
O deputado Delfim Netto é o derrotado mais vitorioso das eleições encerradas no domingo. Seus 38 mil votos não foram suficientes para reelegê-lo, mas sua picardia, inteligência e experiência o tornaram um dos principais conselheiros do presidente Lula. Na reta final da campanha, Delfim foi chamado para dentro dos palácios do Alvorada e do Planalto, residência e local de trabalho do presidente, orientou ministros, palpitou com marqueteiros e, mais que tudo, deu munição aos petistas para baterem forte, bem onde dói, nos tucanos. Foi Delfim quem pediu acento nas comparações entre a política econômica de Lula e a de Fernando Henrique Cardoso. Aos 78 anos, sai das eleições cotado para se tornar ministro de Lula. Sem dúvida, uma reviravolta histórica. Expoente do regime militar, ele tem chance agora de fazer parte do grupo de pessoas que estavam nos cárceres, no exílio e, também, que morreram no combate ao regime. Seu posto pode ser o de ministro da Agricultura, que ele já ocupou em 1979. Dali, foi guindado de volta ao comando da economia. Hoje, como ontem, Delfim insiste que nada entende sobre os problemas do campo: “Para mim, melancia dá em árvore”, diverte-se. Acompanhe:
ISTOÉ – Por que o Brasil não cresceu?
Delfim Netto – O País não cresceu por causa das condições que foram construídas na época do Real. O plano foi brilhante, mas terminou de maneira trágica por causa de três problemas: uma carga tributária bruta de 38%, o endividamento fantástico de 57% do PIB – hoje está em 50% – e uma vulnerabilidade externa apavorante. A dívida representava três vezes a exportação.
ISTOÉ – O que deu errado?
Delfim – Quando forem publicados os livros sobre a história econômica do século XX terá, pelo menos, uma nota de rodapé dizendo que quatro ou cinco economistas brasileiros construíram um mecanismo de estabilização, espiados na estabilização alemã pós Primeira Guerra Mundial, que foi um sucesso. Mas as condições para seu funcionamento exigiam eliminação da inflação, corte de despesas e aumento, pouco, de impostos. Os planos que terminaram bem tiveram essa receita. O problema é que Fernando Henrique jogou fora a oportunidade de ser um estadista.
ISTOÉ – De que forma?
Delfim – No primeiro mandato, não teve nenhum esforço fiscal – o ideal era cortar 4% das despesas – e manteve a taxa de câmbio a juros espantosos. O Brasil, por exemplo, é o único caso do mundo em que se vendeu o patrimônio e aumentaram as dívidas. Todas as condições foram negadas, por um único objetivo, que não estava no plano, que era a transação com o diabo para a reeleição. O Brasil esperava que FHC se transformasse em um estadista, mas ele virou um oportunista. O PSDB fez a política do nhenhehém e desconstruiu as condições do crescimento ao anestesiar a sociedade brasileira. E fez isso com a conivência de todos nós.
ISTOÉ – Qual seria a receita ideal?
Delfim – A política econômica deve ser apoiada no equilíbrio fiscal com carga tributária reduzida, uma dívida líquida decente com taxas de juros próximas às externas, com câmbio flutuante e com metas inflacionárias. O que exige um Banco Central autônomo. Na verdade, essa é a política econômica canônica aplicada no mundo inteiro, não é uma descoberta brasileira.
ISTOÉ – O sr. acha que a política econômica de Lula foi mais conservadora
do que a de FHC?
Delfim – Não. Lula continuou a política que o FMI ensinou a FHC em seu segundo mandato. Política econômica mesmo foi a do primeiro mandato do PSDB, que terminou na aparência. Nós já esquecemos que em 1998 a inflação era de 1,7% e o crescimento de 0,5%. Nós esquecemos que neste ano eleitoral o Brasil estava quebrado e recorria ao FMI. O então presidente americano, Bill Clinton, olhava de um lado e via um príncipe e de outro um sapo barbudo. Como homem de inegável bom gosto escolheu o príncipe FHC. Nos deram US$ 42 bilhões e fizemos a reeleição.
ISTOÉ – E as conseqüências?
Delfim – A farsa apareceu. O governo teve que liberar o câmbio e, pela primeira vez, fazer um esforço fiscal. O FMI impôs um superávit primário de 3,5%. Outra farsa: a idéia era cortar despesas em 3,5%, mas o PSDB achou mais fácil aumentar imposto em 3,5%. Foi o que FHC fez. Foi assim, de anestesia em anestesia, que em vez de fomentar se desconstruiu o crescimento econômico.
ISTOÉ – Mas o PSDB quis jogar a responsabilidade da crise para a ascensão
de Lula em 2001...
Delfim – Depois da eleição, a inflação estava logrando em torno de 25% a 30% e se o Lula brincasse ele ia se estuporar mesmo. Aliás, essa era a esperança do PSDB. ‘Nós deixamos uma bomba aqui, esse sujeito não sabe do que se trata e ela vai explodir daqui a seis meses e nós vamos ser chamados de volta.’ Esse era o pensamento deles. A surpresa enorme é que o Lula radicalizou a política. O Meirelles (presidente do Banco Central) aumentou os juros para 26%, o Palocci (ex-ministro da Fazenda) subiu o superávit para 4,8% e, em sete meses, a expectativa de inflação tinha voltado a 6% ao ano. O governo FHC se apoiou em teorias falsas. O Lula conseguiu fazer equilíbrio. O que mostra, na verdade, que as coisas são mais profundas. Só daqui a alguns anos, quando começarem a sair as teses de mestrado e doutorado, é que vamos saber que essa foi a tragédia do governo FHC.
ISTOÉ – Qual é a diferença entre o programa do PT e do PSDB?
Delfim – O programa do PSDB é uma teoria econômica que trata o mercado de trabalho como se trata um mercado de parafusos. Se sobra parafuso vai para o estoque, se sobra mão-de-obra vai para o desemprego. Para os tucanos, a teoria econômica serve unicamente para o desenvolvimento. Para eles, o desemprego não existe. O desemprego é apenas um ataque de vagabundagem do proletariado.
ISTOÉ – E no PT?
Delfim – No PT não tem ninguém com essa pretensão científica. Eles sabem que as teorias econômicas são muito úteis se combinadas com uma certa arte. Eles sabem mais. Sabem que existe a urna. Quando você pretende ser científico demais e acha que o mercado de trabalho é igual ao mercado de parafusos, a urna corrige. Quando você tenta ser populista demais e imagina que violando o equilíbrio fiscal você pode acelerar o crescimento, a urna corrige.
ISTOÉ – Mas o PSDB alega que a justiça social começou na era FHC...
Delfim – Os cientistas econômicos do PSDB nem sequer acreditam que exista justiça social. O (Friedrich) Hayek (Prêmio Nobel de Economia) provou para eles que isso é uma bobagem e a madame (Margaret) Thatcher confirmou. No Brasil, o problema fundamental é que, enquanto você não pode dar emprego para todos, você tem que ter uma rede de sustentação para aqueles que foram expulsos do mercado. Qual é a solução dos cientistas? Se eles estão sendo colocados para fora, logo essa é uma forma muito eficiente de aumentar a renda per capita. Eles que morram.
ISTOÉ – O que é sociedade justa para os mercados?
Delfim – É igualdade de oportunidades. Cabe ao Estado produzir o único bem público que só o Estado pode fazer: aumentar a igualdade de oportunidades. Isso significa que cidadania não depende de berço, cor, religião ou região que nasceu. Diz-se que o mercado é uma corrida. Logo pressume-se que os corredores tenham duas pernas e que partam do mesmo lugar.
ISTOÉ – Mas a corrida é injusta...
Delfim – É porque se põe um corredor na frente e do outro se tira uma perna. O papel do Estado é corrigir essa distorção. É por isso que o Estado é fundamental para que o capitalismo seja um sistema razoavelmente justo. Não é, como dizem os cientistas, para garantir a propriedade privada. É também para dar igualdade do ponto de partida. Essa é a diferença fundamental entre a proposta tucana e a de Lula.
ISTOÉ – O presidente Lula, eleito para mais um mandato, conseguirá costurar um pacto com a oposição?
Delfim – Uma das coisas que eu mais confio é na racionalidade do PSDB e do PFL. Ainda que tenham teorias supostamente científicas, os dois partidos sabem que há coisas importantes que precisam ser feitas. Os dois foram a favor do equilíbrio fiscal. Como podem ser contra agora? Como eles podem ser contra uma boa reforma trabalhista, aos estímulos ao desenvolvimento econômico do País? Isso está no programa deles.
ISTOÉ – E se resolverem fazer política com o fígado?
Delfim – Aí continuarão farsantes. E preste atenção, vão continuar nessa condição em 2010, 2014 e por aí vai. A oposição irracionalmente aprovou 16% de reajuste para os aposentados. A intenção era destruir o governo Lula. Os tucanos não consideraram as duas principais leis de Tancredo Neves. A primeira diz que, quando você é esperto demais, a esperteza te come. A segunda, que prevalece até hoje e assegurou a reeleição de FHC, é que em eleição não interessam estatísticas nem o que diz o tal do Karl Marx em o Capital. Só interessa o que diz o Diário Oficial (risos).
ISTOÉ – Como se dará esse pacto?
Delfim – A recomposição se dará em torno do poder. Aécio Neves (governador de Minas Gerais) é o mais jovem político que aprendeu a fazer política como quem faz tricô com quatro agulhas (risos). Além de neto, tem doutorado em Tancredo. E o Serra (governador eleito de São Paulo) é suficientemente inteligente para saber que seu Estado não pode se declarar independente.
ISTOÉ – Houve uma divisão da sociedade nessa eleição?
Delfim – O Sul, por exemplo, mostrou que voto não tem ideologia, o voto tem interesse econômico e esse interesse foi contrariado na região, embora a política cambial tenha diminuído o custo de vida e aumentado o poder de compra do salário mínimo. Os programas sociais do governo foram uma política de sobrevivência quando não se pode dar emprego. As regiões Norte e Nordeste entenderam isso. O problema é que os intelectuais tucanos condenam os programas sociais porque acreditam que o desempregado está nessa condição porque quer. Portanto, pensam eles, não daremos cesta básica para vagabundo. É esta a filosofia implícita que o PSDB não tem coragem de declinar. Aí, eles ficam na conversa da produção do resultados do equilíbrio macroeconômico desejado. As coisas são outras: eles destruíram as condições do crescimento econômico e não entendem que essa não é uma política assistencialista. Essa é uma política de sobrevivência enquanto você não pode dar emprego.
FONTE:Istoé
Abraços