiros” – eis o problema. Para nosso profeta, o velho homem primitivo é manhoso, é constitutivamente surdo – e eu cito – com “generoso potencial” de transformação “polivalente”. Pior ainda, por seu “antigo egoísmo”, ele só prestaria para “exercer o poder sobre as matérias-primas” para “delas dispor” a fim de livrá-las das mudanças prometidas – onde se compreende que tais “matérias-primas” poderiam até ser o próprio corpo humano. Evidentemente, esse velho homem não seria senão “o homem do ressentimento”, prestes a fazer “reuniões” para arregimentar “populações desinformadas” e levá-las a “falsos debates sobre ameaças não compreendidas, sob a autoridade severa de editorialistas lascivos”... Abaixo, pois, os velhos “humanólatras” que pretendem, movidos por “uma histeria antitecnológica”, opor-se ao salto para o qual o Ser nos chama porque, é evidente, não há “nada de perverso” em querer “se transformar através da autotécnica”...
Projeto pós-nazista
Esses propósitos de Sloterdijk – por seu próprio exagero – são muito úteis: permitem compreender que a atual desinibição simbólica não é somente uma questão de libertação dos costumes e de saída mais ou menos dolorosa do patriarcado. De fato, a suspensão atual das proibições revela que perdura um verdadeiro projeto pós-nazista de sacrifício do humano. Ele é sustentado pelo anarco-capitalismo que, ao mesmo tempo em que quebra todas as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a humanidade.
“O discurso capitalista”, já dizia o doutor Lacan, “é algo de loucamente astucioso [...], funciona perfeitamente, não pode funcionar melhor. Mas justamente funciona depressa demais, se consome. Consome-se tão bem que se esgota10 .” Em suma, o verdadeiro problema do capitalismo é que ele funciona bem demais. Tão bem que um dia acabaria consumindo tudo: os recursos, a natureza, tudo – até e inclusive os indivíduos que o servem. Na lógica capitalista, esclarecia Lacan, “o antigo escravo foi substituído” por homens reduzidos à condição de “produtos”: “produtos [...] consumíveis tanto quanto os outros11 .” Esta observação permite compreender que é exatamente nesse sentido muito ameaçador que devem ser entendidas as expressões levianamente eufóricas que se encontram em toda a literatura neoliberal: “o material humano”, o “capital humano”, a gestão esclarecida dos “recursos humanos” e a “boa governança ligada ao desenvolvimento humano”.
O anarco-capitalismo acreditou na idéia de que o dar-se leis é cruel e só confina a uma espécie de masoquismo insuportável. E remete cinicamente os que teriam necessidade de um suplemento de alma ao puritanismo obscurantista. É preciso, portanto, lembrar que os filósofos do Iluminismo, como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, diziam que a liberdade consiste apenas em obedecer às leis que o homem se deu. De fato, temos necessidade de verdadeiras leis jurídicas e morais – e não desses sucedâneos moralizantes – para, enfim, fazer justiça, para salvaguardar o mundo antes que seja tarde demais, para preservar a espécie humana ameaçada por uma lógica cega. Ora, estamos em via de ab-rogar todas as leis – exceto as do mais forte – e, se continuarmos nessa funesta direção, entraremos numa crueldade bem mais intensa que a de ter que se submeter a leis. Entraremos numa crueldade desconhecida que consiste em querer modificar esse corpo humano velho de 100 mil anos. Para, a partir dele, tentar improvisar outros.
1 - Ver, de Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes ? sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total, Denoël, Paris, 2003.
2 - Karl Marx, Manifeste communiste, trad. Lafargue, Ed. sociales, Paris, 1976, p. 35
3 - Pic de la Mirandole [1463-94], Discours sur la dignité de l’homme, citado por Jean Carpentier, Histoire de l’Europe, Points, Seuil, Paris, 1990, p 224-225
4 - Em “La fin de l’Histoire dix ans après”, Fukuyama repete seu credo: “A democracia liberal e a economia de mercado são as únicas possibilidades viáveis para nossas sociedades modernas”. Mas ele reconhece uma insuficiência quanto à sua concepção do fim da história: “A História não pode se acabar enquanto as ciências da natureza não chegarem a seu termo. E estamos à véspera de novas descobertas científicas que, por sua própria essência, suprimirão a humanidade enquanto tal.”. Le Monde, 17 de junho de 1999.
5 - Cf. Francis Fukuyama, La Fin de l’homme: Les Conséquences de la révolution biotechnique, La Table Ronde, Paris, 2002.
6 - Ver os trabalhos do grande antropólogo norte-americano Stephen Jay Gould: Darwin et les grandes énigmes de la vie, [1977], Pygmalion, Paris, 1979, e Le pouce du Panda [1980], Grasset, Paris, 1982.
7 - Ver, de Peter Sloterdijk, Règles pour le parc humain, Mille et une nuits, Paris, 2000.
8 - Conferência retomada numa coletânea intitulada La Domestication de l’Etre, Mille et une nuits, Paris, 2000. Todas as citações que seguem foram extraídas desta obra.
9 - De fato, essa diversificação já está em curso: o semanário norte-americano Science, de 27 de julho de 2001, relatava que uma equipe norte-americana conseguiu implantar células-ovo cerebrais humanas no interior de cérebros de fetos de macaco Macaca radiata por volta da décima segunda semana de gestação, tal implantação podendo levar à criação de macacos cujos cérebros teriam sido, deste modo, mecanicamente “humanizados”.
10 - Jacques Lacan, “Conférence à l’université de Milan”, 12 de maio de 1972, texto inédito.
11 - Jacques Lacan, L’Envers de la Psychanalyse, Seuil, Paris, 1991, sessão de 17 de dezembro de 1969, p. 35.
O homem neoliberal
O homem neoliberal
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).
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A arte de reduzir as mentes
A força da ideologia neoliberal decorre do fato de não começar visando ao homem. Ela cria um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que os homens se transformem ao se adaptarem à mercadoria, apregoada como a única coisa real
Dany-Robert Dufour
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O capitalismo, que produz e devora muito, é “antropofágico”: também “come” o homem. Mas o que consome exatamente? Os corpos? Estes são usados há muito tempo e a antiga noção de “corpos produtivos” é uma prova disso1. A grande novidade é hoje a redução das mentes. Como se o pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), inerente ao capitalismo, resultasse num déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, e até o que é o bem ou o mal). É precisamente este traço que me parece caracterizar como propriedade específica a virada chamada de “pós-moderno”: o momento em que o capitalismo, depois de ter subjugado tudo, dedicou-se à “redução das cabeças”.(…) A hipótese é, em suma, simples mas radical: nós assistimos, no presente, à destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade, o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acrescentar o sujeito marxiano - e vemos instalar-se um novo sujeito, um sujeito “pós-moderno”, a ser definido.
O processo de quebra simultânea do sujeito moderno e de fabricação provável de um novo sujeito é extremamente rápido. O sujeito crítico kantiano, que surgiu perto dos anos 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido próximo dos anos 1900 - os quais, por sua idade respeitável, pareciam afastados de qualquer execução sumária - estão em vias de desaparecer diante de nós com uma rapidez espantosa. Esses sujeitos filosóficos eram pensados como protegidos das vicissitudes da história, bem instalados em uma posição transcendental e constituindo incansáveis sujeitos de referência para pensar nosso ser-no-mundo e, na verdade, muitos pensadores continuam espontaneamente a refletir com essas formas, como se fossem eternas. Ora, esses sujeitos perdem, pouco a pouco, sua evidência. A potência da forma filosófica que os constituía parece evaporar-se na história. Tornam-se fluidos. É difícil acreditar que formas tão analisadas, tão elaboradas, tão experimentadas possam desaparecer em tão pouco tempo. Entretanto, nunca se deveria esquecer que civilizações milenares podem se extinguir em alguns lustros.
Para se ater a acontecimentos recentes, é necessário lembrar que se viram tribos indígenas da floresta amazônica, que tinham atravessado os séculos e os ambientes mais hostis protegidos por práticas simbólicas solidamente arraigadas, perecerem em algumas semanas, incapazes de resistir aos choques violentos de uma outra forma de troca - a troca comercial2.
A des-simbolização do mundo
Essa morte programada do sujeito da modernidade não me parece estranha à mutação que se observa, há uns bons vinte anos, no capitalismo. O neoliberalismo - para chamar esse novo estado do capitalismo por seu nome - atualmente está ocupado em desfazer todas as formas de trocas que prevaleciam, substituindo-as por um referencial que avalize o absoluto ou metassocial das trocas. Para ser rápido e ir ao ponto e no essencial, poderia-se dizer que seria necessário o ouro como referência para garantir as trocas monetárias, assim como seria necessária uma garantia simbólica (a Razão, por exemplo) para permitir os discursos filosóficos. Ora, deixa-se, a partir de agora, de se referir a qualquer valor transcendental para se dedicar às trocas. As trocas não valem mais enquanto garantidas por uma potência superior (de ordem transcendental ou moral), mas, sim, pelo que colocam diretamente em relação enquanto mercadorias. Em uma palavra, a troca comercial, hoje, des-simboliza o mundo. (…)
Toda figura transcendente que venha a fundar o valor será, a partir de agora, recusada; só existem mercadorias que são trocadas por seu estrito valor de mercado. Hoje, pede-se aos homens que se livrem de todas as sobrecargas simbólicas que garantiam suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de modo que nenhuma outra coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental...), possa constituir um obstáculo à sua livre circulação. Disso resulta uma des-simbolização do mundo. Os homens não devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, eles devem, simplesmente, se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria.
Se o que afirma Marcel Gauchet for verdadeiro – “a esfera de aplicação do modelo [de mercado] está destinada a se estender muito além do domínio da troca comercial3” -, então haverá um preço a pagar por essa extensão: a alteração da função simbólica.(…).
Adaptando o indivíduo à mercadoria
Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação antropológica. A partir do momento em que qualquer garantia simbólica das trocas entre os homens é liquidada, é a própria condição humana que muda. Nosso ser-no-mundo não pode mais ser o mesmo a partir do momento em que o que se empenha de uma vida humana deixa de depender da busca da conciliação com esses valores simbólicos transcendentais desempenhando o papel de fiadores, mas fica vinculado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da circulação da mercadoria. Em uma palavra, não é mais o mesmo sujeito que se exige aqui e ali.
Começamos, dessa forma, a descobrir que o neoliberalismo - como todas as ideologias anteriores que irromperam ao longo do século XX (o comunismo, o nazismo...) - não quer outra coisa senão a fabricação de um homem novo. Mas a grande força dessa nova ideologia em relação às anteriores decorre do fato de não ter começado visando ao homem diretamente, por meio de programas de reeducação e de coerção. Ela se contentou com introduzir um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que o resto viesse na seqüência: que os homens se transformassem no momento de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como a única coisa real4. O novo adestramento do indivíduo efetua-se, pois, em nome de um “real” que é melhor acatar com resignação do que se opor: ele deve parecer sempre agradável, querido, desejado como se se tratasse de entertainments (televisão, publicidade...). Ainda não se analisou bem a incrível violência que se dissimula atrás dessas novas fachadas soft.(…)
O sujeito “esquizóide” da pós-modernidade
Deve-se notar que, em “fábrica de um novo sujeito”, entendo “sujeito” no sentido filosófico do termo: não falo do indivíduo no sentido sociológico, empírico ou mundano do termo, falo da forma sujeito ideal em via de se construir. Primeiramente, faço referência à forma sujeito que se construiu por volta dos anos 1800 com o aparecimento do sujeito crítico kantiano. O empirismo de Hume e seu ceticismo contra a racionalidade da metafísica clássica abalaram Kant, como se sabe, a tal ponto, que este bruscamente “despertou de (seu famoso) sono dogmático” e se viu forçado a refundar uma nova metafísica, crítica, definida nos limites da simples razão, livre do dogmatismo da transcendência e, entretanto, nada cedendo ao ceticismo empirista. Assim nascia a filosofia kantiana: baseada nos progressos da física desde Galileu e Newton, ela se constituiu sobre uma síntese magistral da experiência e do entendimento. A virada kantiana terá sido necessária para estabelecer que o pensamento necessitava tanto da intuição quanto do conceito. Na realidade, para Kant, a intuição sem conceito é cega, mas o conceito sem intuição é vazio. (…)
O que ainda poderá valer esse sujeito crítico a partir do momento em que se trata apenas de vender e de comprar mercadoria? Para Kant, nem tudo é vendável: “Tudo tem um preço, ou uma dignidade. Pode-se substituir o que tem um preço por seu equivalente; em contrapartida, o que não tem preço, portanto não tem equivalente, é o que possui uma dignidade5”. Isto pode ser dito de modo mais claro: a dignidade não pode ser substituída, “não tem preço” e “não tem equivalente”, refere-se apenas à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço. É por isso que o sujeito crítico não convém à troca comercial, e é exatamente o contrário que se exige na venda, no marketing e na promoção (deliberadamente mentirosa) da mercadoria. (…)
Portanto, nesses tempos neoliberais, o sujeito kantiano vai mal. Mas isto não é tudo, o outro sujeito da modernidade, o sujeito freudiano, não está em melhor situação. A neurose, com suas fixações compulsivas e suas tendências à repetição, não é a melhor garantia para a flexibilidade necessária às múltiplas conexões nos fluxos comerciais. A figura do esquizofrênico atualizada por Deleuze na década de 1970, com as polaridades múltiplas e invertíveis de suas máquinas que manifestam desejo, é, sob esse aspecto, muito mais competitiva6. (…) Tudo acontece hoje como se o novo capitalismo tivesse entendido a lição deleuziana. De fato, é necessário que os fluxos circulem, e circularão ainda melhor se o velho sujeito freudiano, com suas neuroses e suas frustrações nas identificações que não param de se cristalizar em formas rígidas antiprodutivas, for substituído por um ser aberto a todas as conexões. Em suma, levanto a hipótese de que esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito “esquizóide”, o da pós-modernidade.
Uma aventura rumo à loucura
Na des-simbolização que vivemos atualmente, o que convém não é mais o sujeito crítico antecipando uma deliberação conduzida em nome do imperativo moral da liberdade, nem tampouco o sujeito neurótico tomado de uma culpabilidade compulsiva; o que se exige agora é um sujeito precário, acrítico e psicotizante, um sujeito aberto a todas as conexões comerciais e a todas as flutuações identitárias.
É evidente que, apesar disso, os indivíduos não se tornaram todos psicóticos. (…) De modo geral, por toda parte onde há instituições ainda vivas, isto é, onde nem tudo esteja ainda completamente desregulamentado, ou seja, esvaziado de toda substância, existe resistência a essa forma dominante. Afirmar que uma nova forma sujeito está em vias de se impor na aventura humana não significa, pois, dizer que todos os indivíduos irão sucumbir facilmente a ela. Não digo, portanto, que todos os indivíduos irão enlouquecer, digo simplesmente que, afirmando essa forma sujeito ideal, fazem-se grandes esforços para que eles se tornem loucos. Em especial mergulhando-os num “mundo sem limite7” que incentive a multiplicação de passagens à ação psicotizantes e sua instalação num estado borderline.
Como Foucault profetizara há vinte anos, o mundo tornou-se, pois, deleuziano. (…) Deleuze queria simplesmente ultrapassar o capitalismo desterritorializando mais depressa que este, mas tudo indica, hoje, que ele subestimou a fabulosa velocidade de absorção do capitalismo e sua fantástica capacidade de recuperação da crítica mais radical8. O que coloca mais uma vez na ordem do dia o ditado segundo o qual os sonhos políticos do filósofo freqüentemente se realizam como pesadelos.
Construindo impérios de papel
A essa morte programada do sujeito crítico kantiano e do sujeito neurótico freudiano, convém acrescentar um terceiro atestado de óbito, o do sujeito marxiano.
Realmente, na economia neoliberal, o trabalho não é mais a base da produção do valor. O capital não é mais essencialmente constituído pela mais-valia (Mehrwert, em Marx) originada da superprodução apropriada no processo de exploração do proletário. O capital aposta cada vez mais nas atividades de alto valor agregado (pesquisa, engenharia genética, Internet, informação, mídia…), em que a parte do trabalho assalariado pouco ou medianamente qualificado é, às vezes, extremamente pequena.
Mas, principalmente, o capital agora faz intervir fundo a gestão das finanças em movimentos especulativos de grande amplitude. A parte da economia “real”, por exemplo, diminui proporcionalmente à financeirização da economia que se desenvolveu de maneira considerável nos últimos 25 anos, a partir do desenvolvimento dos novos mecanismos financeiros e instrumentos de gestão do capitalismo (…). Aparece, desta maneira, como um epifenômeno conquistador vindo se enxertar sobre a economia real, uma economia virtual que consiste, essencialmente, em criar muito dinheiro com quase nada, vendendo muito caro o que ainda não existe, o que já não existe ou o que pura e simplesmente não existe, correndo o risco de criar impérios de papel prontos a desabar de modo brutal (cf. os escândalos Enron, WorldCom, Tyco…). (…)
A reestruturação das mentes
Sob uma aparência bonachona e democrática, uma nova ideologia, provavelmente tão virulenta quanto as terríveis ideologias que surgiram no Ocidente no século XX, está se instalando. Na verdade, não é impossível que, após o inferno do nazismo e o terror do comunismo, uma nova catástrofe histórica se manifeste. É o caso de perguntar se não se saiu de umas para cair mais facilmente em outra. Porque o ultraliberalismo, como as duas ideologias acima citadas, quer igualmente fabricar um homem novo.(…)
Entramos, pois, em um tempo novo: o do capitalismo total que não se interessa mais só pelos bens e por sua capitalização, que não se contenta mais com um controle social dos corpos, mas visa também, sob a aparência de liberdade, a uma profunda reestruturação das mentes. Tudo, de fato, deve agora entrar no mundo da mercadoria, todas as regiões e todas as atividades do mundo, inclusive os mecanismos de subjetivação. É por isso que, diante desse perigo absoluto, a hora é de resistência, de todas as formas de resistência que defendem a cultura - em sua diversidade - e a civilização - em suas conquistas.
1 - A noção de “corpo produtivo”, enquanto corpo biológico integrado no processo de produção, já está presente em Marx, em Le Capital in Œuvres complètes, ed. Gallimard, Paris, 1965: cf. Livre premier, Le développement de la production capitaliste, IVe section: la production de la plus-value relative, XIII: Coopération.
2 - Ver, por exemplo, La guerre de pacification en Amazonie, 90’, documentário de Yves Billon, Les Films du village, 1973.
3 - Ler, de Marcel Gauchet, La démocratie contre elle-même, ed. Gallimard, Paris, 2002.
4 - Ler, de Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun, L’homme sans gravité, Jouir à tout prix, ed. Denöel, Paris, 2002.
5 - Ler, de Emmanuel Kant, Fondements de la métaphysique des mœurs [1785], ed. Garnier-Flammarion, Paris, p.116.
6 - Ler, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Œdipe, capitalisme et schizophrénie, ed. Minuit, Paris, 1972.
7 - Ler, de Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite, ed. Erès, Ramonville, 1997.
8 - Cf., de Luc Boltanski e Ève Chiapello, Le Nouvel esprit du capitalisme, ed. Gallimard, Paris, 1999.
* Este texto é um trecho do livro L’art de réduire les têtes, a ser publicado no início de outubro pela editora Denoël, Paris.
A arte de reduzir as mentes
A força da ideologia neoliberal decorre do fato de não começar visando ao homem. Ela cria um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que os homens se transformem ao se adaptarem à mercadoria, apregoada como a única coisa real
Dany-Robert Dufour
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O capitalismo, que produz e devora muito, é “antropofágico”: também “come” o homem. Mas o que consome exatamente? Os corpos? Estes são usados há muito tempo e a antiga noção de “corpos produtivos” é uma prova disso1. A grande novidade é hoje a redução das mentes. Como se o pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), inerente ao capitalismo, resultasse num déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, e até o que é o bem ou o mal). É precisamente este traço que me parece caracterizar como propriedade específica a virada chamada de “pós-moderno”: o momento em que o capitalismo, depois de ter subjugado tudo, dedicou-se à “redução das cabeças”.(…) A hipótese é, em suma, simples mas radical: nós assistimos, no presente, à destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade, o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acrescentar o sujeito marxiano - e vemos instalar-se um novo sujeito, um sujeito “pós-moderno”, a ser definido.
O processo de quebra simultânea do sujeito moderno e de fabricação provável de um novo sujeito é extremamente rápido. O sujeito crítico kantiano, que surgiu perto dos anos 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido próximo dos anos 1900 - os quais, por sua idade respeitável, pareciam afastados de qualquer execução sumária - estão em vias de desaparecer diante de nós com uma rapidez espantosa. Esses sujeitos filosóficos eram pensados como protegidos das vicissitudes da história, bem instalados em uma posição transcendental e constituindo incansáveis sujeitos de referência para pensar nosso ser-no-mundo e, na verdade, muitos pensadores continuam espontaneamente a refletir com essas formas, como se fossem eternas. Ora, esses sujeitos perdem, pouco a pouco, sua evidência. A potência da forma filosófica que os constituía parece evaporar-se na história. Tornam-se fluidos. É difícil acreditar que formas tão analisadas, tão elaboradas, tão experimentadas possam desaparecer em tão pouco tempo. Entretanto, nunca se deveria esquecer que civilizações milenares podem se extinguir em alguns lustros.
Para se ater a acontecimentos recentes, é necessário lembrar que se viram tribos indígenas da floresta amazônica, que tinham atravessado os séculos e os ambientes mais hostis protegidos por práticas simbólicas solidamente arraigadas, perecerem em algumas semanas, incapazes de resistir aos choques violentos de uma outra forma de troca - a troca comercial2.
A des-simbolização do mundo
Essa morte programada do sujeito da modernidade não me parece estranha à mutação que se observa, há uns bons vinte anos, no capitalismo. O neoliberalismo - para chamar esse novo estado do capitalismo por seu nome - atualmente está ocupado em desfazer todas as formas de trocas que prevaleciam, substituindo-as por um referencial que avalize o absoluto ou metassocial das trocas. Para ser rápido e ir ao ponto e no essencial, poderia-se dizer que seria necessário o ouro como referência para garantir as trocas monetárias, assim como seria necessária uma garantia simbólica (a Razão, por exemplo) para permitir os discursos filosóficos. Ora, deixa-se, a partir de agora, de se referir a qualquer valor transcendental para se dedicar às trocas. As trocas não valem mais enquanto garantidas por uma potência superior (de ordem transcendental ou moral), mas, sim, pelo que colocam diretamente em relação enquanto mercadorias. Em uma palavra, a troca comercial, hoje, des-simboliza o mundo. (…)
Toda figura transcendente que venha a fundar o valor será, a partir de agora, recusada; só existem mercadorias que são trocadas por seu estrito valor de mercado. Hoje, pede-se aos homens que se livrem de todas as sobrecargas simbólicas que garantiam suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de modo que nenhuma outra coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental...), possa constituir um obstáculo à sua livre circulação. Disso resulta uma des-simbolização do mundo. Os homens não devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, eles devem, simplesmente, se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria.
Se o que afirma Marcel Gauchet for verdadeiro – “a esfera de aplicação do modelo [de mercado] está destinada a se estender muito além do domínio da troca comercial3” -, então haverá um preço a pagar por essa extensão: a alteração da função simbólica.(…).
Adaptando o indivíduo à mercadoria
Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação antropológica. A partir do momento em que qualquer garantia simbólica das trocas entre os homens é liquidada, é a própria condição humana que muda. Nosso ser-no-mundo não pode mais ser o mesmo a partir do momento em que o que se empenha de uma vida humana deixa de depender da busca da conciliação com esses valores simbólicos transcendentais desempenhando o papel de fiadores, mas fica vinculado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da circulação da mercadoria. Em uma palavra, não é mais o mesmo sujeito que se exige aqui e ali.
Começamos, dessa forma, a descobrir que o neoliberalismo - como todas as ideologias anteriores que irromperam ao longo do século XX (o comunismo, o nazismo...) - não quer outra coisa senão a fabricação de um homem novo. Mas a grande força dessa nova ideologia em relação às anteriores decorre do fato de não ter começado visando ao homem diretamente, por meio de programas de reeducação e de coerção. Ela se contentou com introduzir um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que o resto viesse na seqüência: que os homens se transformassem no momento de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como a única coisa real4. O novo adestramento do indivíduo efetua-se, pois, em nome de um “real” que é melhor acatar com resignação do que se opor: ele deve parecer sempre agradável, querido, desejado como se se tratasse de entertainments (televisão, publicidade...). Ainda não se analisou bem a incrível violência que se dissimula atrás dessas novas fachadas soft.(…)
O sujeito “esquizóide” da pós-modernidade
Deve-se notar que, em “fábrica de um novo sujeito”, entendo “sujeito” no sentido filosófico do termo: não falo do indivíduo no sentido sociológico, empírico ou mundano do termo, falo da forma sujeito ideal em via de se construir. Primeiramente, faço referência à forma sujeito que se construiu por volta dos anos 1800 com o aparecimento do sujeito crítico kantiano. O empirismo de Hume e seu ceticismo contra a racionalidade da metafísica clássica abalaram Kant, como se sabe, a tal ponto, que este bruscamente “despertou de (seu famoso) sono dogmático” e se viu forçado a refundar uma nova metafísica, crítica, definida nos limites da simples razão, livre do dogmatismo da transcendência e, entretanto, nada cedendo ao ceticismo empirista. Assim nascia a filosofia kantiana: baseada nos progressos da física desde Galileu e Newton, ela se constituiu sobre uma síntese magistral da experiência e do entendimento. A virada kantiana terá sido necessária para estabelecer que o pensamento necessitava tanto da intuição quanto do conceito. Na realidade, para Kant, a intuição sem conceito é cega, mas o conceito sem intuição é vazio. (…)
O que ainda poderá valer esse sujeito crítico a partir do momento em que se trata apenas de vender e de comprar mercadoria? Para Kant, nem tudo é vendável: “Tudo tem um preço, ou uma dignidade. Pode-se substituir o que tem um preço por seu equivalente; em contrapartida, o que não tem preço, portanto não tem equivalente, é o que possui uma dignidade5”. Isto pode ser dito de modo mais claro: a dignidade não pode ser substituída, “não tem preço” e “não tem equivalente”, refere-se apenas à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço. É por isso que o sujeito crítico não convém à troca comercial, e é exatamente o contrário que se exige na venda, no marketing e na promoção (deliberadamente mentirosa) da mercadoria. (…)
Portanto, nesses tempos neoliberais, o sujeito kantiano vai mal. Mas isto não é tudo, o outro sujeito da modernidade, o sujeito freudiano, não está em melhor situação. A neurose, com suas fixações compulsivas e suas tendências à repetição, não é a melhor garantia para a flexibilidade necessária às múltiplas conexões nos fluxos comerciais. A figura do esquizofrênico atualizada por Deleuze na década de 1970, com as polaridades múltiplas e invertíveis de suas máquinas que manifestam desejo, é, sob esse aspecto, muito mais competitiva6. (…) Tudo acontece hoje como se o novo capitalismo tivesse entendido a lição deleuziana. De fato, é necessário que os fluxos circulem, e circularão ainda melhor se o velho sujeito freudiano, com suas neuroses e suas frustrações nas identificações que não param de se cristalizar em formas rígidas antiprodutivas, for substituído por um ser aberto a todas as conexões. Em suma, levanto a hipótese de que esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito “esquizóide”, o da pós-modernidade.
Uma aventura rumo à loucura
Na des-simbolização que vivemos atualmente, o que convém não é mais o sujeito crítico antecipando uma deliberação conduzida em nome do imperativo moral da liberdade, nem tampouco o sujeito neurótico tomado de uma culpabilidade compulsiva; o que se exige agora é um sujeito precário, acrítico e psicotizante, um sujeito aberto a todas as conexões comerciais e a todas as flutuações identitárias.
É evidente que, apesar disso, os indivíduos não se tornaram todos psicóticos. (…) De modo geral, por toda parte onde há instituições ainda vivas, isto é, onde nem tudo esteja ainda completamente desregulamentado, ou seja, esvaziado de toda substância, existe resistência a essa forma dominante. Afirmar que uma nova forma sujeito está em vias de se impor na aventura humana não significa, pois, dizer que todos os indivíduos irão sucumbir facilmente a ela. Não digo, portanto, que todos os indivíduos irão enlouquecer, digo simplesmente que, afirmando essa forma sujeito ideal, fazem-se grandes esforços para que eles se tornem loucos. Em especial mergulhando-os num “mundo sem limite7” que incentive a multiplicação de passagens à ação psicotizantes e sua instalação num estado borderline.
Como Foucault profetizara há vinte anos, o mundo tornou-se, pois, deleuziano. (…) Deleuze queria simplesmente ultrapassar o capitalismo desterritorializando mais depressa que este, mas tudo indica, hoje, que ele subestimou a fabulosa velocidade de absorção do capitalismo e sua fantástica capacidade de recuperação da crítica mais radical8. O que coloca mais uma vez na ordem do dia o ditado segundo o qual os sonhos políticos do filósofo freqüentemente se realizam como pesadelos.
Construindo impérios de papel
A essa morte programada do sujeito crítico kantiano e do sujeito neurótico freudiano, convém acrescentar um terceiro atestado de óbito, o do sujeito marxiano.
Realmente, na economia neoliberal, o trabalho não é mais a base da produção do valor. O capital não é mais essencialmente constituído pela mais-valia (Mehrwert, em Marx) originada da superprodução apropriada no processo de exploração do proletário. O capital aposta cada vez mais nas atividades de alto valor agregado (pesquisa, engenharia genética, Internet, informação, mídia…), em que a parte do trabalho assalariado pouco ou medianamente qualificado é, às vezes, extremamente pequena.
Mas, principalmente, o capital agora faz intervir fundo a gestão das finanças em movimentos especulativos de grande amplitude. A parte da economia “real”, por exemplo, diminui proporcionalmente à financeirização da economia que se desenvolveu de maneira considerável nos últimos 25 anos, a partir do desenvolvimento dos novos mecanismos financeiros e instrumentos de gestão do capitalismo (…). Aparece, desta maneira, como um epifenômeno conquistador vindo se enxertar sobre a economia real, uma economia virtual que consiste, essencialmente, em criar muito dinheiro com quase nada, vendendo muito caro o que ainda não existe, o que já não existe ou o que pura e simplesmente não existe, correndo o risco de criar impérios de papel prontos a desabar de modo brutal (cf. os escândalos Enron, WorldCom, Tyco…). (…)
A reestruturação das mentes
Sob uma aparência bonachona e democrática, uma nova ideologia, provavelmente tão virulenta quanto as terríveis ideologias que surgiram no Ocidente no século XX, está se instalando. Na verdade, não é impossível que, após o inferno do nazismo e o terror do comunismo, uma nova catástrofe histórica se manifeste. É o caso de perguntar se não se saiu de umas para cair mais facilmente em outra. Porque o ultraliberalismo, como as duas ideologias acima citadas, quer igualmente fabricar um homem novo.(…)
Entramos, pois, em um tempo novo: o do capitalismo total que não se interessa mais só pelos bens e por sua capitalização, que não se contenta mais com um controle social dos corpos, mas visa também, sob a aparência de liberdade, a uma profunda reestruturação das mentes. Tudo, de fato, deve agora entrar no mundo da mercadoria, todas as regiões e todas as atividades do mundo, inclusive os mecanismos de subjetivação. É por isso que, diante desse perigo absoluto, a hora é de resistência, de todas as formas de resistência que defendem a cultura - em sua diversidade - e a civilização - em suas conquistas.
1 - A noção de “corpo produtivo”, enquanto corpo biológico integrado no processo de produção, já está presente em Marx, em Le Capital in Œuvres complètes, ed. Gallimard, Paris, 1965: cf. Livre premier, Le développement de la production capitaliste, IVe section: la production de la plus-value relative, XIII: Coopération.
2 - Ver, por exemplo, La guerre de pacification en Amazonie, 90’, documentário de Yves Billon, Les Films du village, 1973.
3 - Ler, de Marcel Gauchet, La démocratie contre elle-même, ed. Gallimard, Paris, 2002.
4 - Ler, de Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun, L’homme sans gravité, Jouir à tout prix, ed. Denöel, Paris, 2002.
5 - Ler, de Emmanuel Kant, Fondements de la métaphysique des mœurs [1785], ed. Garnier-Flammarion, Paris, p.116.
6 - Ler, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Œdipe, capitalisme et schizophrénie, ed. Minuit, Paris, 1972.
7 - Ler, de Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite, ed. Erès, Ramonville, 1997.
8 - Cf., de Luc Boltanski e Ève Chiapello, Le Nouvel esprit du capitalisme, ed. Gallimard, Paris, 1999.
* Este texto é um trecho do livro L’art de réduire les têtes, a ser publicado no início de outubro pela editora Denoël, Paris.
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).
UOL
Rumo ao “capitalismo total”?
Um novo tipo de ensino, desprovido de senso crítico, forma indivíduos inconstantes e indecisos, receptivos a quaisquer pressões de consumo. Os professores dessa escola deverão ser reeducados sob o comando de especialistas em pedagogia
Dany-Robert Dufour
O neoliberalismo não visa apenas à destruição das instâncias coletivas construídas ao longo do tempo (família, sindicatos, partidos e, de uma maneira mais geral, a cultura), mas também à da forma indivíduo-sujeito surgida durante o período moderno1. A fábrica do novo sujeito “pós-moderno”, não-crítico e “psicotizante”, resulta de um projeto perigosamente eficiente, no centro do qual se encontram duas importantes instituições que se dedicam devotadamente à sua execução: a televisão e uma nova escola, sensivelmente alterada por trinta anos das chamadas reformas “democráticas” – que sempre operaram no sentido de enfraquecer a função crítica.
O embrutecimento das crianças pela televisão começa muito cedo. Quando chegam à escola, já vêm empanturradas da telinha desde a mais tenra idade. O fato de se verem diante de um televisor antes de falarem é novo, do ponto de vista antropológico. O consumo de imagens chega a cinco horas por dia, nos Estados Unidos.
O colapso do universo simbólico
A inundação do espaço familiar por essa torneira permanentemente aberta, de onde escorre um fluxo ininterrupto de imagens, tem efeitos consideráveis na formação do futuro sujeito. É comum questionar-se o conteúdo mesmo das imagens, denunciando, por exemplo, a sua violência, sem se ter consciência de que o próprio veículo pode ser perigoso, transmita ele o que transmitir. Aliás, entre os contos infantis contados pelas vovós de antigamente havia inúmeros ogros devoradores de criancinhas que nada deixam a desejar às imagens gore atualmente transmitidas. Mas não se pode deixar de levar em consideração a diferença entre o universo nitidamente imaginário do ogro do conto – obrigando a criança a pensá-lo como outro mundo (o da ficção) – e o universo muito realista dos seriados com violência, estupro e assassinato, sem se distanciar do mundo real. É claro que a televisão, pelo lugar preponderante ocupado por uma publicidade onipresente e agressiva, constitui uma autêntica submissão precoce ao consumo. Mas, voltando à mesma tecla: a questão não está somente no conteúdo das imagens, mas também na própria forma.
Em primeiro lugar, com a televisão, é a família – enquanto meio de transmissão entre gerações e cultural – que é reduzida a sua mínima expressão. O termo “filhos da televisão”, tomado ao pé da letra, revela que a televisão efetivamente seqüestrou a função educativa dos pais junto aos filhos. Essa redução de tempo para a transmissão entre gerações produz efeitos bastante nítidos, podendo chegar ao colapso do universo simbólico e psíquico.
O acesso à função simbólica
O universo simbólico refere-se à capacidade essencial que distingue o homem dos animais: a de falar, identificando-se a si próprio como sujeito falante e dirigindo-se a seus semelhantes a partir dessa referência, enviando-lhes sinais que supostamente representam alguma coisa. Para ter acesso à função simbólica, basta fazer seu, integrando-o, um sistema onde o “eu” (presente) fala a “você” (co-presente) sobre “ele” (o ausente, ou seja, alguém ou alguma coisa que se trata de re-presentar) 2. Essas referências simbólicas fundamentais permitem as distinções básicas entre o eu e o outro, o aqui e o ali, o antes e o depois, a presença e a ausência.
Ao garantir o acesso à função simbólica e a uma certa integridade psíquica, esse sistema transmite-se essencialmente por intermédio do discurso: os pais falando à criança. Falar significa transmitir relatos, crenças, nomes próprios, genealogias, ritos, obrigações, saberes, relações sociais... mas, antes de tudo, a própria palavra. Significa transmitir de uma geração à outra a aptidão humana de falar, de forma a que a pessoa a quem se fala possa, por sua vez, identificar-se no tempo (agora), no espaço (aqui), como si (eu) e, a partir dessas referências, convocar em seu discurso o resto do mundo. O discurso oral frente-a-frente institui a faculdade de falar em registro duplo: o discurso é sonoro ou gestual e transporta imagens mentais – quando o outro me fala, vejo o que ele quer dizer. É essa transmissão entre gerações do discurso que a televisão pode ameaçar.
Confundindo o universo simbólico
Caso as referências simbólicas de tempo, de espaço e de pessoa não estejam bem fixas, a imagem externa torna-se uma espécie de conexão mais ou menos ligada às imagens internas – ou fantasmas – que assombram o aparelho psíquico e cuja chave é desconhecida, inclusive, de quem a tem em seu poder. As imagens podem, portanto, agredir quem as vê, sem se fixar nem se encadear, num processo cumulativo controlável, colocando o sujeito sob sua dependência.
Nesse caso, o uso da televisão ameaça afastar ainda mais o sujeito do controle das categorias simbólicas de espaço, tempo e pessoa. Ela mistura sua percepção, aumenta a confusão simbólica e fúrias fantasmagóricas. É, então, a capacidade discursiva do sujeito que é questionada.
Não somente o uso da televisão é incapaz de suprir as insuficiências na simbolização, o que se poderia ingenuamente ser levado a crer, como pode confundir ainda mais os acessos a ela3. Esta observação é válida para qualquer prótese sensorial: não apenas para a tele-visão, mas qualquer outra forma de tele-mática que envolva a tele-presença, ou seja, tudo o que transporte um “aqui” para “lá” e um “lá” para “aqui”: vídeo games, telefones celulares – que as pessoas passaram a usar 24 horas por dia –, Internet... Percebem-se, por toda parte, os riscos de decuplicar as competências de umas pessoas e de aumentar a confusão de outras. Alguns sujeitos chegam a tornar-se seres quase emancipados das obrigações espaço-temporais, enquanto outros perdem a noção de viver em qualquer espaço-tempo.
O ensino, uma “tendência arcaica”
São basicamente os “filhos da televisão” que se encontram hoje na escola. É fácil, portanto, compreender a razão pela qual inúmeros professores são levados à amarga constatação de que as crianças que ali estão “já não são alunos”, “já não ouvem 4”. E, provavelmente, já não falam. Não porque se tenham tornado mudos, muito pelo contrário: mas enfrentam uma enorme dificuldade em se integrar à seqüência do discurso que distribui, de forma alternada, cada um a seu lugar: aquele que fala, aquele que escuta. Não conseguem penetrar no discurso que, na escola, permite a uma pessoa (o professor) propor questões baseadas na razão (ou seja, num saber múltiplo, acumulado ao longo das gerações anteriores e permanentemente reatualizado), e à outra pessoa (o aluno) discuti-las da forma que lhe aprouver.
É evidente que um bom número de professores não poupa esforços e se desgasta, às vezes de maneira excessiva5, para tentar fazer com que os jovens entrem em sua posição de aluno, de forma a que, também eles, possam desempenhar seu ofício de professor. E eis aí a novidade: como os alunos foram impedidos de se tornarem alunos, os professores são, cada vez mais, impedidos de exercer a sua profissão. Após trinta anos das chamadas reformas “democráticas”, dirigentes políticos e especialistas em pedagogia não se cansam de lhes dizer que deveriam desistir de sua pretensão arcaica de ensinar. Claude Allègre, por exemplo, ex-ministro da Educação, advertia os professores, dizendo-lhes que deveriam desistir de sua “tendência arcaica” e dar-lhe ouvidos: “Basta ouvirem o que eu digo. Eu sei do que falo.” E, no lugar do termo “aluno”, introduzia uma nova categoria, “os jovens”, dos quais dizia: “O que os jovens querem é inter-reagir6.”
A violência na escola
Em nome da democracia na escola, ratifica-se, dessa forma, o fato de que já não existem alunos. Para que serviriam, então, os professores? Nos discursos dos dirigentes e dos especialistas em pedagogia, o modelo educacional que prevalece, em oposição a esse suposto “arcaísmo”, acaba sendo o do talk show televisivo, em que cada participante pode, “democraticamente”, opinar. Tudo se torna, portanto, uma coisa intersubjetiva. Acaba-se o esforço crítico necessário à reversão do próprio ponto de vista, para ter acesso a outras questões, um pouco menos estreitas, menos falaciosas e melhor construídas. O que se tornou intolerável é o fato de que o professor é que conduz, que empurra constantemente os alunos na direção da função crítica. É ele que deve ser abatido, pois ele não respeita a opinião do “jovem”. Vários especialistas em pedagogia “explicam” a violência na escola de seguinte forma: os “jovens” estariam reagindo à autoridade indevida dos professores.
Se são obrigados a recorrer à violência e submetidos a uma relação de força, isso é porque não lhes foi possível qualquer outra alternativa: foram produzidos para escapar à relação de sentido e a paciente elaboração discursiva e crítica. Nesse sentido, não é difícil prever – inversamente ao processo pedagogista que acusa o professor de violência – que quanto menos participarem da relação professor-aluno, mais os alunos estarão sujeitos à violência.
Fabricando imbecis e trapaceiros?
Com o abandono da relação de sentido e a eclosão da relação de força, o que acaba prevalecendo é, nada mais, nada menos que a “escola do capitalismo total”, segundo Jean-Claude Michéa7. Ou seja: uma escola que, desprovida de senso crítico, forme indivíduos inconstantes e indecisos, receptivos a quaisquer pressões de consumo. Nessa escola de massa “a ignorância será ensinada de todas as maneiras concebíveis”. Os professores deverão, pois, ser reeducados sob o comando dos especialistas em pedagogia, que lhes mostrarão a desnecessidade de ensinar para passar a confiar exclusivamente nos sentimentos do momento e em sua vitoriosa gestão. Trata-se, portanto, de impor as condições, segundo Michéa, de uma “dissolução da lógica”: deixar de distinguir o importante do secundário, aceitar de forma impassível uma coisa e o seu oposto...
Na própria universidade, por exemplo, há uma corrente pedagógica que se insurge, recusando-se a pedir aos “jovens” que pensem. Seria o caso de distrai-los, diverti-los, deixá-los à vontade, brincando “democraticamente” com seus controles remotos segundo a vontade de suas inter-ações, fazê-los contarem suas vidas, mostrar-lhes que os conhecimentos da lógica não passam de abusos de poder. Trata-se, principalmente, de demonstrar que não há o que pensar, que não há objeto de reflexão: tudo se resumiria à afirmação de si e a uma gestão relacional da afirmação de si que conviria saber defender, como sabe fazer qualquer consumidor que se preze. Será que se trataria de fabricar imbecis trapaceiros, adaptados ao consumo?
A exceção das elites
É provável que os pedagogos não queiram isso: só querem adaptar-se ao estado em que encontram os “jovens” na escola. Ao fazê-lo, em nome da compaixão, contribuem para agravar a situação e para destruir ainda mais a escola. Esse uso dos serviços dos pedagogos fornece mais um exemplo da forma pela qual o neoliberalismo soube aproveitar-se, em seu favor, dos esquemas libertários da década de 608.
As instituições de ensino, inclusive a universidade, passam, portanto, a receber populações hesitantes, cuja relação com o saber se tornou uma preocupação bastante acessória. Um novo tipo de instituição, fluida – cuja pós-modernidade detém o segredo, a meio-caminho entre casa da juventude e da cultura, entre hospital e abrigo social, semelhante a esses parques de interesse escolar – está em vias de surgir. Não exclui certas zonas residuais de produção e reprodução do saber, onde novas tecnologias são chamadas para os papéis principais (“As tarefas repetitivas do professor serão todas gravadas e arquivadas”, prometia alegremente o ex-ministro na entrevista já citada). No meio tempo, a formação e reprodução das elites (outra função primordial da “escola do capitalismo total”) serão, cada vez mais, exclusivamente garantidas pelas “Grandes Escolas” e similares, ou, de preferência, pelas melhores escolas e universidades privadas norte-americanas (com despesas de escolaridade que chegam a 30 mil dólares por ano). Essas instituições, que continuam funcionando segundo um rigoroso modelo crítico, não são de forma alguma objeto do questionamento dos pedagogos, o qual se destina às massas.
A fábrica de indivíduos desprovidos da função crítica e passíveis de uma identidade inconstante e hesitante não é, portanto, obra do acaso: ela é perfeitamente assumida pela televisão e pelas escolas atuais. O sonho do capitalismo não é apenas o de levar o território da mercadoria aos confins do mundo (o que já ocorre, sob o nome de globalização) – transformando tudo em objeto de comércio (direitos sobre a água, o genoma, as espécies vivas, a compra e venda de crianças, de órgãos...) – mas também o de trazer os velhos assuntos privados, que até agora eram da alçada individual (subjetivação, sexuação...) para o âmbito da mercadoria. Desse ponto de vista, vivemos hoje um momento crucial, pois se a forma sujeito for atingida, já não serão somente as instituições que temos em comum que estarão ameaçadas, mas também, e principalmente, o que nós somos. E então, nada mais conseguirá conter um capitalismo total em que tudo, sem exceção, fará parte do universo mercantil: a natureza, os seres vivos e o imaginário.
1 - Ler, de Dany-Robert Dufour, “As angústias do indivíduo-sujeito”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2001. A modernidade, segundo o grande historiador Fernand Braudel, nasce “em algum lugar, entre 1400 e 1800”: é, portanto, contemporânea do capitalismo.
2 - Ler, de Dany-Robert Dufour, Les mystères de la trinité, ed. Gallimard, Paris, 1990.
3 - Um filme de 1993, Benny’s vídeo, de Michale Haneke, dá uma idéia, bastante eloqüente e assustadora, do que poderia ser essa confusão. Trata-se de um adolescente que mantém com seus pais relações estritamente funcionais e que se relaciona com o mundo exclusivamente por meio das telas de vídeo. Quando uma pequena parte desse mundo surge diante de si (uma garota), ele reage de uma forma completamente escabrosa (um crime, no caso).
4 - Ler, de Adrien Barrot, L’enseignement mis à mort, ed. Librio, Paris, 2000.
5 - Exemplo disso são os inúmeros casos de “depressão pelo ensino”, que o ex-ministro Claude Allègre dizia tratarem-se de um abuso de licenças médicas.
6 - Le Monde, 24 de novembro de 1999.
7 - Ler, de Jean-Claude Michéa, L’Enseignement de l’ignorance, ed. Climats, Castelnau, 1999.
8 - Sobre a integração da contestação anarquista ao neoliberalismo, ler, de Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le Nouvel esprit du capitalisme, ed. Gallimard, Paris, 1999. Ler também, de Serge Halimi, “A nossa utopia e a deles”, Le Monde diplomatique, abril de 2001.
Rumo ao “capitalismo total”?
Um novo tipo de ensino, desprovido de senso crítico, forma indivíduos inconstantes e indecisos, receptivos a quaisquer pressões de consumo. Os professores dessa escola deverão ser reeducados sob o comando de especialistas em pedagogia
Dany-Robert Dufour
O neoliberalismo não visa apenas à destruição das instâncias coletivas construídas ao longo do tempo (família, sindicatos, partidos e, de uma maneira mais geral, a cultura), mas também à da forma indivíduo-sujeito surgida durante o período moderno1. A fábrica do novo sujeito “pós-moderno”, não-crítico e “psicotizante”, resulta de um projeto perigosamente eficiente, no centro do qual se encontram duas importantes instituições que se dedicam devotadamente à sua execução: a televisão e uma nova escola, sensivelmente alterada por trinta anos das chamadas reformas “democráticas” – que sempre operaram no sentido de enfraquecer a função crítica.
O embrutecimento das crianças pela televisão começa muito cedo. Quando chegam à escola, já vêm empanturradas da telinha desde a mais tenra idade. O fato de se verem diante de um televisor antes de falarem é novo, do ponto de vista antropológico. O consumo de imagens chega a cinco horas por dia, nos Estados Unidos.
O colapso do universo simbólico
A inundação do espaço familiar por essa torneira permanentemente aberta, de onde escorre um fluxo ininterrupto de imagens, tem efeitos consideráveis na formação do futuro sujeito. É comum questionar-se o conteúdo mesmo das imagens, denunciando, por exemplo, a sua violência, sem se ter consciência de que o próprio veículo pode ser perigoso, transmita ele o que transmitir. Aliás, entre os contos infantis contados pelas vovós de antigamente havia inúmeros ogros devoradores de criancinhas que nada deixam a desejar às imagens gore atualmente transmitidas. Mas não se pode deixar de levar em consideração a diferença entre o universo nitidamente imaginário do ogro do conto – obrigando a criança a pensá-lo como outro mundo (o da ficção) – e o universo muito realista dos seriados com violência, estupro e assassinato, sem se distanciar do mundo real. É claro que a televisão, pelo lugar preponderante ocupado por uma publicidade onipresente e agressiva, constitui uma autêntica submissão precoce ao consumo. Mas, voltando à mesma tecla: a questão não está somente no conteúdo das imagens, mas também na própria forma.
Em primeiro lugar, com a televisão, é a família – enquanto meio de transmissão entre gerações e cultural – que é reduzida a sua mínima expressão. O termo “filhos da televisão”, tomado ao pé da letra, revela que a televisão efetivamente seqüestrou a função educativa dos pais junto aos filhos. Essa redução de tempo para a transmissão entre gerações produz efeitos bastante nítidos, podendo chegar ao colapso do universo simbólico e psíquico.
O acesso à função simbólica
O universo simbólico refere-se à capacidade essencial que distingue o homem dos animais: a de falar, identificando-se a si próprio como sujeito falante e dirigindo-se a seus semelhantes a partir dessa referência, enviando-lhes sinais que supostamente representam alguma coisa. Para ter acesso à função simbólica, basta fazer seu, integrando-o, um sistema onde o “eu” (presente) fala a “você” (co-presente) sobre “ele” (o ausente, ou seja, alguém ou alguma coisa que se trata de re-presentar) 2. Essas referências simbólicas fundamentais permitem as distinções básicas entre o eu e o outro, o aqui e o ali, o antes e o depois, a presença e a ausência.
Ao garantir o acesso à função simbólica e a uma certa integridade psíquica, esse sistema transmite-se essencialmente por intermédio do discurso: os pais falando à criança. Falar significa transmitir relatos, crenças, nomes próprios, genealogias, ritos, obrigações, saberes, relações sociais... mas, antes de tudo, a própria palavra. Significa transmitir de uma geração à outra a aptidão humana de falar, de forma a que a pessoa a quem se fala possa, por sua vez, identificar-se no tempo (agora), no espaço (aqui), como si (eu) e, a partir dessas referências, convocar em seu discurso o resto do mundo. O discurso oral frente-a-frente institui a faculdade de falar em registro duplo: o discurso é sonoro ou gestual e transporta imagens mentais – quando o outro me fala, vejo o que ele quer dizer. É essa transmissão entre gerações do discurso que a televisão pode ameaçar.
Confundindo o universo simbólico
Caso as referências simbólicas de tempo, de espaço e de pessoa não estejam bem fixas, a imagem externa torna-se uma espécie de conexão mais ou menos ligada às imagens internas – ou fantasmas – que assombram o aparelho psíquico e cuja chave é desconhecida, inclusive, de quem a tem em seu poder. As imagens podem, portanto, agredir quem as vê, sem se fixar nem se encadear, num processo cumulativo controlável, colocando o sujeito sob sua dependência.
Nesse caso, o uso da televisão ameaça afastar ainda mais o sujeito do controle das categorias simbólicas de espaço, tempo e pessoa. Ela mistura sua percepção, aumenta a confusão simbólica e fúrias fantasmagóricas. É, então, a capacidade discursiva do sujeito que é questionada.
Não somente o uso da televisão é incapaz de suprir as insuficiências na simbolização, o que se poderia ingenuamente ser levado a crer, como pode confundir ainda mais os acessos a ela3. Esta observação é válida para qualquer prótese sensorial: não apenas para a tele-visão, mas qualquer outra forma de tele-mática que envolva a tele-presença, ou seja, tudo o que transporte um “aqui” para “lá” e um “lá” para “aqui”: vídeo games, telefones celulares – que as pessoas passaram a usar 24 horas por dia –, Internet... Percebem-se, por toda parte, os riscos de decuplicar as competências de umas pessoas e de aumentar a confusão de outras. Alguns sujeitos chegam a tornar-se seres quase emancipados das obrigações espaço-temporais, enquanto outros perdem a noção de viver em qualquer espaço-tempo.
O ensino, uma “tendência arcaica”
São basicamente os “filhos da televisão” que se encontram hoje na escola. É fácil, portanto, compreender a razão pela qual inúmeros professores são levados à amarga constatação de que as crianças que ali estão “já não são alunos”, “já não ouvem 4”. E, provavelmente, já não falam. Não porque se tenham tornado mudos, muito pelo contrário: mas enfrentam uma enorme dificuldade em se integrar à seqüência do discurso que distribui, de forma alternada, cada um a seu lugar: aquele que fala, aquele que escuta. Não conseguem penetrar no discurso que, na escola, permite a uma pessoa (o professor) propor questões baseadas na razão (ou seja, num saber múltiplo, acumulado ao longo das gerações anteriores e permanentemente reatualizado), e à outra pessoa (o aluno) discuti-las da forma que lhe aprouver.
É evidente que um bom número de professores não poupa esforços e se desgasta, às vezes de maneira excessiva5, para tentar fazer com que os jovens entrem em sua posição de aluno, de forma a que, também eles, possam desempenhar seu ofício de professor. E eis aí a novidade: como os alunos foram impedidos de se tornarem alunos, os professores são, cada vez mais, impedidos de exercer a sua profissão. Após trinta anos das chamadas reformas “democráticas”, dirigentes políticos e especialistas em pedagogia não se cansam de lhes dizer que deveriam desistir de sua pretensão arcaica de ensinar. Claude Allègre, por exemplo, ex-ministro da Educação, advertia os professores, dizendo-lhes que deveriam desistir de sua “tendência arcaica” e dar-lhe ouvidos: “Basta ouvirem o que eu digo. Eu sei do que falo.” E, no lugar do termo “aluno”, introduzia uma nova categoria, “os jovens”, dos quais dizia: “O que os jovens querem é inter-reagir6.”
A violência na escola
Em nome da democracia na escola, ratifica-se, dessa forma, o fato de que já não existem alunos. Para que serviriam, então, os professores? Nos discursos dos dirigentes e dos especialistas em pedagogia, o modelo educacional que prevalece, em oposição a esse suposto “arcaísmo”, acaba sendo o do talk show televisivo, em que cada participante pode, “democraticamente”, opinar. Tudo se torna, portanto, uma coisa intersubjetiva. Acaba-se o esforço crítico necessário à reversão do próprio ponto de vista, para ter acesso a outras questões, um pouco menos estreitas, menos falaciosas e melhor construídas. O que se tornou intolerável é o fato de que o professor é que conduz, que empurra constantemente os alunos na direção da função crítica. É ele que deve ser abatido, pois ele não respeita a opinião do “jovem”. Vários especialistas em pedagogia “explicam” a violência na escola de seguinte forma: os “jovens” estariam reagindo à autoridade indevida dos professores.
Se são obrigados a recorrer à violência e submetidos a uma relação de força, isso é porque não lhes foi possível qualquer outra alternativa: foram produzidos para escapar à relação de sentido e a paciente elaboração discursiva e crítica. Nesse sentido, não é difícil prever – inversamente ao processo pedagogista que acusa o professor de violência – que quanto menos participarem da relação professor-aluno, mais os alunos estarão sujeitos à violência.
Fabricando imbecis e trapaceiros?
Com o abandono da relação de sentido e a eclosão da relação de força, o que acaba prevalecendo é, nada mais, nada menos que a “escola do capitalismo total”, segundo Jean-Claude Michéa7. Ou seja: uma escola que, desprovida de senso crítico, forme indivíduos inconstantes e indecisos, receptivos a quaisquer pressões de consumo. Nessa escola de massa “a ignorância será ensinada de todas as maneiras concebíveis”. Os professores deverão, pois, ser reeducados sob o comando dos especialistas em pedagogia, que lhes mostrarão a desnecessidade de ensinar para passar a confiar exclusivamente nos sentimentos do momento e em sua vitoriosa gestão. Trata-se, portanto, de impor as condições, segundo Michéa, de uma “dissolução da lógica”: deixar de distinguir o importante do secundário, aceitar de forma impassível uma coisa e o seu oposto...
Na própria universidade, por exemplo, há uma corrente pedagógica que se insurge, recusando-se a pedir aos “jovens” que pensem. Seria o caso de distrai-los, diverti-los, deixá-los à vontade, brincando “democraticamente” com seus controles remotos segundo a vontade de suas inter-ações, fazê-los contarem suas vidas, mostrar-lhes que os conhecimentos da lógica não passam de abusos de poder. Trata-se, principalmente, de demonstrar que não há o que pensar, que não há objeto de reflexão: tudo se resumiria à afirmação de si e a uma gestão relacional da afirmação de si que conviria saber defender, como sabe fazer qualquer consumidor que se preze. Será que se trataria de fabricar imbecis trapaceiros, adaptados ao consumo?
A exceção das elites
É provável que os pedagogos não queiram isso: só querem adaptar-se ao estado em que encontram os “jovens” na escola. Ao fazê-lo, em nome da compaixão, contribuem para agravar a situação e para destruir ainda mais a escola. Esse uso dos serviços dos pedagogos fornece mais um exemplo da forma pela qual o neoliberalismo soube aproveitar-se, em seu favor, dos esquemas libertários da década de 608.
As instituições de ensino, inclusive a universidade, passam, portanto, a receber populações hesitantes, cuja relação com o saber se tornou uma preocupação bastante acessória. Um novo tipo de instituição, fluida – cuja pós-modernidade detém o segredo, a meio-caminho entre casa da juventude e da cultura, entre hospital e abrigo social, semelhante a esses parques de interesse escolar – está em vias de surgir. Não exclui certas zonas residuais de produção e reprodução do saber, onde novas tecnologias são chamadas para os papéis principais (“As tarefas repetitivas do professor serão todas gravadas e arquivadas”, prometia alegremente o ex-ministro na entrevista já citada). No meio tempo, a formação e reprodução das elites (outra função primordial da “escola do capitalismo total”) serão, cada vez mais, exclusivamente garantidas pelas “Grandes Escolas” e similares, ou, de preferência, pelas melhores escolas e universidades privadas norte-americanas (com despesas de escolaridade que chegam a 30 mil dólares por ano). Essas instituições, que continuam funcionando segundo um rigoroso modelo crítico, não são de forma alguma objeto do questionamento dos pedagogos, o qual se destina às massas.
A fábrica de indivíduos desprovidos da função crítica e passíveis de uma identidade inconstante e hesitante não é, portanto, obra do acaso: ela é perfeitamente assumida pela televisão e pelas escolas atuais. O sonho do capitalismo não é apenas o de levar o território da mercadoria aos confins do mundo (o que já ocorre, sob o nome de globalização) – transformando tudo em objeto de comércio (direitos sobre a água, o genoma, as espécies vivas, a compra e venda de crianças, de órgãos...) – mas também o de trazer os velhos assuntos privados, que até agora eram da alçada individual (subjetivação, sexuação...) para o âmbito da mercadoria. Desse ponto de vista, vivemos hoje um momento crucial, pois se a forma sujeito for atingida, já não serão somente as instituições que temos em comum que estarão ameaçadas, mas também, e principalmente, o que nós somos. E então, nada mais conseguirá conter um capitalismo total em que tudo, sem exceção, fará parte do universo mercantil: a natureza, os seres vivos e o imaginário.
1 - Ler, de Dany-Robert Dufour, “As angústias do indivíduo-sujeito”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2001. A modernidade, segundo o grande historiador Fernand Braudel, nasce “em algum lugar, entre 1400 e 1800”: é, portanto, contemporânea do capitalismo.
2 - Ler, de Dany-Robert Dufour, Les mystères de la trinité, ed. Gallimard, Paris, 1990.
3 - Um filme de 1993, Benny’s vídeo, de Michale Haneke, dá uma idéia, bastante eloqüente e assustadora, do que poderia ser essa confusão. Trata-se de um adolescente que mantém com seus pais relações estritamente funcionais e que se relaciona com o mundo exclusivamente por meio das telas de vídeo. Quando uma pequena parte desse mundo surge diante de si (uma garota), ele reage de uma forma completamente escabrosa (um crime, no caso).
4 - Ler, de Adrien Barrot, L’enseignement mis à mort, ed. Librio, Paris, 2000.
5 - Exemplo disso são os inúmeros casos de “depressão pelo ensino”, que o ex-ministro Claude Allègre dizia tratarem-se de um abuso de licenças médicas.
6 - Le Monde, 24 de novembro de 1999.
7 - Ler, de Jean-Claude Michéa, L’Enseignement de l’ignorance, ed. Climats, Castelnau, 1999.
8 - Sobre a integração da contestação anarquista ao neoliberalismo, ler, de Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le Nouvel esprit du capitalisme, ed. Gallimard, Paris, 1999. Ler também, de Serge Halimi, “A nossa utopia e a deles”, Le Monde diplomatique, abril de 2001.
"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma." (Joseph Pulitzer).