Irresponsabilidade e ilusão no Iraque

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Pug
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Irresponsabilidade e ilusão no Iraque

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Irresponsabilidade e ilusão no Iraque
Francisco Sarsfield Cabral - Jornalista

Fonte: DN

O linchamento de Saddam, com insultos e gritos de vingança dos xiitas, mostra o que será de esperar da eventual transferência de poderes dos americanos para o Governo do Iraque. Este horrível espectáculo só não terá consequências mais graves na violência sectária porque Saddam há muito era irrelevante. A sua prisão, por exemplo, nada de significativo alterara. Mas tornou-se claro o propósito dos xiitas de se desforrarem dos sunitas, inviabilizando qualquer reconciliação.

E agora? Mandar mais 15 ou 30 mil soldados para o Iraque, para juntar aos 140 mil que lá estão, parece ser intenção de Bush (desagradando até a muitos republicanos). Mas não mudará grande coisa. Como a megaoperação de segurança deste Verão não atenuou a violência em Bagdad.

Ter no Iraque muito mais soldados americanos - digamos, 450 mil homens, número que muitos militares consideravam adequado aquando da invasão - não está ao alcance de um presidente que perdeu a confiança da sua opinião pública. Nem um Congresso dominado pelos democratas iria financiar tal reforço.

Foi justamente criticada a principal proposta do grupo bipartidário do Congresso, onde se destacava James Baker: uma nova ofensiva diplomática, envolvendo o Irão e a Síria, de modo a permitir a retirada gradual dos militares americanos até ao fim de 2008.

Partindo a ideia de políticos classificados como "realistas", adeptos da realpolitik, os neoconservadores apressaram-se a denunciar o seu irrealismo. Entre nós essa crítica apareceu no artigo de Luciano Amaral "Realismo irrealista", no DN de 14 de Dezembro.

Mas num ponto o grupo de Baker foi realista: no diagnóstico da situação no Iraque. Só depois de divulgado o relatório do grupo Bush concedeu que os Estados Unidos não estão, afinal, a ganhar a guerra. Para quem embarcara numa irresponsável onda de irrealismo, reconhecer o óbvio já é alguma coisa.

Há quatro anos Rumsfeld apostou numa guerra rápida, muito tecnológica e com poucos efectivos, contra a opinião da maioria dos militares. E previa uma curta ocupação do Iraque - questão de meses. Isto com a ajuda ideológica dos neoconservadores, no seu romantismo de levar (à bomba) a democracia a toda a parte. Perante o fiasco no Iraque, os neocons queixam-se da incompetência da Administração. Ora o absurdo do projecto não é apenas evidente agora. Sempre o foi. Sobretudo logo após a vitória americana, quando o caos se instalou no Iraque. Dias antes da sua demissão, Rumsfeld propôs mudar a estratégia no Iraque. Parece só então ter percebido que aquilo corria mal.

O campeão das ilusões foi, aliás, o vice-presidente Cheney. Para ele, quando a violência aumentava no Iraque, era sinal de que os radicais tinham entrado em desespero, num estertor final face à vitória americana.

E nas vésperas das eleições de Novembro (que trariam uma estrondosa derrota à política iraquiana de Bush), Cheney atribuiu o surto de atentados a uma tentativa dos guerrilhei- ros para influenciarem os eleitores americanos. Ora a violência no Iraque aumentou depois dessas eleições.

Impressiona a inconsciência face ao desastre anunciado. Mas quem falava de desastre era considerado traidor ou, se fosse estrangeiro, antiamericano. Esta espantosa irresponsabilidade levou à maior derrota do Ocidente depois do triunfo na Guerra Fria, com o colapso do comunismo. Uma derrota de consequências mais graves para os EUA e para todos nós do que a debandada do Vietname.

A invasão do Iraque foi uma resposta ao 11 de Setembro. Os americanos queriam desforrar-se, humilhando os islâmicos radicais e mostrando que não são impunemente atacados no seu território. Tratava-se de restabelecer o prestígio e a credibilidade dos EUA com uma afirmação de força. Saddam estava a jeito. Quase quatro anos depois da invasão, os EUA estão enfraquecidos e sem credibilidade. Arriscam-se a deixar no Iraque um Estado falhado, viveiro de terroristas e factor de desestabilização em todo o Médio Oriente. E Washington perdeu autoridade moral em matéria de direitos humanos, desde logo na tortura.

Entretanto, por causa da obsessão com o Iraque, os EUA descuraram o Afeganistão, onde os talibãs recuperam terreno. Assim, insistir em falar de "vitória" no Iraque é mais uma manifestação de irresponsabilidade. Como escrevia o conservador Daily Telegraph, o mais que os EUA podem agora conseguir no Iraque é uma retirada honrosa. Por muito que tal desagrade aos ideólogos da ilusão.
"Nunca te justifiques. Os amigos não precisam e os inimigos não acreditam" - Desconhecido

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